“Eis que eu estarei convosco todos os dias, até ao fim do mundo” (Mt 28,20)
O Mistério Pascal é uma realidade única: nem a ressurreição, nem a ascensão, nem o sentar-se à direita do Pai, nem a glorificação, nem a vinda do Espírito, são fatos separados.
As diferentes “expressões” do Mistério Pascal, pertencem ao hoje como ao ontem, são tão nossas como foram para Pedro, João ou Madalena. Não aconteceram só no passado, mas também estão acontecendo neste instante. São realidades que estão afetando nossa própria vida. Podemos e devemos vivê-las como os(as) discípulos(as) de Jesus as viveram.
Para nós seguidores(as) de Jesus, Ascensão é abertura para o cotidiano, para a realidade do serviço. É preciso partir e viver o chamado do Mestre para prolongar, neste mundo, seu modo de ser e de viver.
A Ascensão de Jesus não significa evasão aos céus - “Homens da Galileia por que ficai aqui, parados, olhando para o céu?” (At. 1,11) – mas imersão na vida. Aquele que Vive não escapou do mundo; sua Ascensão significa expansão e presença no universo inteiro, plenificando tudo em todos; Ele agora assume todos os rostos, identifica-se com toda a humanidade e continua a caminhar pelas Galileias dos excluídos, das periferias, dos pobres, acampa junto aqueles que vivem às margens...
Ao celebrarmos a entrada de Jesus na glória, não celebramos uma despedida ou um distanciamento, mas um novo modo de presença; celebramos a proximidade radical d’Aquele que é, realmente, o Emanuel, o Deus-conosco para sempre.
Ao “subir aos céus”, Jesus se faz mais radicalmente próximo de todos, ultrapassando tempo e espaço. Ascensão não é afastamento, mas uma maneira nova de fazer-se presente a todos e em todos os lugares.
O único que Jesus faz é restabelecer e assegurar a proximidade e comunicação com toda a humanidade. Isto deve nos dar uma grande alegria, pois Ele permanece aqui na terra, junto a nós. Assim, a Ascensão de Jesus nos desafia a romper a estreiteza de nossa vida para expandi-la a horizontes mais inspiradores.
Na festa da Ascensão deste ano, a liturgia nos propõe a cena final do evangelho de Mateus; embora não fale expressamente da “elevação” de Jesus ao céu, nele se condensa todo o caminho anterior, e se abre ao mundo inteiro, como presença e promessa de vida.
Mateus termina seu evangelho narrando um breve encontro entre Jesus Ressuscitado e o grupo dos onze que havia regressado à Galileia, depois de receber a mensagem das mulheres que tinham ido ao sepulcro. Este encontro acontece longe de Jerusalém, afastado do lugar onde eles tinham vivido a experiência traumática da paixão de Jesus. Esta distância física é também existencial. Depois da crise, do medo, do deses-pero que os havia paralisado, o Mestre os convida a voltar à Galileia, às origens, para percorrer de novo os caminhos, para “fazer memória” das experiências junto d’Ele e que agora hão de reler de forma diferente.
A Ascensão é a festa por excelência da nova proximidade de Jesus. No entanto, devido à situação pandêmica, celebramos fisicamente distanciados uns dos outros; mas, a Ascensão pode ser um momento oportuno para ativar outras maneiras de nos fazer próximos, inspirados na proximidade do Ressuscitado.
A festa da Ascensão pode também ser uma ocasião para des-velar (tirar a máscara) o farisaísmo que está latente em todos nós: a vivência camuflada de um distanciamento humano.
O isolamento sanitário pôs às claras esta dura realidade: já levamos anos praticando o distanciamento político, a polarização religiosa, o enfrentamento de extremos, a separação ideológica, a distância como meio para nos fechar em nossas posições fanáticas, preconceituosas e intolerantes. Uma voz surda sempre esteve presente: devemos nos separar dos outros, daqueles que pensam diferente, sentem diferente, vivem diferente, assumem posições e opções diferentes...
Não podemos deixar que a atual crise sanitária acentue mais ainda os diferentes distanciamentos que estavam escondidos, mas que agora vieram à tona com mais força.
Esta é a dura contradição que estamos vivendo: se, estar separados fisicamente de nossos seres queridos e vizinhos é o mais eficaz para combater a pandemia, precisamos, então, buscar outras expressões de proximidade para que essa distância não se converta em ecossistema e modo de vida. A distância sanitária não pode servir de cortina de fumaça para reforçar outras distâncias que se abrem diante de nós, no campo social-político-religioso-cultural...
Não podemos deixar que o sonho do Reino, o projeto universal de Jesus, se dilua em meio às distâncias artificiais que desumanizam. Hoje, mais do que nunca, devemos celebrar e recordar que juntos, unidos, orientados para um horizonte comum, poderemos enfrentar qualquer crise que nos venha. Talvez, esta
pandemia nos oferece uma ótima oportunidade para crermos nisso, de verdade: de transformar declarações ocas em atos sólidos, de resumir tudo o que é a humanidade numa só palavra: proximidade. Proximidade com aqueles que sofrem, com aqueles que buscam um mundo melhor, com aqueles que menos tem, com aqueles que se sentem excluídos... Em meio a um mundo onde a distância e a suspeita crescem e se enraízam, a Ascenção é a alternativa de proximidade e colaboração que todos precisamos.
Não nos sobram muitas outras oportunidades de transformar este sonho em realidade. Vivemos na distância, necessária no momento, mas não façamos dela nosso estilo de vida; não devemos convertê-la em meio que determine o que somos. Somos chamados a ser algo mais que compartimentos estanques e seguros, isolados. Podemos ser “praça comum” de encontro e diálogo, de mãos estendidas e ouvidos atentos para dar forma a isso que tanto precisamos: sentir-nos próximos uns dos outros.
À luz da Ascenção podemos afirmar: fisicamente distanciados é quando nos sentimos mais próximos.
Podemos recordar o constante convite de Jesus a provocar encontros que ajudem a integrar, a re-unir, a re-ligar, a articular o tecido comunitário. Há tantas vidas esparramadas, isoladas, rejeitadas... esperando por sinergia. Na verdade, Ele provocou as pessoas a saírem de seu isolamento e padrões alienados de relacionamento para expandir-se em direção a uma nova forma relacional com tudo o que existe; tal relação é a concretização do sonho do “Reino de Deus”.
Como homem e como mulher, trazemos esta força interior que nos faz “sair de nós mesmos” e criar laços, fortalecer a comunhão, romper distâncias...
O ser humano não é feito para viver só; ele necessita con-viver, viver-com-os-outros; ele é um ser constitutivamente aberto, essencialmente em referência a outras pessoas: estabelece com os outros uma interação, entrelaça-se com eles, e forma um nós: a comunidade.
Textos bíblicos: Mt 28,16-20
Na oração: Jesus vive sua proximidade radical através dos seus(suas) seguidores(as) que se fazem próximos. A “opção de vida” em favor do próximo é o indicador de uma vida aberta e comprometida na construção de uma convivência social na qual predomine a ternura e não a dureza de coração, o respeito à vida e o amor e não a violência e a exclusão.
- de quem eu sou próximo, ou, como me faço próximo, nestes tempos de isolamento social?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“O Espírito da Verdade..., vós o conheceis, porque ele permanece junto de vós e está em vós” (15,17)
O Evangelho deste domingo faz parte de uma longa conversa de Jesus com os seus amigos, durante a Última Ceia, e que João recolhe nos capítulos 13 a 17.
Era uma conversa amiga, que ficou na memória do discípulo amado. Jesus, assim parece, queria prolongar ao máximo esse último encontro, momento de muita intimidade. Para João, a conversa de Jesus tem uma conotação de profundidade e trato, de certa familiaridade e ternura.
Nesta interação Jesus-discípulos, tanto os conteúdos expressos como os aspectos relacionais ganham uma grande importância: as palavras, os gestos, o olhar, a maneira de falar, o tom da voz, os silêncios, o contexto onde acontece a conversação...; tudo isso forma parte da diversidade e riqueza da revelação de Jesus aos seus mais íntimos. Jesus extrai palavras significativas, previamente cinzeladas e incorporadas no seu interior, onde elas revelam dinamismo, sentido e alteridade; sua conversa brota de uma vida interior fecunda e conduz a uma vida comprometida. Trata-se de um verdadeiro “testamento espiritual”
A conversação constitui, portanto, o núcleo diferencial de qualidade de trato próximo e fraterno daqueles(as) que, além de viverem juntos, compartilham a vida com um projeto comum.
No entanto, há conversa e conversa. Há conversa superficial que gasta palavras à toa e revela o vazio das pessoas. E há conversa que toca fundo no coração e fica na memória. Todos nós, de vez em quando, temos esses momentos de convivência amiga, que dilatam o coração e vão ser força na hora das dificuldades. Ajudam a ter confiança e a vencer o medo.
Conversar constitui uma das experiências humanas mais antigas e configuradoras de nosso ser. Ela não se reduz a um mero intercâmbio de palavras; é um processo essencialmente ativo, inerente à nossa natureza relacional, cuja finalidade última é viver a experiência do encontro.
Conversar é uma das aprendizagens vitais que não tem data de vencimento.
A arte da conversação é um caminho pedagógico, um processo gradual que requer uma capacidade de escuta, de acolher e deixar-se afetar pelo que o outro é, não só pelo que diz; uma capacidade de olhar com profundidade para reconhecer uma história santa, um caminho de salvação. É reconhecer no outro o que há de verdadeiro, bom e belo e descobrir como o dinamismo de Deus atua no coração dele. É ajudá-lo a descobrir, na trama de sua vida, as motivações profundas que o levam a ser e a agir de uma maneira muito pessoal.
A conversação é uma experiência profundamente humana de proximidade, de conhecimento, de inter-câmbio, de ternura..., um encontro entre pessoas que vão compartilhando histórias de vida, esperanças e frustrações, vontade de construir e sonhar... Na conversação, o que importa é a pessoa do outro e não os problemas que apresenta...; ela é o lugar privilegiado de encontro e descoberta misteriosa do Outro (Deus).
“Conversar” e “converter”, etimologicamente, vem da mesma raiz. Em seu sentido mais radical e profundo “conversar” é “converter-se” ao mistério do outro, é converter-se à alteridade. A conversação reforça os laços, criando a comunidade de “amigos no Senhor”.
Sair dos corredores do próprio claustro interior e de seus mecanismos de defesa para converter-se em um servidor do outro, com a mediação mais humana, mais sutil, mais imediata e universal, mais iluminadora e mais reveladora da própria maturidade: a palavra.
Mesmo “isolados socialmente” devido à pandemia, a conversação nos liberta da solidão e do fechamento, fazendo-nos crescer na transparência. As inúmeras possibilidades de conversar são encontros que nos reconciliam com a vida, nos movem a crescer e a sair de nosso isolamento. Ela nos permite sentir que formamos parte da vida de outros e nos ajuda a levantar-nos quando as perdas, os fracassos, as enfermidades... tornam difícil nosso caminhar.
Para chegar a conversações mais profundas e íntimas precisamos percorrer o caminho que se inicia no cotidiano e no aparentemente superficial. Encontrar-nos com os outros é uma experiência que requer seu tempo, seu espaço, seu ritmo. Nossa natureza relacional continuamente nos oferece oportunidades para conversar; depende de nós fazê-las banais ou convertê-las em experiência de vida.
Segundo Jesus, o protagonista principal da conversação é o Espírito, que gera em nosso interior palavras de vida e criatividade. Numa conversação profunda deixamos transparecer nossa verdadeira identidade, nossa verdade original. Mas é o Espírito, que nos habita, Aquele que cava em nós palavras de vida.
Quando Ele encontra liberdade para atuar em nós, faz brotar das entranhas das palavras sua riqueza escondida. Por isso, Ele é o “Espírito da Verdade”: não a verdade racional, dogmática, doutrinária...
Refere-se à “verdade profunda” que nos diz que fomos criados para uma Vida plena e para contribuir a que cada ser humano participe de tal Vida. Ele é a “verdade íntima” que nos diz que, no mais profundo de nós mesmos, não só pulsa um coração, mas também um Deus que inspira em todos nós uma maneira original de ser mais humano. Ele é a “verdade autêntica”: somos filhos(as), irmãos(ãs) e somos chamados(as) a viver como tais.
Mais ainda: o “Espírito da verdade” nos convida a viver na “verdade” de Jesus em meio a uma sociedade onde a mentira é considerada estratégia, a manipulação é vista como bom negócio, a irresponsabilidade é confundida com a tolerância, a injustiça é identificada com a ordem estabelecida, a arbitrariedade é propagada como ato de liberdade, a falta de respeito e a violência verbal como expressões de sinceridade...
Para além das imagens e símbolos, é decisivo re-descobrir a presença do Espírito de Deus que, dentro de cada um de nós, provoca movimentos, ativa as brasas escondidas no coração, nos faz fortes, alegres, valentes, apaixonados(as), audazes e sábios(as). Devemos acolhê-lo com coração simples e confiado, abrindo espaço para que Ele atue com liberdade, inspirando-nos e fazendo-nos mais criativos. É Ele que dá sabor e sentido à nossa existência e nos enraíza no modo de ser e de viver de Jesus.
Conduzidos(as) pelo Espírito de Jesus, mergulhamos em nosso mundo com os olhos abertos, com os ouvidos atentos, com o coração sensível para ter acesso à verdade profunda de toda a realidade. Tudo é perpassado por essa presença alentadora, que “faz novas todas as coisas”.
Este Espírito de Vida subsiste em tudo e em todos, embora muitas vezes nos tornamos traidores(as) do Seu sopro com nossos exclusivismos, condenações e rejeição do pluralismo fomentado pelo mesmo Espírito.
Nenhuma espiritualidade e nenhuma igreja tem o monopólio do Espírito de Cristo, que sopra onde quer, como e quando quer, sem que o controlemos; para o Sopro, não há barreiras e nem fronteiras.
Todos e todas estamos em caminho, envolvidos no dinamismo contínuo desse Espírito Pascal.
Texto bíblico: Jo 14,15-21
Na oração: Pela conversa a pessoa manifesta quem ela é. “Onde está sua conversa, aí está seu coração”.
- Quais são suas conversas? Elas animam os outros, eleva-os, “aquecem seus corações?...
- Aguce seus sentidos, abra o coração; há tantos que não podem mais esperar, pois ansiosos aguardam uma presença que acolha e uma palavra que os anime.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Na casa de meu Pai há muitas moradas” (Jo 14,2)
Sabemos que o Evangelho deste domingo antecede à Paixão e Morte de Jesus. Então, por que colocá-lo no contexto de Ressurreição? E a razão está centrada na atuação mesma de Jesus. Ele antecipou, na sua vida pública, que o destino definitivo do ser humano é o coração de Deus. Somos de Deus; em Deus, já “somos seres ressuscitados”.
O grupo mais próximo de Jesus está vivendo um momento de máxima tensão e medo. O ambiente está carregado: a traição de Judas, o anúncio da negação de Pedro, a revelação da Sua partida. Apesar do temor e da inquietação pairando no ar, Jesus diz coisas que nunca dissera antes: palavras condensadas, luminosas, mobilizadoras, procurando quebrar o clima pesado e convidando os seus amigos à calma, à confiança e revelando que na casa do Pai há muitas moradas. Todos estão (estamos) envolvidos por este amor providente e cuidadoso do Deus Pai e Mãe; no seu coração cabem todos.
O contexto tenso vivido pelos discípulos nos revela que o medo e a angústia estão presentes no ser humano desde as origens. Todo ser humano atravessa certos momentos da vida marcado pela experiência do medo e, em algumas ocasiões, de angústia.
O medo é uma vivência forte e intensa que sentimos diante da presença de um perigo, mais ou menos imediato e concreto.
A angústia, que no seu sentido original latino (“angustus”) significa estreito, apertado, sem espaço, é um estado afetivo doentio que aparece como reação diante de um perigo desconhecido, difuso, mas que afeta e trava toda o nosso ser, até seu último neurônio.
O medo e a angústia podem impregnar nossa vida e pode provir das causas mais diversas: medo diante da enfermidade, do fracasso, dos problemas afetivos e econômicos, da pandemia... Seja como for, o medo e a angústia podem fazer-se presentes em nós e bloqueiam nossas vidas, paralisando toda iniciativa e criatividade.
Quando estamos atravessando uma crise grave, como aquela vivida por Jesus e seus discípulos na véspera da Paixão, é reconfortante entrar na profundidade de nosso ser e deixar ressoar estas palavras: “não se perturbe o vosso coração; tende fé em Deus, tende fé em mim também”.
É a experiência do encontro com o Ressuscitado que nos pacifica, mesmo em situações de crises, fracassos, horizontes sem saída..., quando o medo e a angústia se manifestam com mais força.
A serenidade é uma vivência profunda, íntima, salutar... De repente, alcançamos uma paz inspiradora, uma paz que ninguém pode nos comunicar; uma alegria serena que pacifica nosso interior. Basta permanecer nessa paz, na nossa morada interior. Por isso, Jesus fala de lugares, de moradas..., espaços que pacificam e nos livram das angústias e medos. E o coração de Deus é a morada pacificadora por excelência. O “lugar” do ser humano é Deus; viemos de Deus e retornaremos a Ele. “Só Deus basta” (S. Teresa).
É da nossa condição humana buscar um espaço, um lugar hospitaleiro e acolhedor, o lugar onde nos situamos no mundo e onde podemos ser encontrados. Como é bom experimentar que todos temos lugar, espaço! Deus mesmo se faz espaço amoroso para nós, nos concede um lugar inspirador.
Sabemos que o ser humano não teria como sobreviver sem um lugar, sem um espaço. Assim como somos seres de inteligência, sensibilidade, relação, etc., também somos seres de lugares (“homo locus”); não qualquer lugar, mas aquele onde possamos nos descobrir capazes de amar e sermos amados, de acompanhar e sermos acompanhados, de contribuir e sermos criativos, de realizar e sentir-nos realizados.
O espaço faz parte do ar que respiramos em nível fisiológico e biológico, como faz parte das nossas experiências interiores.
A nossa sociedade parece estar indo à deriva justamente porque não sabe mais reconhecer “espaços diferentes e vitais”, porque tudo se torna igual e os lugares não falam mais, pois carecem de sentido e se revelam como lugares vazios. Os espaços são violados, os “lugares sagrados” são profanados, os “ambientes” carregados de sentido e de história já não revelam mais nada...
Esse é o primeiro sintoma de uma visão humana desastrosa e desastrada. Na insignificância e no achata-mento dos espaços está o primeiro e mais grave esmagamento do pensamento e da consciência, a ruptura das relações sociais, a frieza ecológica e o definhamento das experiências religiosas.
Neste mundo disperso, carente de espaços humanizadores, o evangelho de hoje nos dá referências e amparo. E a primeira referência que nos pacifica é a “casa”. “Na casa de meu Pai há muitas moradas”.
Caminhamos para a “casa” de Deus, sendo “casa” do mesmo Deus. Podemos, então, afirmar que quem realmente habita “nossa casa” não é o “eu”, mas Deus. “Em nós, Deus está em sua casa” (Mestre Eckhart). Esta morada interior é o espaço de transcendência, de oração, de admiração, de mistério, de silêncio; morada aberta e acolhedora, ambiente da comunhão, da comunicação, da intimidade; é a partir desta morada carregada de presenças que se vai ao Pai (Grande Morada).
Nesse sentido, a casa é mais do que uma realidade física, feita de quatro paredes, portas, janelas e telhado. Casa é uma experiência existencial primitiva, ligada ao que há de mais precioso na vida humana, que é a relação afetiva entre aqueles que a habitam e com aqueles que nela são acolhidos.
Casa, espaço do mundo que nós escolhemos, preparamos, organizamos, adornamos e fazemos a moradia a partir da qual contemplamos a Terra e o Céu. Por isso ela é reveladora de nossa identidade. “Dize-me como é tua casa e te direi quem és”. Ela é o espelho mais honesto dos nossos hábitos, o abrigo dos nossos medos, a nossa fotografia. É por este motivo, talvez, que muitos fogem da própria casa: não querem enxergar a si mesmos.
A casa nos ajuda a fincar raízes neste mundo e em nós mesmos; ela é lugar de referência e nos fornece orientação; ela anima nossa espera e alimenta o encontro; conserva nossa história, acolhe e guarda na memória as nossas alegrias e as nossas tristezas, as nossas conquistas e os nossos fracassos...
Estar em casa é estar no seu espaço, na sua intimidade, no lugar de plena liberdade e espontaneidade. Ela é o cenário principal do enredo e dos episódios de nossa vida; é o lugar seguro que nos possibilita repouso e revigoramento afetivo, bem-estar e proteção... Casa representa segurança e refúgio das ameaças que vêm de fora; ela nos oferece um espaço estabilizador e nutridor, suscitando vigor e saúde integral. Sem ela facilmente perdemos a calma e o equilíbrio, tornando-nos presas fáceis da agitação, da perturbação, do medo e da angústia.
O lugar cotidiano da casa se converte na epifania do divino, no lugar concreto do encontro com Aquele que faz de nossa casa, Sua morada.
Nossas moradas provisórias nos revelam que todos somos peregrinos em busca da morada definitiva; nosso coração anseia pelas moradas eternas: o coração do Pai, onde cabem todos.
Textos bíblicos: Jo. 14,1-12
Na oração: A casa é também a instância configuradora de nossa experiência de fé.
Diante de tantos ruídos e imagens que nos violentam, a casa torna-se o lugar da escuta, do silêncio, da interioridade e da comunhão com o Transcendente, através de mediações simples como uma escuta musical atenta, uma boa leitura ou o exercício diário da oração.
- Entre em sua casa e deixe que o Espírito transite livremente por ela, afastando todo temor, tristeza e angústia...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10)
Todo 4º. domingo de Páscoa é dedicado ao tema do Bom Pastor. Embora o Evangelho de hoje não fale de “aparições” do Ressuscitado, não nos afastamos do tema pascal: a “Vida” é o verdadeiro tema pascal.
A fé pascal é isso: crer na vida. E quando dizemos “crer na vida”, não estamos falando em professar crenças, dogmas, doutrinas... Dizemos viver; dizemos confiar no potencial de vida em nós mesmos e nos outros; dizemos rebelar-nos contra todos os poderes que asfixiam a vida; dizemos fazer-nos presentes junto àqueles cujas vidas estão feridas; dizemos ser humilde fermento que transforma e levanta a história; dizemos respirar em paz e continuar caminhando cada dia, apesar do fracasso, da doença e da morte...
Crer na Páscoa é uma maneira original de ser e de viver.
Para crer n’Aquele que é o Vivente, não é necessário sepulcros vazios, nem anjos e nem aparições milagrosas, pois tudo está “animado”(inspirado) pelo Anjo da Vida, tudo é milagre, todos os sepulcros estão vazios de ausência, mas cheios de boa presença, da Graça de ser que Jesus viveu. Só é preciso que abramos o coração e os olhos para apalpar a Vida em todas as mãos e pés feridos, em tudo o que é e palpita: o caminhante anônimo, o imigrante expulso, os índios invadidos, o ancião solitário, a criança abandonada, os enfermos esquecidos, os sem teto-pão-trabalho...
A presença do Pastor Ressuscitado, que vem ao nosso encontro em cada passo, nos chama pelo nosso nome e nos diz no segredo do coração: “amigo(a), não temas; confia e vive!”.
O Evangelho é um contínuo chamado à Vida. Não qualquer vida, mas a Vida verdadeira, a Vida que deseja ser despertada para romper com tudo aquilo que a limita. Por isso, o relato do Bom Pastor é uma verdadeira catequese sobre o encontro com Aquele que é Vida e que é fonte de Vida em crescente amplitude.
Jesus não vem prolongar a vida biológica, vem comunicar a Vida de Deus que Ele mesmo possui pelo Espírito e da qual pode dispor. Ao mesmo tempo, vem ativar em todos nós as potencialidades de vida que ainda não encontraram possibilidades de expressão. Somos um manancial de vida que se visibiliza na criatividade, na capacidade de sonhar, no encontro compassivo com os outros, na comunhão com todas as manifestações de vida.
Em Jesus acontece algo totalmente novo; Ele traz uma nova maneira de viver e de comunicar vida que não cabe nos nossos esquemas. É justamente isso o que mais atrai em sua pessoa. Quem entra em comunhão de vida com Ele, conhece uma vida diferente, de qualidade nova, expansiva...
Nesse sentido, a experiência do Seguimento de Jesus é uma verdadeira “escola de vida”, cujo aprendizado nos leva ao âmago do nosso ser, para enraizar nossa vida no coração da Trindade, dele haurir a seiva da vida divina e deixar-nos plenificar pela graça transbordante de Deus.
Pois, em nossa vida flui a plenitude da Vida, e nossa vida flui para sua plenitude, em passagem ou páscoa permanente. Nada mais contrário ao espírito do Evangelho que a vida instalada e uma existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos, definitivos, tranqüilizadores...
Jesus de Nazaré “passou fazendo o bem”, não de qualquer modo. Aquele homem que movia multidões em toda a Galileia, por sua pregação e milagres, não era um revolucionário violento. E, no entanto, nem por isso, deixou de ser inquietante e perigoso. Como Bom Pastor, aproximou-se e cuidou, de forma preferencial, dos mais fracos, pequenos, necessitados..., deixando-se “tocar” e “tocando” as situações humanas mais rejeitadas, mais quebradas, mais dolorosas, mais sofredoras e marginalizadas...
Como Bom Pastor, Jesus transbordou ternura sobre nossa humanidade ferida, despertando a vida atrofiada e escondida no interior de cada um(a).
Para o evangelista João, a “vida” é uma totalidade, ou seja, a vida presente, a vida atual, possui tal plenitude que, com toda razão, podemos chamá-la de “vida eterna”; uma vida com tal força que nem a morte mesma terá poder sobre ela. A vida eterna, então, não é um prolongamento ao infinito de nossa vida biológica. É a dimensão inesgotável e decisiva de nossa existência. Ela torna-se “eterna” desde já.
Precisamos adquirir uma consciência mais profunda da vida enquanto “seres já ressuscitados”, perceber as pulsações desta vida eterna que está em nós, do mesmo modo que, prestando atenção, percebemos as batidas do coração de toda a criação. Nesse sentido, a vida tem a dimensão do milagre e até na morte anuncia o início de algo novo; ela carrega no seu interior o destino da ressurreição. “Minha vida é uma sucessão de milagres interiores” (Etty Hillesum). Vida plena prometida por Jesus.
Nem sempre sabemos viver de maneira intensa: conformamo-nos com uma vida estreita, estéril, fechada ao novo, carregada de “murmurações”, presa ao cotidiano repetitivo e “normótico”. O dinamismo do Seguimento de Jesus, no entanto, é gerar vida, possibilitar que o(a) discípulo(a) viva a partir da verdade mais profunda de si mesmo(a); ou seja, viver a partir do coração, do “ser profundo”.
A imagem de Jesus “Bom Pastor”, conduzindo e abrindo novos espaços para suas ovelhas, nos ajuda a conhecer nossa própria interioridade (redil) e despertar nossa vida, arrancando-a de seu fatal “ponto morto”, de seus limites estreitos e constituindo-a como vida que se desloca em direção a novos horizontes.
O seguimento proporciona vigor inesgotável, nossa vida se destrava e torna-se potencial de inovação criadora, expressão permanente de liberdade, consciência, amor, arte, alegria, compaixão.... É vida em movimento, gesto de ir além de nós mesmos; vida fecunda, potencial humano. Vida com fome e sede de significado, que busca o sentido... Vida que é encontro, interação, comunhão, solidariedade. Vida que é seduzida pelo amor, pela ternura. Vida que desperta o olhar para o vasto mundo. Vida que é voz, é canto, é dança, é festa, é convocação...
Somos Vida, não há lugar para o temor!
Na Igreja de hoje, assim como naquela de São João, devemos ser presenças de compreensão, de abertura, de acolhida, de compaixão, de tolerância e de perdão, caso queiramos multiplicar a vida em abundância e semear a esperança. Se nós asfixiamos as pessoas, se recusamos a acolhê-las como são, se as condenamos, não podemos pretender querer alimentar a vida em abundância n’aqueles(as) que nos são confiados. Todos nós temos esta responsabilidade de abrir espaços para que a vida vá se expandindo. É a mais bela das vocações e é a única maneira de ser fiel ao Cristo Bom Pastor.
Na vivência pascal somos tomados de uma “moção à vida”, que nos impulsiona a prolongar o ministério do Bom Pastor, sempre em favor da vida.
Texto bíblico: Jo 10,1-10
Na oração: Para quem vive uma “passagem” autêntica (Páscoa) é impossível não ser movido a viver mais intensamente, a valorizar a vida e a colocar-se a serviço dela; porque, neste percurso litúrgico, cada pessoa experimenta a paixão eterna de Jesus pela vida e por todas as manifestações de vida na face da terra. No tempo pascal, cada seguidor(a) do Bom Pastor revisa sua própria vida à luz do amor criador e redentor de Deus; percebe o dom da vida na sua origem e alimenta a gratidão para expandir este dom como presença criativa e original.
- Jesus continua exercendo seu “pastoreio” através de seus(suas) seguidores(as); que ações concretas, você pode ativar no dia-a-dia, para que nelas transpareça o coração do Bom Pastor?
"Conversavam sobre todas as coisas que tinham acontecido” (Lc 24,14)
Nossa vida é parte da História, e esta, por sua vez, é formada pelas histórias de nossas vidas, pontilhadas e marcadas pela presença de outras muitas histórias.
A História, por si mesma, é provocante e nos fascina; ela tem um estranho poder de sedução. Nós nos reconhecemos nas histórias da História; isso nos facilita tomar consciência de onde estamos e quem somos, e nos ajuda a assumir decisões mais maduras frente aos desafios e surpresas que a vida nos reserva.
A vida só tem sentido quando se torna História, isto é, quando não se limita a repetir o passado, mas quando engendra algo novo e diferente a partir de uma História internalizada e saboreada.
É somente no nível mais profundo que o ser humano transforma seu “tempo” em história e seu “espaço” em encontro.
No relato dos “discípulos de Emaús”, o encontro com o Ressuscitado nos ajuda a “ler” a História, pessoal e coletiva, de uma maneira diferente e instigante. A história triste e fracassada dos dois discípulos adquire um novo sentido a partir da luz dos relatos bíblicos que o Peregrino traz à memória.
A partir da “memória bíblica”, eles são movidos a “re-ler” a própria história com novos olhos, re-construindo-a, dando a ela um novo significado e deixando-se impelir a escrever uma nova história.
Marcados pelo dinamismo da Ressurreição, cremos profundamente na força evocativa e transformadora da história; encontrar-nos com ela significa caminharmos para o interior do mistério da mesma história; significa também deixar-nos questionar, iluminar e mobilizar por ela.
Com isso, re-iniciamos um novo caminho de aventura, que consiste não só em receber e celebrar a história, mas atualizá-la, reescrevê-la, confirmá-la... Uma história com rosto de futuro... e um futuro inspirador.
A história se revela, assim, como um húmus vivente, uma atmosfera de graça, uma torrente subterrânea na qual se nutre todo o processo do seguimento de Jesus. Não é fora da História e de sua história que o(a) seguidor(a) de Jesus pode reconhecer a Vontade de Deus e escutar Seu apelo; porque “Deus se fez História” e só o Verbo Encarnado, agora Ressuscitado, pode ser “o verdadeiro fundamento da história” (S. Inácio). A partir do Jesus ressuscitado, a história de cada um e da humanidade inteira adquire uma nova luz e um novo sentido e se abre a um vasto horizonte de compromisso.
A história pessoal do cristão e a história do mundo tornam-se, portanto, o “lugar” habitual da experiência de Deus, a montanha da misteriosa sarça ardente que não se consome.
Fazer memória das histórias não significa querer mudá-las, mas adquirir nova perspectiva, um novo olhar. Com freqüência, esta perspectiva nos ajuda a entender melhor nossa situação atual. Trata-se da “memória agradecida”: tudo tem sentido, nada é desperdiçado...
Quando a história é contada e re-contada, acontece a cura da memória. Em lugar de uma história opressiva e pesada, passamos a contar com uma “história redentora”. O momento da Graça é precisamente esse: quando, de repente, a perspectiva muda, encontramos um “novo sentido” e surge uma saída do emara-nhado de lembranças, emoções e histórias de fracassos e decepções.
Isso aparece claramente no relato evangélico deste domingo.
Na narrativa, o Forasteiro ajuda os dois discípulos a “desatar” o nó de suas lembranças traumáticas e a compor uma nova história. A história de Jesus, com seu fim decepcionante, tornou-se pesada e eles procuram fugir de Jerusalém e da terrível lembrança da morte do Mestre. Mas a história os acompanha na estrada. Não param de repeti-la. Mesmo quando dizem as palavras certas, a intensidade emocional da experiência não lhes permite ouvir a história de uma perspectiva diferente.
Enquanto caminhavam, conversavam e discutiam com tal intensidade que nem perceberam a aproximação do forasteiro. Falar de maneira tão intensa de uma experiência recente demonstra que ela teve forte impacto na vida deles, mas o significado desta dura experiência está envolvido numa obscuridade.
Para eles, a história não faz sentido. A história de Jesus, com seu fim decepcionante, tornou-se agora traumática. Esforçam-se para encontrar a única coisa que vai ajudá-los a superar a dor, transformar a lembrança, permitir que continuem suas vidas, refugiando-se no passado.
Foi preciso discernimento por parte do Forasteiro para libertar seus discípulos daquela interpretação nociva da história. Ele reorienta a história sem diminuir a gravidade do que acontecera.
O Forasteiro não só reconta a história de Jesus, mas também tem de remodelar todas as histórias das relações de Deus com Israel. A “história pessoal” é “recontada” e considerada no contexto de uma história muito mais ampla; há uma ligação profunda entre todas as histórias, constituindo-se na grande História da Salvação. A descoberta desta nova perspectiva acontece como momento de graça que desce sobre eles.
A história re-contada começa a reconstruir a humanidade deles, a esperança vai retornando, os corações vão se aquecendo, a alegria vai surgindo em seus rostos... O Forasteiro, ao criar um círculo de confiança, abriu “espaço terapêutico” para que os discípulos contassem sua história em segurança e começassem a re-alimentar uma nova esperança. Foi criado um ambiente de hospitalidade que culminou na Ceia.
É nesse ambiente que a taça do sofrimento transformou-se na “taça da esperança”.
Das cinzas brotaram a esperança, o entusiasmo e os sonhos... e eles apressaram-se a voltar para Jerusalém a fim de partilhar a descoberta de um novo sentido da história.
A partir do fundamento da História (Jesus Cristo), contemplamos nossa própria história (pessoal e institucional): história que deve ser observada, lida, discernida. Tal experiência nos ajuda a abrir os olhos para a novidade inesgotável da vida, nos faz “aquecer o coração”, desperta em nós o desejo e mobiliza todas as nossas capacidades para um compromisso de ação transformadora na história pessoal e coletiva.
A História está sempre aberta, desafiando-nos, arrancando-nos de nosso imobilismo, despertando nossa criatividade para ser re-escrita de uma maneira diferente.
Nossa história pode ser poderosa motivadora de mudança; ela nos levanta quando estamos dispersos e sem direção; ela não é apenas relato do passado, mas parte viva do que somos agora; ela nos traz para “casa”, para nossa própria integridade e identidade.
Assim, a experiência pascal significa “conhecer”, “sentir” e “amar” a nossa própria história. É uma verdadeira experiência de Ressurreição.
Só assim a história se converte em “Epifania” (manifestação) de Deus e nos permite compreender, acolher e integrar tudo o que acontece, dentro e fora de nós.
Este é um tempo de Graça: o encontro vivo da “história” celebrada com o compromisso de construção da “nova história”, mais ousada e mais criativa. Trata-se de um momento tão fortalecedor e jubiloso que estremecemos reverentes diante do que celebramos.
Sem a luz da Ressurreição, nossa história, pessoal e coletiva, se reduz a eventos opacos, vazios, tristes...
Com a Ressurreição, a história se ilumina, se transfigura e nos desafia. A Ressurreição plenifica, dá sentido e costura os eventos, constituindo-se em “História de Salvação”. Ela nos faz ver o que todo mundo vê, mas de um “modo” diferente: vemos mais longe, vemos além, vemos mais fundo...
Texto bíblico: Lc 24,13-35
Na oração: Diante da história pessoal e social, sinto-me desafiado? Paralisado(a)? com medo? Inquieto(a)?
Quanto de esperança carrego em meu interior?
O que me faz abrasar o coração diante de uma história que parece um fracasso?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“...mostrou-lhes as mãos e o lado” (Jo 20,20)
No segundo domingo de Páscoa de cada ano, a liturgia nos apresenta o belíssimo relato que só se encontra no evangelho de João. Esta dupla aparição do Ressuscitado aos discípulos, primeiro na ausência de Tomé, e depois na sua presença, nos diz algo sobre a comunidade cristã primitiva, mas também traz luz sobre as nossas comunidades hoje.
Aí está constituída a nova comunidade pascal; uma comunidade em torno à presença de Jesus; uma comunidade chamada a viver da experiência do encontro com Aquele que consumou sua vida em favor da vida de todos; suas chagas serão, de agora em diante, a melhor expressão da identidade entre o Crucificado e o Ressuscitado. Uma comunidade animada pelo mesmo Espírito de Jesus; uma comunidade não fechada sobre si mesma, alienada das chagas da humanidade, mas aberta, como Ele, ao amor universal para com todas as pessoas. Uma comunidade de amor, capaz de viver o perdão e ser presença misericordiosa.
Somos já “seres ressuscitados” quando vivemos estes dons do Ressuscitado, comprometidos com o Seu projeto carregado de vida, para aliviar as dores e as feridas da humanidade.
A CF deste ano, com o tema “Vida: dom e missão”, nos faz tomar consciência que, aquele(a) que se experimenta a si mesmo como “Vida” é já uma pessoa “ressuscitada”. Pois a vida autêntica é a vida movida, iluminada, impulsionada pelo amor.
Quando acolhemos a presença do Ressuscitado, nossa vida se destrava e torna-se potencial de inovação criadora, expressão permanente de liberdade, consciência, amor, arte, alegria, compaixão.... É vida em movimento, gesto de ir além de nós mesmos; vida fecunda, potencial humano. Vida com fome e sede de significado, que busca o sentido... Vida que é encontro, interação, comunhão, solidariedade. Vida que é seduzida pelo amor, pela ternura. Vida que desperta o olhar para o vasto mundo e move à missão.
Chama-nos a atenção (sobretudo nos evangelhos de Lucas e de João) que Jesus ressuscitado tenha tanto interesse em mostrar a seus discípulos as chagas de suas mãos, seus pés e de seu lado aberto. Quê significa isto, um ressuscitado com chagas? Diante de um martirizado ressuscitado, qualquer um esperaria ver um corpo totalmente renovado, rejuvenescido, limpo, sem feridas e marcas do martírio.
E, no entanto, Jesus ressuscitado toma a iniciativa, deixa-se ver, faz-se presença, provoca um encontro. Os discípulos e discípulas buscam um cadáver, para lhe manifestar respeito e carinho. Jesus ressuscitado, como bom pedagogo, busca aqueles e aquelas que o tinham seguido desde a Galileia e, respeitando a liberdade e os tempos de cada um(a), os ressuscita também, reconstruindo-os em sua identidade ferida.
As chagas de Jesus ressuscitado são algo mais que um modo de dizer “sou eu mesmo”. Elas são expressão de identidade, ou seja, pertencem a seu novo ser de ressuscitado. Dito de outro modo: Jesus, vencedor da morte, não abandona o que é caduco e frágil da existência mortal. A fragilidade da carne foi assumida na glória do Corpo ressuscitado. Por isso, suas chagas são terapêuticas, pois curam as nossas chagas do fracasso, do medo, da tristeza, da solidão, da dor... São feridas que curam feridas
A ressurreição afeta todo o nosso ser: tudo é iluminado, re-significado, tudo adquire novo sentido.
Em meio à comunidade dos discípulos reunida, o evangelho de João destaca a figura de Tomé, elaborando em torno a ele um relado de muita densidade e com muita inspiração. Tomé é a expressão do ser humano a quem lhe custa crer na ressurreição do Jesus Histórico, do Jesus das chagas nas mãos e no lado, do Jesus da carne, do Jesus do povo crucificado.
Provavelmente, ele acreditava em Jesus, mas em um “Jesus espiritual”, puramente interior, sem necessidade de compromisso comunitário, sem chagas no seu corpo. Talvez, ele estivesse mais centrado no Cristo glorioso, desligado da história de Jesus, das mãos que tocaram os pobres e curaram os doentes, do coração que amou os excluídos da sociedade, dos pés que romperam barreiras e fronteiras...
Por meio de outros testemunhos da literatura cristã antiga, sabemos que Tomé queria tocar em Jesus só de um modo espiritual, criando um tipo de comunidade de feição “quase angelical”, distanciando-se da humanidade de Jesus e vivendo uma religião desumanizadora, centrada só em ritos, doutrinas, leis...
Contra isso, a comunidade lhe diz que é preciso “tocar nas chagas de Jesus”, que o Ressuscitado é o mesmo Jesus da História, Aquele que foi chagado pela violência e pela rejeição. O Senhor Ressuscitado continua sendo aquele que carrega em suas mãos e lado as feridas de sua entrega, os sinais de seu amor crucificado em favor de todos. Este Jesus pascal, continua estando presente nas chagas dos homens e mulheres de mãos quebradas, na ferida do lado dos homens e mulheres que sofrem.
As chagas de Jesus, em seu lado e em suas mãos, são as chagas de um perseguido e condenado pela “justiça” do mundo. Isso significa que o Jesus ressuscitado não é um “fantasma”, mas o mesmo Jesus que foi crucificado.
Ao mostrar suas chagas, Jesus ressuscitado revela que as chagas da humanidade continuam abertas, esperando que seus(suas) seguidores(as) prolonguem os gestos de cura e cuidado do mesmo Jesus. São estes e estas que hoje atestam a vitalidade do Ressuscitado.
No entanto, não há mais o Cristo visível para tocar. Os únicos traços para ver e tocar, que confirmam a realidade de sua presença, são as pessoas de cada tempo que lutam por uma terra onde os pobres e os excluídos terão seu lugar, onde o ódio não rege as relações, onde a bondade predomina sobre o desprezo, onde o respeito impede a violência capaz dos piores instintos, onde a acolhida impede o fechamento em si mesmo.
Portanto, crer na Ressurreição não é simples adesão a um dogma de fé, é compromisso com a vida.
O “toque pascal” de Tomé (“coloque tua mão em minha ferida...”) é o “toque das chagas”, é a experiência dos crucificados do mundo. Só podemos “tocar” em Jesus de verdade, e confessar sua Páscoa, “tocando” (ajudando) os enfermos e crucificados da história.
Não há experiência pascal se não descobrimos Jesus ressuscitado nas chagas dos pobres, doentes e excluídos de nosso mundo; “tocar” estas chagas vai além de um gesto físico; implica ser presença solidária, acompanhar, ajudar, alimentar uma sintonia e comunhão com aqueles(as) que clamam por uma presença consoladora, carregada de ternura.
Enfim, o evangelho deste domingo nos pede:
- Que abramos as portas e as janelas das comunidades cristãos, para que todos possam ver o quanto de vida há dentro dela, para que vejam quem somos, como vivemos..., de maneira que possamos oferecer e compartilhar espaço de perdão, de acolhida sem preconceitos, de amor oblativo...; é preciso afastar a pedra do dogmatismo, do legalismo, do ritualismo... que nos mantém sufocados ou respirando o ar fétido dos túmulos;
- Que vivamos em comunhão, que permitamos que Tomé retorne à comunidade. A transformação de Tomé implica também uma mudança da Igreja, que o acolhe e lhe oferece um lugar a partir do Jesus crucificado; que ela seja espaço aberto, integrador, acolhedor do diferente.
- Que sonhemos também com uma Igreja que rompa os túmulos do conservadorismo, do legalismo, da apatia, e se abra à desafiante situação de nosso mundo, “vivendo em saída” para “tocar” os chagados e lhes oferecer o dom da unção e do consolo.
Texto bíblico: Jo 20,19-31
Na oração: Nos Exercícios Espirituais, S. Inácio nos convida a considerar como o Ressuscitado exerce o “ofício de consolar”.
Somos, pois, consolados em nossas tribulações e dores para poder consolar os outros nas suas. Trata-se de uma experiência transbordante, expansiva, que nos impulsiona em direção aos outros.
Como seguidores(as) do Vivente, somos chamados(as) a exercer este “ofício de consolar”; a experiência da Ressurreição nos move a “descer” junto à realidade do outro (seus dramas, fracassos, enfermidades, perda de sentido da vida...) e exercer este ministério humanizador. “Ser vida ressuscitada que desperta outras vidas”: vida plenificada, iluminada, integrada... pela experiência de encontro com o Ressuscitado e que flui em direção às vidas bloqueadas, necrosadas... Assim como a consolação é o canal privilegiado pelo qual o Deus da Vida se comunica e atua em nós, o ofício do consolo é o canal por onde flui a vida.
- Como ser presença consoladora nestes tempos de pandemia?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Tiraram o Senhor do túmulo e não sabemos onde o colocaram” (Jo 20,2)
Em Jesus ocorre algo totalmente novo. Ele traz uma nova maneira de viver que não cabe em nossos esquemas, que não se encaixa em nossos hábitos, sempre limitados e estreitos.
O “mistério pascal” é o salto para a novidade, para a beleza, para a transcendência. Imersos na história e na natureza, a Ressurreição nos faz descobrir a verdadeira extensão da Vida.
Não encontramos o Ressuscitado no sepulcro, mas na vida. Não encontramos o Ressuscitado enfaixado e paralisado pela morte, mas livre como a brisa da vida.
A pedra que fora removida do túmulo de Jesus indicou a Maria Madalena uma novidade que seu coração buscava, uma novidade que espanta, enche o coração do desejo de procura: “Ele vive”.
O caminho dela em direção ao túmulo é símbolo da coragem de atravessar o escuro da madrugada para ver resplandecer uma nova aurora em sua vida, pela força criadora da única Presença que tudo sustenta, tudo recria e enche de amor. A presença do Cristo Ressuscitado.
Na madrugada da Páscoa, Maria Madalena vai ao sepulcro; ela é símbolo daquela comunidade que se movia entre a luz e a obscuridade. Ainda vive focada no sepulcro (morte); por isso, “ainda estava escuro”. Mas, ao mesmo tempo, começava a clarear (“ao amanhecer”) e a “pedra estava removida” (a pedra da dúvida, da tristeza e da resignação fatalista). Tudo parece anunciar algo definitivamente novo: é “o primeiro dia da semana”; trata-se, nada menos, que de uma nova Criação.
Segundo os evangelistas, as mulheres são as primeiras testemunhas da ressurreição de Jesus Cristo, pois Ele aparece primeiramente a elas. Segundo Tomás de Aquino o motivo desta precedência é porque elas estavam melhor preparadas que os homens para entender e acolher a maravilha da Vida.
E estavam melhor preparadas porque O tinham amado mais.
Na ressurreição, a vida emerge de forma misteriosa; ela se impõe, simplesmente. Tal realidade desperta fascinação, provoca admiração e veneração..., porque a vida é sempre sagrada. Diante dela ficamos exta-siados, boquiabertos, escancarados os olhos e afiados os ouvidos. Ela nos atrai por sua força interna.
Portador de uma vida inesgotável, revelada na madrugada pascal, o ser humano vive para mergulhar em algo diferente, novo e melhor. A vida, desde o mais íntimo da pessoa humana, deseja ser despertada e ilu-minada em plenitude. Amar é romper a casca para que a vida se expanda na doação. A morte do falso “eu” é a condição para que a vida se liberte.
Vida plena prometida por Jesus: “Eu vim para que tenham vida e vida em abundância” (Jo. 10,10).
“Viver como ressuscitado” implica esvaziar-se do “ego”, para deixar transparecer o que há de divino.
Quem se experimenta a si mesmo como “Vida” é já uma pessoa “ressuscitada” e isso faz a grande diferença, pois tem um impacto no seu modo de ser e de viver.
Marcadas pela ressurreição, as pessoas captam muitos detalhes que antes não haviam percebido, vivem intensamente, amam com mais paixão, prestam atenção a muitas coisas que antes lhes passavam desapercebidas. Tem um comportamento diferente para com os outros; há, nestas pessoas, mais ternura, são mais sensíveis à dor e à injustiça. Ao saborear o presente da vida, vivem como se fossem ressuscitadas. Crêem que, amando mais a vida, se afastarão mais da morte e resistirão às hostilidades do mundo presente. E, no entanto, continuam vivendo na mesma casa, no mesmo trabalho, fazendo as mesmas coisas... , mas seu olhar audacioso desperta as consciências, sacode as velhas estruturas, derruba os muros da exclusão.
A Ressurreição não só “dá o que pensar”, mas sobretudo, “dá o que fazer”.
O encontro com o Ressuscitado é fonte de vida e vida em crescente amplitude. Quando nos dispomos a caminhar com Ele, sob a ação do Espírito, realiza-se em nós um processo de abertura e de superação, de crescimento e de reconstrução de nós mesmos...; tomamos consciência de uma dimensão profunda de nosso interior, que nos permite experimentar uma outra vida, que supera tudo o que vivemos até então.
A “vida eterna”, então, não é um prolongamento ao infinito de nossa vida biológica. É a dimensão inesgotável e decisiva de nossa existência. Ela torna-se “eterna” desde já.
A experiência da Ressurreição nos revela que a “vida” é uma totalidade, ou seja, a vida presente, a vida atual, é uma vida que tem tal plenitude que, com toda razão, podemos chamá-la de “vida eterna”, uma vida com tal força e tão sem limites, que nem a morte mesma terá poder sobre ela.
Precisamos adquirir uma consciência mais profunda da vida do espírito, perceber as pulsações desta vida eterna que está em nós, do mesmo modo que, prestando atenção, percebemos as batidas de nosso coração.
A experiência do Ressuscitado nos faz ter um “caso de amor com a vida”. Pois a vida autêntica é a vida movida, iluminada, impulsionada pelo amor.
Nem sempre sabemos viver: conformamo-nos com uma vida estreita, estéril, fechada ao novo, carregada de “murmurações”. Quando acolhemos a presença do Ressuscitado, nossa vida se destrava e torna-se potencial de inovação criadora, expressão permanente de liberdade, consciência, amor, arte, alegria, com-paixão.... É vida em movimento, gesto de ir além de nós mesmos; vida fecunda, potencial humano. Vida com fome e sede de significado, que busca o sentido... Vida que é encontro, interação, comunhão, solidariedade. Vida que é seduzida pelo amor, pela ternura. Vida que desperta o olhar para o vasto mundo. Vida que é voz, é canto, é dança, é festa, é convocação...
Com sua presença compassiva, o Ressuscitado desperta nossa vida, arrancando-a de seus limites estreitos e constituindo-a como vida expansiva em direção a novos horizontes. O Ressuscitado nos precede, nos sustenta e, na liberdade de seu amor, nos impele a ampliar nossa vida a serviço. Toda peregrinação, em clima de admiração e assombro, se revela rica em descobertas e surpresas, e desperta o coração para dimensões maiores que a rotina de cada dia. Nesse sentido, a vida tem a dimensão do milagre e até na morte anuncia o início de algo novo; ela carrega no seu interior o destino da ressurreição.
Essa nova Vida é capacidade de amar como Jesus amou; é “passar pela vida fazendo o bem”. Somos seres ressuscitados se vivemos os mesmos critérios e valores de Jesus, engajados em seu mesmo projeto. A “vivência pascal” leva a querer algo mais. É “antecipação criadora”; ela tem “rosto novo”. É o futuro que ainda pode ser convertido em “história nova”; é vida vivida com encantamento. A “pedra pesada” da nossa impotência diante da dor, do fracasso e da morte, foi tirada pelo Mestre, que, nos chama pelo “nome” e nos desafia a viver como ressuscitados.
Nossa vida é uma experiência a acolher, uma aventura a amar e um mistério a celebrar. Rompido o túmulo, removida a pedra, resta caminhar... Deixemo-nos iluminar, levemos a Luz da Ressurreição nas nossas pobres e frá-geis mãos, iluminando os recantos do nosso cotidiano. Pois vida é um contínuo despedir-se e partir; é inútil permanecer junto ao túmu-lo. Porque o ausente “aqui” está presente na “Galileia”. E a Galileia é o lugar do compromisso com a vida, a justiça e a paz.
Texto bíblico: Jo. 20,1-9
Na oração: Para viver a partir do ser mais profundo, é preciso dedicar uma atenção especial ao próprio coração e aprender a regozijar-se da maravilhosa vida de Deus em cada um. Basta um repouso e o estar presente para fazer acalmar a agitação interior e aproximar-se da fonte da vida.
- É tempo de esvaziar sepulcros; é tempo de remover as pedras da entrada do coração que impedem a entrada da luz, da vida, do canto...? O que lhe impede afastá-las?
- Faça memória das experiências de ressurreição: nos encontros, na missão, sentimentos oceânicos de consolação, clareza diante do sentido da vida, amar e sentir-se amado(a), a vivência da bondade e do bem...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Eles pegaram o corpo de Jesus e o envolveram, com os perfumes, em faixas de linho...” (Jo 19,40)
Sábado Santo é o dia da “solidão dos vivos”: Jesus ausente; os discípulos escondidos e cheios de medo; a dor de Maria e das mulheres discípulas.... Domina na comunidade cristã um ambiente carregado de morte, um dia esvaziado de toda esperança.
No caminho do seguimento de Jesus também há sábados santos, tanto no nível pessoal como comunitário. Noites escuras, silêncios carregados de tristeza, incapacidade para orar e falta de esperança. Mas este dia também nos ajuda a re-significar o sentido da solidão. Há solidão vazia, que deprime..., mas há solidão que nos faz ter acesso a dimensões desconhecidas de nossa vida.
É preciso, com Jesus, descer ao túmulo de nossa interioridade, transitar por espaços e dimensões não integradas e nem pacificadas. Só quem mergulha nas profundezas de sua existência é capaz de morrer às exigências do “ego” e vislumbrar as potencialidades de vida que ainda não foram ativadas. “Se o grão de trigo que cai na terra, não morre, fica só” (Jo 12,24).
Este espaço de silêncio não é de morte, mas de vida germinal, é noite que aponta à aurora, são as noites escuras da vida que desembocam na alegria da alvorada; é tempo de fé e de esperança, é momento de semear, mesmo que não vejamos os resultados, é tempo de crer que o Espírito do Senhor, criador e doador de vida, está fecundando a história e a terra para seu amadurecimento pascal e escatológico, para a terra nova e o céu novo.
Todos queremos fugir da solidão: queremos escapar de nós mesmos, ocultar nossa fragilidade e impotência, distanciar de nossa responsabilidade. Com isso, nos refugiamos no ativismo, nas distrações da superficialidade, na conexão descompromissada... E assim desembocamos numa solidão egoísta, sem espírito e nem vida, sem amor aos outros, sem verdadeira companhia.
Um dos maiores problemas de nosso mundo ocidental é a falta de solidão verdadeira: temos medo de enfrentar a realidade, de viver em profundidade, de doar nossa vida em transparência. Temos medo de estar sozinhos. Por isso nos cercamos do espetáculo da vida impessoal, dos meios de comunicação, de notícias sem fim. Dessa forma inventamos solidões sem comunicação, comunicações sem solidão e sem encontro pessoal. E enquanto isso, há milhões de pessoas condenadas à solidão da doença, da fome, da exclusão, morrendo, como Jesus, em uma Cruz.
Sábado Santo vem nos dizer que só aquele(a) que se conhece e se aceita na solidão, pode sair de si mesmo(a) para viver o encontro. Só um verdadeiro solitário no amor pode ser solidário, só um coração desprendido pode atrair e congregar no amor os outros, formando com eles uma “rede” de vida. Dessa forma, a intimidade do solitário, que é senhor de si mesmo, se transforma em comunhão de vida que enriquece. Esta é a solidão para o encontro, uma intimidade para a companhia.
Na paciente espera pelo Deus Amor, descobrimos o quanto Ele já preencheu nossas vidas. Nossa relação com Ele fica mais profunda e mais madura através da experiência purificadora da sua ausência (assim como duas pessoas que se amam, redescobrem-se depois de longos períodos de ausência). Dando ouvidos a nossos anseios, ouvimos Deus como Criador. Tocando o centro de nossa solidão, sentimos que fomos tocados por mãos misericordiosas. Sentindo nosso infinito desejo de amor, compreendemos que só podemos amar por termos sidos amados antes e que podemos oferecer nossa intimidade apenas porque nascemos da intimidade de Deus.
Sábado Santo, portanto, é o dia do lamento e da espera paciente, carregada de esperança. Acompanhamos Maria e os(as) discípulos(as) neste silêncio denso, nesta espera confiante. Algo pulsa em nosso eu profundo, rebelando-se contra toda apatia e nos recordando a faísca de esperança ali presente. Escutemos nosso interior, em meio ao silêncio!
Contemplemos a espera angustiada de mundo, dos povos, das pessoas. Contemplemos o mundo e a humanidade em seu sábado santo, em seu dia de silêncio, em seu isolamento social.
Esse parece ser o estado da humanidade neste momento; um estado de paralisação e de espera que parece não ter saída. Envolve-nos a obscuridade; estamos no túnel e não vemos a saída. O corpo da humanidade encontra-se ferido, des-vitalizado. Não é a morte, mas tampouco é a vida. Como os discípulos de Emaús, somos fustigados pela incredulidade, pelo desencanto. Ainda não há razões fortes para esperar. Experimentamos o Deus na noite escura, o Deus ausente. Parece que guarda silêncio e que não lhe importa que “desçamos aos infernos”.
Nosso mundo carrega as feridas da doença e da morte; geme em dores de parto. “Sabemos que toda a Criação, até o presente, está gemendo como que em dores de parto, e não só ela, mas também nós, que temos as primícias do Espírito, gememos em nosso íntimo, esperando a condição filial, a redenção de nosso corpo” (Rom 8,22-23).
Só há uma pequena luz que permanece acesa da casa do discípulo amado, na casa daquele a quem Jesus confiou sua Mãe, no momento de sua morte. A Mãe é o símbolo da esperança no Sábado Santo. É o dia “mariano” por excelência. Nunca, como neste dia, ela se sentiu tão só, tão sem corpo. Mas, com certeza, o Abbá de Jesus tinha para ela um segredo, um advento inesperado: o momento de exclamar: “tu és o meu Filho, eu hoje te gerei” (Heb. 1,5).
As mães geram a vida; por isso, custa-lhes crer na morte. Maria continua crendo na vida; ela é mãe demais para esquecer. Seu filho é muito Filho para morrer.
Envolve-nos a noite de uma crise global que afeta a todos de maneira igual; mas, a “noite sabática” reacende a paixão pela vida, desafio mais urgente de nosso tempo; paixão por toda expressão de vida, especialmente pelas vidas mais ameaçadas. Dar vida foi a paixão de Jesus, expresso nestas palavras: “Eu vim para que todos tenham vida e vida abundante” (Jo. 10,10). Dar vida, protegê-la, curá-la, cuidá-la, defender sua dignidade, denunciar tudo o que a ameaça e lutar contra isso foi o que levou Jesus a perder sua própria vida. Tal é a disposição que hoje precisamos cultivar para iluminar a noite de nosso tempo.
Lentamente, o olhar se faz penetrante, o ouvido se faz sensível, o tato se faz delicado e o imperceptível se faz concreto; o longínquo torna-se próximo, o desconhecido torna-se familiar, o extravio torna-se direção, a solidão torna-se companhia, o ignorado torna-se revelação.
A noite é o tempo do mistério e da promessa, é o lugar da espera e da realização, o espaço do desejo e do encontro, da invocação e da revelação, do sofrimento e da paixão, do silêncio e da oração, da vida e da morte... Na noite o que conta, o que vale não se diz, não se vê, não se sabe: deseja-se, espera-se, recebe-se, realiza-se. Não é um simples eco aquela voz que anuncia no escuro o início do cumprimento de uma promessa que vem de longe e traz luz, festa, alegria, canto...
A fidelidade da promessa ouvida na noite é uma semente. Existe, mas tem necessidade de permanecer escondida. Realiza-se, mas exige habitar espaços de penumbra.
Textos bíblicos: Mc 15,42-47 Jo 19,38-42
Na oração: “A espera paciente e expectante é o fundamento da vida espiritual” (Simone Weil).
A humanidade inteira, frente à pandemia do Coronavírus, vive uma espera angustiante, muitas vezes impaciente, vazia, sem sentido...
- Sábado Santo é tempo não só de espera, mas de esperança, é deixar que o grão de trigo morto comece a germinar, é tempo de imaginar, de criar, de abrir-se a algo novo e inesperado, de sonhar um mundo melhor e uma humanidade mais samaritana.
- É preciso envolver este “sábado santo da vida” com os perfumes da compaixão, solidariedade, comunhão...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Junto à cruz de Jesus estavam de pé sua mãe e a irmã de sua mãe, Maria de Cléofas,
e Maria Madalena” (Jo 19,25)
A vida humana é fecunda, é potencialidade, é explosão de criatividade... Assim como na semente há vida latente esperando a oportunidade de expandir-se, também no ser humano encontram-se ricas possibilida-des, esperando a morte do “eu mesquinho”, para se plenificarem. A maior perda da vida é aquilo que “resseca” dentro de nós enquanto vivemos: sonhos, criatividade, intuição. A vida é fecunda, é um turbilhão energético, é explosão de criatividade, é potencialidade.
“A tragédia não é quando um ser humano morre; a tragédia é aquilo que morre dentro da pessoa enquanto ela ainda está viva” (Albert Schweiter).
Uma vida pensada sem “mortes” perde-se, no final, na total irresponsabilidade. E viver significa esvaziar-se do ego para deixar transparecer o que há de divino em seu interior. O grão de trigo que não morre, apodrece, e não multiplica as mil possibilidades latentes em seu interior.
“Jesus morreu de vida”: de bondade e de esperança lúcida, de solidariedade alegre, de compaixão ousada, de liberdade arriscada, de proximidade curadora... Jesus foi Aquele que não ficou indiferente diante da fome, da doença, da violência, da exclusão..., enfim, diante de tudo o que atenta contra a vida. Seu modo de ser, suas opções, sua liberdade diante da lei, da religião, do templo, seus encontros escandalosos com os pobres e excluídos..., desestabilizou tudo, pôs em crise as instituições e as pessoas encarregadas da religião. Tornou-se um perigo a ser eliminado.
Nesse sentido, a cruz de Jesus não é um “peso morto”; ela tem sentido porque é consequência de uma opção radical em favor do Reino. A Cruz não significa passividade e resignação; ela nasce de sua vida plena e transbordante; ela resume, concentra, radicaliza, condensa o significado de uma vida vivida por Jesus na fidelidade ao Pai, que quer que todos vivam intensamente.
Existem cruzes que são vazias, sem sentido, insensatas..., pois elas fecham a pessoa em si mesma, no seu sofrimento e angústia; não apontam para o futuro, para a vida. São cruzes que nós impusemos sobre nossos ombros ou que os outros nos impuseram. São cruzes que nascem dos fracassos, dos traumas, das rejeições, das experiências frustrantes... Tornam-se um “peso morto” pois não abrem um horizonte de vida; elas se fixam no passado, na morte... e nos deixam no túmulo. Fazer o caminho contemplativo junto a Jesus que leva a Cruz da fidelidade nos ajuda a romper com as cruzes que nos afundam no desespero.
A Cruz assumida por Jesus é “expansiva” porque é expressão de uma vida entregue; ao mesmo tempo, ela O projeta para a “margem” onde Ele revela uma presença despojada, vulnerável, que se identifica com a dor do mundo, com a marginalização dos excluídos e com a desgraça de todos os miseráveis da terra. Sua Cruz manifesta que Deus é Compaixão porque continua do lado do inocente sofredor; Deus não apenas se solidariza, mas sofre “em sua pele”.
Acompanhando Jesus na paixão, também “vamos sendo talhados” pelas cenas que contemplamos, com o coração aberto à dor e à aflição. É o seguimento levado às últimas consequências. Participando da morte de Jesus, podemos também fazer de nossas cotidianas mortes um ato de decisão, de entrega, de oblação. A certeza de nossa fé em Cristo, morto e ressuscitado, nos ajuda a tirar do coração os medos, os impulsos egoístas de busca de segurança e proteção, e encontrar uma paz profunda que nos permita fazer de nossa vida uma oferenda gratuita em favor da vida dos outros.
É gratificante trazer à memória tantos homens e mulheres que são presença compassiva e, à maneira de Jesus, arriscam suas vidas em favor da vida; histórias silenciosas de tantas pessoas que com sua presença ajudam os outros a viver; pessoas que revelam a paixão por viver em pequenas paciências cotidianas, que entregam suas vidas no escondimento, sem vozes que as exaltem; elas são como o fermento silencioso que se dissolve na massa para fazê-la crescer.
Nos evangelhos, a Paixão de Jesus não é uma simples sequência de fatos, mas um confronto entre pessoas. Os diversos personagens entram em contato direto com Jesus, reagindo cada um a seu modo, vivendo cada qual o mistério do próprio chamado e da própria tomada de posição frente a proposta de Jesus.
Contemplar toda a galeria de pessoas que se encontra com Jesus. Cada qual com uma resposta diferente, diante de Jesus sempre igual em sua atitude de disponibilidade e de entrega.
Os evangelistas dão um destaque especial à presença das mulheres no caminho da Cruz, solidárias com Aquele que era vítima da indiferença cruel.
Estão ali, precedendo-nos no caminho, e não dizem nada. É seu corpo, são seus gestos, suas mãos, seus olhos, seu silêncio... que falam por elas. A linguagem delas é a linguagem do encontro solidário. Se elas podem permanecer nessas circunstâncias, é porque amaram muito. Elas nos falam de resistência e de fidelidade, de uma presença comovedora. Estão juntas, expostas a outros olhares, como comunidade de discípulas em torno a seu Mestre, que lhes ensina, agora sem palavras, uma sabedoria muito maior.
Em meio à impotência, não se afastam da dor experimentada ao ver sofrer a quem mais se ama, senão que se expõem ao olhar d’Aquele cujo rosto foi desfigurado. Sobem com Ele ao lugar do abandono e da ingratidão, levantando uma ponte de proximidade e de solidariedade que cruza a totalidade da vida de Jesus. Nem um só instante afastaram seus olhares d’Ele. E o que para uns é escândalo e para outros é loucura, para estas mulheres é uma força de Deus impressionante. Elas acompanharam a vida de Jesus muito de perto, “à sombra”, e agora, a morte d’Ele lança uma forte luz sobre elas, tornando-as visíveis para que todos saibam quem são elas.
Elas tem a coragem de permanecer ali, acolhendo o acontecimento em toda sua crueldade e profundidade; elas estão de pé, enquanto outros desistiram ou se afastaram assustados.
Olhando de longe, estavam junto a Ele, deixando-se imantar por Ele, vivendo privilegiadamente um mistério que se oferece a todos. A partir deste momento elas vão aprendendo a conviver com a morte, com a d’Ele, com a sua e com a dos outros. Vão aprendendo, precisamente em meio à morte, a “celebrar a vida”, mesmo intuindo que uma lança também as atravessará.
Daqui para a frente elas se tornarão pedagogas de um encontro que gera humanidade; elas estenderão suas mãos sobre os necessitados, com o mesmo desejo com que Jesus as estendeu, para tocar voluntariamente as pessoas enfermas, selando uma aliança, um “pacto de ternura”, com todos os desprezados e excluídos.
Diante da Cruz “descemos” com Jesus até à cruz da humanidade.
A solidariedade com os pobres, a fidelidade à vida evangélica, nos fazem descer aos porões das contradições sociais e políticas, às realidades inóspitas, aos terrenos contaminados e difíceis, às periferias insalubres das quais todos fogem e onde os excluídos deste mundo lutam por sobreviver. Ali nos encontramos com o Crucificado, o “Justo e Santo”, identificado com os crucificados da história.
Como diz o teólogo Jon Sobrino, não podemos crer no Crucificado de um modo coerente se não estamos dispostos a fazer descer da Cruz aqueles que estão dependurados nela.
Entende-se, assim, o grande “grito” que brotou das profundezas da dor de Jesus na Cruz e que continua ecoando como clamor angustiado. Não são poucos os gritos dos mais pobres, excluídos, doentes...
O grande grito de Jesus é a certeza de tudo o que sustenta o seu coração; ao ecoar junto aos crucificados, provocará grandes novidades. Um grito que não fica no vazio mas aponta para a Vida.
Texto bíblico: Jo 12,20-30; Jo 18 e 19
Na oração: Somos grãos de trigo na grande seara do mundo; e o grão de trigo eterniza-se na sua entrega-doação para que outros matem suas fomes e vivam com mais sentido e intensidade.
Aprendamos a morrer para nossos interesses mesquinhos; só assim nossa vida terá a dimensão da eternidade.
- “Se a semente do trigo sou eu, a quê devo morrer, para que a vida interior possa se expandir?”
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Derramou água numa bacia, pôs-se a lavar os pés dos discípulos e enxugava-os com a toalha que trazia à cintura” (Jo 13,5)
No Evangelho desta Quinta-feira Santa, Jesus, com sua original sabedoria, nos oferece uma outra perspectiva de vida. Sem dúvida alguma, Jesus era um provocador, no sentido etimológico da palavra, (pro-vocar: chamar para frente, desinstalar), que motivava as pessoas a verem as coisas a partir de uma perspectiva diferente da que era habitual.
Mas, custa-nos muito modificar nossa perspectiva; estamos acostumados a um modo fechado de viver, com umas viseiras que não nos permitem captar a vida em sua plenitude e riqueza; com isso nos instalamos no já adquirido e conhecido e atrofiamos em nós o dinamismo que busca abrir a mente e alargar o coração à realidade que nos cerca.
Ver as coisas “por uma outra perspectiva” é muito mais instigante.
Um ponto de vista novo, limpo e original é uma grande ajuda para uma vida sadia.
O que Jesus pretende, no gesto do “lava-pés”, é nos oferecer um novo ponto de vista, um novo ângulo, uma nova perspectiva, fazendo-nos ver a realidade do outro como se fosse pela primeira vez, com um olhar límpido e uma atitude compassiva.
Na noite em que ia ser entregue, Jesus realizou um gesto provocativo: levantou-se da mesa, distanciando-se do lugar reservado àqueles que a presidem e se situou no lugar daqueles que pertencem à categoria dos “servidores”. Jesus sabia que o lugar em que estamos situados condiciona nosso olhar e nossa atitude; por isso, tomou distância e adotou a perspectiva que lhe permitia perceber outras dimensões da vida.
A partir desse lugar tocou de perto o barro, o pó, o mal odor, a sujeira..., tudo isso que aqueles que estão sentados à mesa acreditam estar a salvo ou simplesmente ignoram e desprezam. Rente ao chão e em contato com os pés dos outros, Jesus realizou uma mudança e uma amplitude de visão que lhe fazia perceber tanto as riquezas e dons de cada um como captar a desnudez, a fragilidade e as limitações da corporalidade das pessoas. E, olhadas a partir daí, Ele deixa transparecer que qualquer pretensão de superioridade ou domínio se revela como ridícula e falsa.
Nesse deslocamento a um “lugar entre tantos outros”, Jesus viu de perto e por dentro àqueles que os outros consideravam distante e fora. Porque para Ele, os maiores e os mais importantes são aqueles que, segundo nossos critérios, não são contados. O lugar em que Jesus decidiu se situar deu origem a “revolução nas relações pessoais”, que tanto nos sobressalta e ao qual tanto nos resistimos. Só o fato da possibilidade desse deslocamento se revela ameaçadora porque nos tira do terreno do conhecido e nos convida a descobrir novos significados que não coincidem com os que consideramos evidentes.
Com o gesto do lava-pés e ao deslocar-se para o lugar do servo, Jesus rompe a verticalidade e a relação senhor-escravo, os de cima e os de baixo, os de dentro e os de fora, inaugurando, assim, a nova ordem circular do Reino, onde ninguém é descartável.
Ali também Ele nos revela-nos um rosto novo de Deus: o Deus cuidadoso e compassivo, identificado com os últimos e que a partir do último, serve, sustenta, universaliza, iguala, inaugurando deste modo a horizontalidade do Reino e denunciando toda hierarquia e pretensão de poder-dominação.
“Eu estou entre vós como aquele que serve”. Jesus não renuncia a nenhuma grandeza humana, mas denuncia a falsidade da grandeza do ser humano que quer se apoiar no poder ou no domínio sobre os outros. A verdadeira grandeza humana está na identificação com Jesus que se doa, sem por condições nem reservas. Como aconteceu com Pedro, o gesto de Jesus no Lava-pés continua nos provocando, porque se há algo que incomoda é deslocar-se até os últimos e colocar-se no lugar deles.
Não é comum prestar atenção ao lugar ocupado pelo outro, sobretudo o outro que pensa e sente diferente; é normal perceber, delimitar, defender e fechar-se no próprio lugar. Isso se faz de maneira tão zelosa que nem se vê aquilo que está para além do próprio lugar. São grandes os riscos de se viver em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza aprisiona a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O próprio lugar se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador de tudo aquilo que se faz.
Compreende-se claramente que o que ali estava em jogo não era a humildade – nem a de Pedro, nem a do próprio Jesus -, nem sequer uma boa exortação para praticar a caridade. Porém, a intenção de Jesus ia muito mais longe, tão longe que Ele mesmo teve de perguntar aos discípulos aturdidos: “Compreendeis o que vos fiz?” Efetivamente, o que Jesus estava dizendo a seus apóstolos era o seguinte: “Eu, que sou o Mestre que ensina o que é preciso saber, e que sou o Senhor-Deus que dispõe o que se há de fazer, não me relaciono convosco com base no poder, mas na exemplaridade”.
Daí Jesus termina dizendo: “Pois é um exemplo que eu vos dei: o que eu fiz por vós, fazei-o vós também”. Com isso, Jesus estava afirmando que eles, os apóstolos, não podem compreender sua missão com base no poder que se impõe, mas sim na exemplaridade que convence. E Ele exigirá isso a todo aquele(a) que queira segui-lo: terá que estar disposto, o mesmo que Ele, a “não ter onde reclinar a cabeça”, a ir mais além de tudo aquilo que a nossa cabeça se inclina, descansando naquilo que acredita saber, controlar ou dominar.
A reação de Pedro expressa bem o escândalo que este gesto produz, porque Jesus revela que a autoridade - ser Senhor – é um serviço, não uma dominação.
Pedro fica desconcertado e em dilema. Sua imagem do Messias seguro e vencedor não combina com a vulnerabilidade de um servo; ele comungava com a mentalidade hierarquizada da época, a qual determinava a cada um o seu devido lugar. A relação entre mestre e discípulo era regulada pela superioridade, sapiência, respeitabilidade de um, e pela inferioridade, ignorância e submissão do outro. O gesto de Jesus pareceu inaceitável para Pedro, pois rompia a hierarquia, podendo gerar indisciplina. A mentalidade de Pedro era perigosa. Agindo assim, corria o risco de introduzir na comunidade dos seguidores de Jesus o esquema senhor-escravo que Ele viera abolir.
Em muitas culturas e tradições espirituais (como no Evangelho), o Mestre lava os pés dos seus discípulos. De um ponto de vista simbólico, “lavar os pés” de alguém é devolver-lhe a capacidade de sentir-se enraizado, é reco-locá-lo de pé, ativar nele a autonomia para que possa dar direção à sua vida.
A palavra “pé”, “podos” em grego, está estreitamente relacionada à pala-vra “paidos”, usada para significar criança. Assim, um “pedagogo” é um especialista que cuida dos pés do ser humano, desde que cuidar dos pés de alguém significa cuidar da criança que está nele.
Eis a missão do(a) seguidor(a): ajudar as pessoas a se colocarem de pé, resgatando-as em sua dignidade para serem capazes de andar pelos seus próprios pés.
Não cabe ao cristão carregar as pessoas com seu paternalismo. Antes, sua missão é vê-las maduras, entrando por seus próprios pés na presença de Deus e assumindo o compromisso com a vida.
Texto bíblico: Jo 13,1-5
Na oração: “Levantar-nos da mesa” – “sentar-nos à mesa”: movimento de partida e de chegada; prolongamento do gesto provocativo e escandaloso de Jesus. Isso é viver a Eucaristia no cotidiano da vida.
- como você pode prolongar nos seus ambientes cotidianos o gesto de Jesus no “lava-pés”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
+ Prepare-se para viver este momento denso da Última Ceia; por isso, disponibilize todo seu ser (sentidos, razão, afetividade, coração) para “sentir e saborear” este Mistério.
+ Suplique a Deus a graça da fidelidade a seu Projeto de vida, mesmo nas dificuldades e na falta de apoio dos outros.
+ Leia os “pontos para a oração”: isso pode ajudar a aquecer o coração para viver mais intimamente o encontro com o Senhor que está às portas de sua Paixão.
+ Deixe que as considerações abaixo façam-lhe sentir solidário(a) com Jesus que, apesar das traições, mantém sua fidelidade ao sonho do Reino.
Mais uma vez a liturgia nos convida a “fazer memória” desta Ceia tão especial. Jesus havia transitado por muitas refeições, participado de muitas mesas (especialmente com os pobres e pecadores) e agora Ele nos deixa uma “mesa” como marca dos seus seguidores. Mesa da partilha e da inclusão, mesa da festa e da comunhão.
É em torno a esta mesa que os(as) seguidores(as) de Jesus se constituem como verdadeira comunidade. Ao recordar a vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus, os cristãos se comprometem a prolongar os Seus gestos, atitudes, valores, compromissos... “Fazer memória” de Jesus junto à mesa é comprometer-se com a vida; é colocar a própria vida a serviço da vida.
Jesus quer cear com os seus amigos e por isso precisam encontrar uma sala na qual haja espaço para estar juntos. O ritual pascal dá lugar aos gestos simples que se fazem entre amigos: partilhar o pão, beber da mesma taça, desfrutar da mútua intimidade, entrar no clima das confidências...
Jesus sempre buscou companhia; havia nele uma necessidade irresistível de contar com os seus como amigos e confidentes. Sua relação com eles vinha de longe: levavam longo tempo caminhando, descansando e tomando refeições juntos, partilhando alegrias e rejeições, falando das coisas do Reino.
E continuará considerando-os como amigos, mesmo quando um deles irá traí-lo e os outros fugirão.
Nos evangelhos, nós encontramos pessoas que não faziam parte do grupo dos Doze e que revelaram uma presença que fez toda a diferença junto a Jesus. Viviam o verdadeiro sentido do seguimento, sem buscar prestígio, vaidade, poder, competição... Pessoas que se revelaram muito mais em sintonia com Jesus e sua proposta de vida do que os Doze. Uma delas foi a do homem do Evangelho de hoje: anônimo, mas deu sua contribuição decisiva e que ficou registrada na história; sua casa foi o lugar onde aconteceu a última Ceia.
Chama-nos a atenção, no Evangelho proposto para hoje, a maneira como Jesus indicou aos discípulos o local onde queria que a Ceia fosse celebrada. Jesus mandou-os seguir um homem que encontrariam à entrada da cidade. Junto a personagens conhecidos nos Evangelhos, outros, sem rosto, nem identidade, nem prota-gonismo, surgem inesperadamente, deixando sua “marca”, como o desconhecido homem que emprestou sua casa para que Jesus e seus discípulos pudessem celebrar a Páscoa.
Anônimo perante a posteridade, sem rosto, porque era seguido pelos que vinham atrás dele, este homem, de certo modo e do modo certo, serviu a Jesus como a Igreja deve serví-Lo, sem perguntar qual seria seu lugar à mesa.
O que teve lugar dentro de sua casa, transformada no mais importante templo material da história humana, seria mais do que suficiente para arrancar dele alguma expressão de vaidade capturada pelo evangelista. Mas não. Não é isso que acontece na História da Salvação.
Oferece a casa sem perguntar quem viria celebrar a Páscoa, sem pedir garantias, sem cobrar aluguel pelo espaço; enquanto os sacerdotes e Judas pechinchavam o valor da vida de Jesus, este desconhecido, por pura gratuidade, oferece sua casa ao mesmo Jesus. Certamente, ele e sua família foram testemunhas desta ceia única e especial, e que será a marca de todo(a) seguidor(a) de Jesus.
Jesus era da Galileia. Não tinha casa em Jerusalém. Nos dias da festa de Páscoa, a população de Jerusalém triplicava. Não era fácil para Jesus encontrar uma sala ampla para poder celebrar a Páscoa junto com os seus mais íntimos. Ele pede para os discípulos encontrarem uma pessoa em cuja casa decidiu celebrar a Páscoa. O Evangelho não oferece mais informações e deixa que a imaginação complete o que falta nas informações. Era um conhecido de Jesus? Um parente? Um discípulo?
Aquele homem desconhecido que abriu sua casa para Jesus representa todos nós; cabe a nós mostrar o caminho do local da Ceia, cabe a nós preparar a mesa da partilha, abrir espaço interior para acolhida, indicar o rumo que leva à casa do Pai. Orientadores(as) do povo de Deus, abrimos as portas da grande sala e a confiamos ao Mestre para que realize, ali, o imenso dom da Eucaristia, “como aquele que serve”.
Ontem o Evangelho falou da traição de Judas e da negação de Pedro. Hoje, fala novamente da traição de Judas. Apesar da convivência de quase três anos, nenhum dos discípulos ficou para tomar a defesa de Jesus. Judas traiu, Pedro negou, todos fugiram. Mateus, no Evangelho de hoje, quer ressaltar que o acolhimento e o amor de Jesus superam a derrota e o fracasso dos discípulos. Ele deixa entender que nós podemos romper com Jesus, mas Jesus nunca rompe conosco. O seu amor é maior do que a nossa infidelidade.
Estando todos reunidos pela última vez, Jesus anuncia quem é o traidor. É "aquele que põe a mão no prato comigo". Para os judeus, a comunhão de mesa, colocar juntos a mão no mesmo prato, era a expressão máxi-
ma da amizade, da intimidade e da confiança. Mateus nos indica que, apesar da traição ser feita por alguém muito amigo, o amor de Jesus é maior que a traição.
Poucas experiências destroem alguém por dentro como a traição.
A traição que, à primeira vista, pode parecer ser prejudicial apenas ao outro, de maneira geral, vem acompanhada de um forte sentimento de culpa para o traidor. E ao sentir a culpa pela traição, a pessoa entra em conflito emocional; algumas caem até no desespero.
Aquele que traiu sofre, pois este não confia em si mesmo, não consegue acreditar que mereça confiança. O traidor condena-se à solidão e à culpa existencial, destrói-se e destrói todos ao seu redor, culpando o mundo por seu sofrimento; trai-se a si mesmo, torna-se, aos seus próprios olhos, um monstro, não merecedor de amor, o que o leva a trair mais ainda.
Se a pessoa trai a si mesma, ela fracassa em sua busca, frustrando-se na tentativa de realizar-se enquanto ser humano. E, na ausência de respostas, angustia-se mais, trai mais, atropela os outros que a amam, machuca a todos ao seu redor, procurando justificativas para seus atos e destruindo-se a si mesma em cada nova tentativa de ser amada.
+ Leia atentamente o relato do Evangelho indicado para hoje: Mt 26,14-25
+ Prepare-se para uma contemplação. Com a imaginação, faça-se presente à cena, indo com os discípulos para preparar o ambiente da Última Ceia.
+ Procure ativar todos os sentidos: olhe as pessoas da cena, escute o que elas dizem, observe o que elas fazem, saboreie o pão e o vinho dados a você por Jesus...
+ Participe, com alegria, deste evento único; deixe-se afetar por tudo o que acontece durante a refeição. Reserve um momento de colóquio com Jesus, expressando a Ele seus sentimentos.
+ Faça um colóquio ao Senhor: converse com Ele sobre os sentimentos contraditórios que nascem da fidelidade d’Ele e da traição de Judas.
+ Termine a oração, dando graças a Deus por este momento tão intenso; se possível, registre os apelos, luzes, inspirações, que brotaram da oração.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Um de vós me entregará”
- Busque criar um ambiente propício para a oração deste dia: espaço externo, atitude interna, silêncio... para viver mais intensamente os “momentos finais” da vida de Jesus.
+ Peça a Deus a graça de participar dos sentimentos de Jesus, às vésperas de sua morte.
- Leia as “indicações” abaixo como ajuda para “entrar em contemplação”:
Como ontem, você é convidado(a) a participar de outra ceia de despedida. A ceia de Betânia foi rica em símbolos de amor, de amizade, de festa, um esbanjamento de humanidade. A ceia de hoje (em Jerusalém) é marcada por uma comoção profunda, onde Jesus vê-se traído, vendido, enganado e abandonado por aqueles que Lhe juravam fidelidade e amizade profunda. Esta noite, Jesus começou a sentir que estava sozinho. É o sentimento mais duro e doído que alguém pode passar.
Jesus está celebrando a última ceia com os seus discípulos; tinha acabado de lavar os pés deles e de ter falado do dever que temos de lavar os pés uns dos outros. Judas já tomou a trágica decisão, e depois de tomar o último pedaço de pão das mãos de Jesus, saiu para cumprir sua traição.
Sabemos que as palavras pronunciadas nos momentos de despedida são diferentes de todas as outras. Nessas horas, só se dizem palavras essenciais, as mais íntimas, as que estão no fundo do coração e que se deseja que sejam lembradas para sempre.
Suas palavras são carregadas de emoção e dor e causam-nos maior impacto.
Durante as contemplações dos mistérios da Paixão e Morte de Jesus, um personagem vem sempre à nossa lembrança: Judas Iscariotes. Reagimos negativamente frente sua traição a Jesus, mas no fundo ele nos causa repulsa porque é projeção das nossas infidelidades e traições. Ele é o espelho no qual nos vemos.
Certamente o maior sofrimento de Jesus partiu do grupo mais íntimo; da perseguição externa já era esperada, mas do grupo de convivência dos discípulos, foi muito duro para Jesus. E Judas era considerado “um dos Doze”.
Podemos destacar duas dimensões na Paixão: uma acontece no grupo interno (traição, negação, busca de poder, incompreensão da missão...); isso provoca profundo sofrimento em Jesus. A outra paixão é provocada pela oposição, perseguição externa... Geralmente ficamos impactados com os sofrimentos físicos cometidos pelos opositores. O sofrimento interno não é visível, mas é maior.
Mas... o que vem a ser a traição? Como ela se manifesta na nossa vida? Por que traímos a confiança do outro?
O ato de trair implica romper uma aliança que uma pessoa fez com outra. Trair é uma ação que revela sérias conseqüências, e, quando se fala de relacionamento humano, envolve sofrimento e sensação de abandono, gerando um estado de desconfiança generalizada naquele que foi traído.
Traição dói na proporção inversa da distância. Quanto mais próxima a pessoa traidora, tanto maior a dor do traído. A traição se situa no mundo das amizades, das vinculações afetivas intensas, das ligações íntimas, das proximidades de vida.
Judas se tornou o símbolo da traição porque fazia parte do grupo íntimo dos apóstolos. Foram anos de convivência nas mesmas caminhadas, nas noites ao relento, nas pregações, nas refeições simples do dia-a-dia e nas festas. Jesus e Judas viviam elos de amizade, de confiança, de esperança entre si.
De repente, rompe-se tal aliança e Judas entrega Jesus aos adversários.
Com a traição, Judas passou da amizade para a decepção, para a desilusão, para a perda de vinculação até a entrega. Processo lento que foi minando o seu coração, até que ele se corrompeu, a ponto de renegar a amizade e trair.
Quando Jesus anuncia que um deles vai lhe entregar, todos ficam “assustados”, “olham-se mutuamente”, mas não conseguem identificar o traidor.
Os traidores não têm um rosto especial; qualquer rosto vale para dissimular a traição do coração; qualquer rosto vale para esconder um coração traidor.
Judas, em nada dava sinais de ser diferente do restante dos discípulos. Por isso ninguém se atreveu a acusá-lo de traidor. Parecia tão normal como qualquer outro do grupo.
É que as traições são alimentadas e escondidas no coração; as traições não têm rosto, não são visíveis. Por isso mesmo, os traidores, são tão difíceis de serem reconhecidos. Caminham como todos. Comem como todos. Sorriem como todos. Tem cara de amigo, e por dentro carregam um coração vendedor de vidas, de dignidades.
Quê aconteceu no coração de Judas nessa noite da Última Ceia? Rodeado de um mundo de mistério, rodeado de um clima de bondade, de amor e salvação, e, no entanto, o coração de Judas está em outro lugar. Está impermeável à verdade que se celebra; está seco em seu interior, fechado ao mistério da graça.
Poucas experiências destroem tanto alguém por dentro como a traição.
Quem traiu e quem foi traído assume reações semelhantes, como esvaziamento da afetividade, sensação de inutilidade vital, desorientação, perda do sentido da própria existência, angústia, pânico, fobias e medos generalizados diante das pessoas e do mundo. A traição desmonta a esperança no outro ser humano e leva
à descrença na existência do amor. A traição tira do ser humano sua capacidade de dar respostas à vida, de envolver-se num projeto e num ideal maior, que ultrapasse o valor de sua própria vida.
- Leia atentamente o Evangelho da liturgia de hoje: Jo 13,21-33.36-38
- Com a imaginação, ative todos os seus sentidos, para poder participar intensamente da cena.
- Faça-se e sinta-se presente na sala da Última Ceia, como um(a) “humilde servidor(a)”: observe o ambiente preparado, a disposição da mesa, o jarro e a bacia para o lava-pés, os pães ázimos, ervas amargas, vinho...
- Centre sua atenção na chegada de Jesus e seus discípulos; observe as feições de cada um deles, tomando lugar à mesa... Procure escutar o que estão dizendo...
- À meia-distância, observe a seriedade do momento, escute as palavras de Jesus ao tomar o pão e o vinho... Sinta-se desconcertado quando Jesus anuncia que um do grupo vai ser o traidor. Veja as reações dos discípulos, a tristeza de Jesus...
+ Escute Jesus, que diz em voz alta o que todos estão sentindo: “Filhinhos, por pouco tempo ainda estou convosco”. Fala com ternura. Quer que suas últimas palavras e gestos fiquem gravados nos corações de todos nós.
+ Converse com o Senhor: uma conversa feita mais de presença que de palavras.
Diante de “Jesus traído”, recorde experiências pessoais de traição: quando foi traído? Quando traiu? Como se sentui?
+ Passe um bom tempo nesta sala, onde está acontecendo um evento histórico e essencial para os seguidores de Jesus: a instituição da Eucaristia. Participe também você da refeição.
+ Termine a oração fazendo uma revisão e anotando as moções que brotaram do encontro com Jesus na Última Ceia.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“A casa inteira encheu-se do aroma do perfume”
+ Prepare-se para a oração, criando um clima de silêncio e escuta amorosa.
+ Concentre a atenção no seu interior: sinta o pulsar do coração e o ritmo da respiração.
+ Permaneça, por uns instantes, saboreando o silêncio do seu coração, pois onde há silêncio, aí está Deus presente.
+ Peça a Deus a graça de poder transformar a sua casa em nova Betânia: casa da acolhida, da amizade, da partilha solidária, da convivência sadia...
+ Antes de “entrar em contemplação”, leia os “pontos” abaixo:
Neste início de Semana Santa, o Espírito nos leva a viver Betânia, a ser Betânia, a assumir Betânia:
- casa de hospitalidade e de escuta, onde todos somos irmãos sentados à mesma mesa, junto ao Mestre, o único Senhor, em quem se centra nossa hospitalidade e nossa escuta;
- lugar de descanso, como foi para Jesus, onde encontra humanidade, calor humano, compreensão, alívio;
- lugar de passagem, onde se recupera forças para viver situações de Páscoa;
- “casa dos pobres” (Beth-anawim): nela, em primeiro lugar, habitam nossas pobrezas pessoais e comunitárias, nossa pequenez e nossa fragilidade; mas, também, onde a dor de nosso mundo, da humanidade, têm lugar e tocam nosso estilo de viver, de nos relacionar, de nos confrontar em nosso seguimento de Jesus;
Jesus, perseguido pelos poderes civil e religioso, vai a Betânia, na casa das suas amigas Marta e Maria e de Lázaro. Mesmo sabendo que a polícia estava atrás de Jesus, os três irmãos receberam-no em casa e ofereceram-lhe um jantar. Acolher em casa uma pessoa perseguida e oferecer-lhe um jantar era perigoso. Mas o amor faz superar o medo.
Betânia é, para Jesus, o lugar da acolhida, da hospitalidade, da escuta, da amizade e do serviço. Ali, Ele expressa as atitudes humanas presentes na cotidianidade de uma família que Ele amava e que O amava. Betânia é, para Jesus, um prolongamento de Nazaré, o lugar do cotidiano, do pequeno, do simples: o lugar da revelação.
Neste ambiente, já não há mais rivalidade entre as duas irmãs, Marta e Maria, mas colaboração e complementariedade. Juntas se fazem transparentes para algo maior que elas mesmas. Certamente Jesus deixou “refletir” em sua vida o que viu fazer estas duas mulheres.
Os discípulos levavam muito tempo com Jesus e nenhum tinha feito com Ele o que estas duas mulheres fizeram. Ninguém lhe havia manifestado gestos de tanto amor. Elas estão totalmente presentes à Jesus; aceitam o que vai acontecer e o acompanham. Marta servindo a mesa e as mãos de Maria acariciando e ungindo os pés de Jesus. E Ele deixando que elas o façam. Um gesto que Judas julgou e a Pedro lhe custou receber.
Marta e Maria expressam sua amizade e fazem com Jesus o que Ele logo fará com seus discípulos no momento de sua despedida: os serve à mesa e lava seus pés. Jesus se deixou fazer, para poder fazer isso com outros e quis tomar para si os gestos destas mulheres para fazer memória de sua vida. Impressiona-nos que neste relato elas não falam, e expressam todo seu amor “mais em obras que em palavras” (S. Inácio).
Em lugar do cheiro da morte, a casa inteira enche-se do aroma do perfume. O perfume de Maria é o símbolo da vida e do amor de cada um. É um amor que não tem preço e está sempre voltado para os pobres. Aqui, no centro do Evangelho de João, a comunidade, reconstruída no amor, exala o bom perfume que enche toda a casa.
“À luz de Betânia e de nossa realidade quais perfumes derramar para superar o mal odor dos nossos ambientes?” O que cheira mal entre nós, seguidores(as) de Jesus: medo do risco e do novo, medo de perder seguranças; medo de equivocar-nos, de experimentar outras maneiras de viver; medo de enfrentar situações desafiantes na sociedade, medo da dor e da morte...
Cheira mal as seguranças petrificadas, o imobilismo. Cheira mal a indiferença e a acomodação, sobretudo diante das necessidades de nosso mundo. Cheira mal a desesperança frente a um futuro incerto.
Há um forte mal odor dentro de nossas “bolhas mofadas”; custa-nos reforçar laços, alimentar solidariedade, entrar em sintonia com a paixão da humanidade. Preferimos conservar a arriscar; percebemos a inércia e a falta de renovação séria e profunda, uma falta de abertura frente ao diferente, uma perda de tempo gasto em estéreis conflitos entre pessoas, grupos, gerações, dentro de nossas famílias e comunidades.
Detrás destes maus odores, vamos tomando consciência do que os causa, isto é, uma série de atitudes, que necessitariam ser trabalhadas com o aroma de Cristo, fonte de vida nova, de libertação e de transformação. Algumas destas atitudes são: individualismo, ativismo, indiferença, preconceito, consumismo, intolerância...
A casa de Betânia se enche do “esbanjamento” do amor, da ternura, da misericórdia frente ao mal odor da violência, da exclusão, do orgulho autossuficiente. Junto a Jesus, somos desafiados a esbanjar a vida com Ele, isto é, viver em e a partir da comunhão com o Deus da vida. Viver, em definitiva, como Jesus viveu, ou seja, Ele “derramou”, doou toda sua vida através de um compromisso real para fazer visível o amor de Deus. Assim na experiência cristã, a vida se “derrama” para tornar visível o amor de Jesus a toda pessoa humana. Um “esbanjamento”, muitas vezes, incompreensível para tantos contemporâneos nossos. Eles nos lançam um duro questionamento: não seria a vivência cristã uma espécie de desperdício de energias humanas, um desperdício de talentos?
+ Leia, com calma, a cena do Evangelho indicado para este dia: Jo 12,1-11
+ Com sua imaginação “faça-se presente” na casa em Betânia: veja as pessoas, escute o elas dizem, observe o que elas fazem. Deixe-se “afetar” pelo ambiente simples e acolhedor desta casa.
+ Procure identificar-se com os personagens desta cena:
- Com Jesus Mestre, queira fazer-se mais humano e próximo;
- Com Marta, queira professar a fé e servir na gratuidade;
- Com Lázaro, queira passar da morte à vida e caminhar na liberdade do Espírito;
- Com Maria, queira quebrar os frascos e derramar o perfume da escuta e do amor.
+ Enfim, inspirando-se na casa de Betânia, desejar fazer de sua casa: espaço da mesa compartilhada, lugar da unção e do cuidado, ambiente que exala perfume da amizade, da gratidão, do amor...
+ Faça a revisão da oração e anote os sentimentos mais profundos que brotaram na sua visita à Betânia
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Este é o profeta Jesus, de Nazaré da Galileia” (Mt 21,11)
A vida de Jesus é uma grande subida a Jerusalém; e nesta subida, segundo os relatos evangélicos, Ele desconcertou a todos. Evidentemente, desconcertou as pessoas mais religiosas e observantes da religião judaica: fariseus, escribas, sacerdotes, anciãos... Não só Jesus foi a pessoa mais desconcertante de toda a história, mas nele aconteceu algo também desconcertante. Ele desencadeou na história da humanidade um “modo de viver” que quebrou toda estrutura petrificada, sobretudo religiosa, constituindo um “movimento” ousado, que colocava o ser humano no centro.
Um movimento alternativo às instituições romanas e à organização sacerdotal do judaísmo; um movimento “marginal” que dava prioridade aos pobres, aos deslocados, aos doentes e excluídos, aos perdedores... e que não tinha nada a ver com uma organização fundada no poder, no prestígio, na riqueza...
Este movimento, desencadeado na Galileia, chega agora às portas da “cidade santa”, Jerusalém.
Aquele homem que movia multidões por todo o país, por sua pregação e milagres, não é um revolucionário violento. E, no entanto, nem por isso deixa de ser inquietante, transgressor e perigoso.
Jesus foi assim e assim Ele viveu; todo o resto lhe sobrava (leis, culto, templo, estrutura religiosa...).
Em nome de um Deus que a todos acolhe e chama, que é Pai-Mãe de todos, Jesus transgrediu a estrutura que sustentava uma sociedade fechada, fundada na lei do mais forte e na violência de quem detém o poder.
Jesus foi um transgressor porque rompeu as fronteiras que foram traçadas pelos poderosos, abrindo um caminho de humanidade a partir de baixo, do lado dos excluídos... Ele não veio para sancionar uma ordem existente, deixando cada um com sua exclusão, senão para oferecer a todos um caminho de humanidade.
Um transgressor consequente, a serviço da vida e dos últimos.
Como transgressor subiu a Jerusalém; e por isso sua morte será tramada por aqueles que se sentiam ameaçados e sua vida acabará destroçada pelas mãos dos profissionais da morte.
Em Jesus acontece algo totalmente novo; Ele desencadeou um “movimento de vida”; Ele trouxe uma nova maneira de viver e de comunicar vida que não cabia nos esquemas daqueles que estavam petrificados em suas posições e visões.
A novidade de Jesus consistia, justamente, em afirmar que existe um caminho para encontrar a Deus que não passa pelo Templo, pela pompa dos ritos e pela observância estrita das leis. Desse modo, reconhece-se a vida como lugar privilegiado da Sua Presença.
Quem entra em comunhão de vida com Ele, conhece uma vida diferente, de qualidade nova, expansiva...
Isso implica: acolher outras vidas na nossa própria vida, abrir espaços para que as histórias dos excluídos e diferentes encontrem morada nas nossas entranhas, na nossa memória e no nosso coração; descer de nossa montaria, como bons samaritanos, para nos aproximar e cuidar das vidas feridas...
A entrada de Jesus em Jerusalém é um chamado à vida. Ele é a Vida que abre caminho por aqueles espaços urbanos, carregados de poder e morte. Vida despojada de vaidade e prestígio, conduzida por um jumentinho.
Jesus se apresenta sem coroa e sem ornamentos; não tem outra coisa a compartilhar a não ser o amor e o serviço; não vem para governar e impor sua vontade, mas fazer-se irmão de todos. Jesus não busca grandes aclamações, nem aplausos, mas tão somente busca o sentido e a razão de viver.
“Quando Jesus entrou em Jerusalém, a cidade inteira ficou agitada” (v.10).
“Agitar”: este verbo não traduz bem a realidade: na verdade, a cidade ficou abalada, como se fosse um tremor de terra. Quando Jesus entrou, como Rei messiânico em Jerusalém, a cidade tremeu, como aconteceu com o anúncio do seu nascimento (Mt 2,3) e como será na hora da sua morte (Mt 27,51).
Jesus, com sua presença surpreendente, sacudiu a cidade de sua “normalidade doentia”, de sua letargia, de seu ritualismo comandado por aqueles que eram os poderosos traficantes da dor e da morte.
Jesus é a Vida verdadeira, a Vida que deseja despertar vida nos outros, para romper com tudo aquilo que a limita. Por isso, o relato deste Domingo de Ramos quer expressar o encontro de uma cidade com Aquele que é Vida e que é fonte de vida em crescente amplitude. Jesus, o “biófilo”, também sonhava com uma Jerusalém acolhedora, espaço da convivência e da paz.
Quando Jesus quer entrar no coração humano, não busca fazer espetáculos. Busca a simplicidade.
O povo lançava ao solo seus mantos. O que deveríamos pôr como tapete para que Jesus venha até nós caminhando sobre ele? Em vez de mantos, talvez pudéssemos cobrir o solo com tudo aquilo que nos sobra
e outros necessitam; também deveríamos forrar o chão com nossas debilidades, com nossas resistências, com nossas carências... Porque também nossas pobrezas podem cobrir de festa o caminho. O caminho de Jesus que vem a nós é também caminho de libertação e cura.
A liturgia deste dia também nos recorda que o “espaço urbano” é, certamente, área de missão da Igreja e dos cristãos. Sua principal preocupação deve ser a defesa integral da vida e de seu sentido último, o mundo dos valores éticos que iluminam o homem e a mulher na sua ação no mundo.
Como seguidores(as) de Jesus, é preciso voltar a pôr o coração de Deus no coração da grande cidade, para renová-la a partir de dentro.
Faz-se necessário uma opção por adentrar e viver imersos, com todas as consequências, no interior dos grandes centros urbanos, em seu coração, para aí descobrir o verdadeiro coração de Deus que pulsa ao ritmo dos despossuídos, dos excluídos, dos sofredores e dos sedentos por uma vida mais digna.
No meio das cidades encontramos homens e mulheres “especiais” que carregam alegremente, e muitas vezes com um profundo sentido crítico e político, a dor da humanidade, e se convertem assim em fator essencial de esperança para um futuro humanizador; são pessoas que prestam sua vida, sua acolhida e seus cuidados aos doentes, aos moradores de rua, aos deficientes, aos anciãos e solitários...
Neste tempo de pandemia do “coronavírus”, devemos expressar nossa especial gratidão aos “profissionais da saúde” que arriscam suas vidas para que outros possam fazer a “travessia” sem piores consequências.
Somos convidados a viver a mística dos profetas nas grandes cidades. O místico não se cansa de ser sinal de esperança e testemunha do Deus da Vida no meio das contradições da cidade. Na cidade somos chamados a abrir nossas casas e estarmos sempre prontos para receber os desafios que vem da rua.
A ação profética é sempre a busca permanente do outro, além das paredes da própria casa.
Texto bíblico: Mt 21,1-11
Na oração: preparar-se para fazer o “caminho da fidelidade” de Jesus, vivendo intensamente os mistérios da Semana Santa, através das celebrações, do silêncio solidário e do compromisso com aqueles que, na Jerusalém de hoje, prolongam a Paixão de Jesus.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo que morra, viverá” (Jo 11,25)
O quinto domingo da Quaresma é como uma espécie de Monte da visão, de onde podemos contemplar as primeiras luzes da Páscoa e da Vida. Ela ainda não é realidade, mas já podemos ver seus primeiros sinais. O importante é nos perguntar se, de verdade, estamos nos aproximando deste Monte da visão ou, simplesmente, ficamos no caminho, cansados, fatigados ou indiferentes.
A Páscoa é a nossa verdadeira meta? É o nosso verdadeiro horizonte?
É preciso tomar consciência de onde saímos: lugares estreitos, visões atrofiadas, atitudes conservadoras, ideias enfaixadas, sentimentos carregados de ego, coração petrificado... Ou será que vamos chegar à Pascoa tão escravos como quando partíamos, no início da Quaresma? Quanta liberdade temos hoje que não tínhamos no começo?
A CF deste ano nos apresenta como tema: “Vida: dom e missão”. Sabemos que este caminho em favor da vida é belo, instigante, mas muito arriscado. Aqueles que trabalham em favor da vida, aqueles que tiram homens e mulheres de seus túmulos, são frequentemente perseguidos, porque há interesses em jogo e muitos preferem que as coisas continuem do mesmo modo. Assim diz o Evangelho: “Que morra um (Jesus) para que o “bom” sistema prossiga...” Que morram muitos, milhões, para que o sistema neoliberal continue sobrevivendo.
É perigoso optar pela vida e testemunhar a ressurreição neste mundo de morte. Há muitos (pessoas e instituições) que preferem manter as coisas assim, traficando com a morte (vendedores de armas, promotores de uma economia que mata, etc). O evangelho revela que os primeiros traficantes da morte (“que Lázaro apodreça!”) são os dirigentes religiosos e políticos que controlam o poder a partir da mesma morte.
A única verdade é a que abre espaço de vida para todos, em justiça e paz. O único valor é a vida, cada vida, acima da “santa nação” à qual apelava Caifás, compactuando com o Sacro Império de Roma.
No processo do seguimento de Jesus, ao longo da Quaresma, somos tomados por uma “moção à vida” que nos impulsiona a uma “missão em defesa da vida”. Da moção à missão: este é o dinamismo original deste tempo litúrgico.
Alguém já teve a ousadia de afirmar que a morte é mais universal que a vida; todos morrem, mas nem todos “vivem”, porque incapazes de reinventar a vida no seu dia-a-dia; marcados pelo medo, permanecem atados, debaixo de uma fria lápide, sem nunca poder entrar em contato com a vida que flui dentro de si e ao seu redor. Na maioria dos casos, as pessoas passam sobre a vida como sobre brasas: de uma maneira superficial, fugindo do grande sentido da própria existência. Diante do impulso por viver em plenitude, contentam-se em mal-viver ou sobreviver. Trata-se de pessoas mortas diante do sentido da vida, ou seja, pessoas alienadas, desconectadas de si mesmas, sem experiência pessoal profunda e sem ter dentro de si a fonte da confiança e do entusiasmo. Criam sepulturas e se enterram.
Quem não sabe por quê vive e para quê vive, não pode eleger o como quer viver. O apelo de Jesus – “Lázaro, vem para fora!” - é um princípio de esperança, mas também de compromisso em favor da justiça neste mundo.
“Lázaro, vem para fora!” Hoje, com muito mais intensidade, é preciso deixar ressoar este grito. Venhamos todos para fora, de maneira que não vivamos mais de mortes, que não vivamos mais na indiferença e na letargia, envolvidos em sudários e vendas, compactuando com a violência e com a injustiça, dando cobertura aos que matam! Esta expressão – “vem para fora!”- é para todos; temos de sair de um mundo em que, de um modo ou de outro, nos acostumamos com as mortes, defendendo mediações e estruturas que atrofiam a vida.
Sair do túmulo significa viver para a vida, na justiça e na solidariedade; que todos possamos viver para a acolhida e a concórdia, condenando a violência de um modo radical. O caminho da vida começa ali onde tomamos consciência que não se pode matar ninguém para “manter a própria segurança”; que ninguém se aproveite da injustiça para justificar algum tipo de ação opressora.
“Jesus era muito amigo de Marta, de sua irmã Maria e de Lázaro”, e é nessa corrente de vida e amor onde aprendemos a força sanadora que as relações tem. Os três irmãos representam a nova comunidade dos seguidores de Jesus; e Jesus está totalmente integrado no grupo por seu amor a cada um(a). Cada membro da comunidade se preocupa pela saúde do outro.
A morte de Lázaro se converteu em uma benção para suas irmãs e seus amigos. Depois de atravessarem juntos a experiência dos limites, de reconhecerem-se feridos e de abraçarem a dor, fortaleceram-se os vínculos entre eles, e a amizade pode se expandir.
O amor e a amizade devolveram a vida a Lázaro, recriando esse “tecido de relações” que Jesus estabeleceu com esta família de amigos, em Betânia. Vivemos, também nós, um tempo de decomposição social e de relações superficiais. Talvez, quem sabe, muitos acontecimentos que nos custam viver escondem também uma benção.
As perdas, a dor, a doença..., nos aproximam dos outros, nos fazem mais solidários. Humaniza-nos também a ternura, a bondade, o tratar mutuamente com cordialidade... O sofrimento e a perda podem nos despertar para a dimensão de profundidade da realidade e de nós mesmos. Mas precisamos passar por um processo de transformação para que o sofrimento e a dor nos abram ao Mistério e não nos afundem no desespero. Jesus vai ajudar Marta e Maria a passar por este processo.
Em chave da interioridade, no relato evangélico deste domingo, “Lázaro” pode significar também aquilo que rejeitamos em nós mesmos, aquilo que deixamos enterrado sob uma lápide porque não nos agrada; o que ocorre é que tudo o que enterramos e reprimimos começa a exalar mau cheiro. Para começar a viver, é preciso, antes de mais nada, reconhecer o que já está morto em nós (falta de sentido, ego inflado, preconceito, frieza nas relações); reconhecer nosso Lázaro interior naquilo que há de positivo e que ainda não foi ativado, porque preferimos nos fechar em mecanismos egocêntricos; reconhecer nosso Lázaro naquilo que nos pesa e que é reprimido, ameaçando-nos continuamente como uma sombra.
Mas não é suficiente reconhecê-lo. Exige-se também crer na força da vida e no dinamismo do próprio ser habitado por Deus, que nos cria constantemente. A partir daí, podemos escutar a palavra de Jesus que chama à vida e ressuscita o Lázaro que ainda vive em nós. O que mais precisamos é reagir à apatia e à acomodação, a partir da confiança na vida e na palavra de Jesus.
O “ego” é nosso principal sepulcro: tudo o que significa culto ao “eu”, todo tipo de egoísmo, narcisismo e individualismo. É a incapacidade para a relação aberta e generosa; é o coração solitário; é aquele que se fecha em si mesmo, se asfixia, morre. No fundo, é o sepulcro do não-amor.
Sabemos disso: “todo aquele que não ama está morto”.
Texto bíblico: Jo 11,1-45
Na oração: deter-se para contemplar o coração de Jesus comovido, sacudido, diante da dor e da morte; assim é o seu coração: feito com as fibras da fortaleza e da coragem, entrelaçadas com as fibras da compaixão e da ternura.
- Para captar a presença de Deus em sua vida, fique atento(a), desperto(a), não perdido(a) em tantas coisas que o(a) levem a viver afastado(a) de si mesmo(a).
- Deus é presença calada e respeitosa. No silêncio e no olhar profundo pode-se captar os vestígios de sua presença. No amor aos outros, cada um(a) se abre à densidade de Seu amor.
- No assombro diante da vida, sentida em seu interior, perceba-se mergulhado(a) no Mistério.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Itaici-SP
“Vai lavar-te na piscina de Siloé” (Jo 9,6)
Tem-se dito, e com razão, que a espiritualidade cristã é uma “espiritualidade de olhos abertos”.
Na realidade, isso vale para toda espiritualidade genuína, ou, em outras palavras, não seria verdadeira aquela espiritualidade que nos alienasse ou nos isolasse da realidade, em particular da realidade mais dolorida e sofredora. Há motivos para suspeitar de uma espiritualidade que não desemboca na compaixão, entendida esta como a capacidade de entrar em sintonia com o outro que sofre, e que se traduz numa ação eficaz a seu favor.
A CF deste ano nos apresenta o samaritano como personagem inspirador na nossa vivência da espiritualidade cristã: “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele”.
Todos nós, de uma maneira ou de outra, somos cegos de nascimento, porque nascemos e crescemos em meio a sistemas sociais e religiosos que domesticaram nosso olhar, nos educaram a ter um olhar avesso e atrofiado. A cura do cego de nascimento, apresentado pelo evangelista João, é o sinal que nos fala daquilo que o Senhor nos oferece: caminhar na claridade do dia.
Este homem está cego, já que nasceu no mundo fechado e ao longo de toda a sua vida aprendeu a ver com o olho cego da sinagoga. Jesus vai curá-lo através de um gesto de íntima proximidade; não realiza um espetáculo para provocar espanto, nem diz palavras ininteligíveis. Simplesmente agachou-se, cuspiu no chão e com sua própria saliva fez um pouco de barro; com a gema de seus dedos tocou com ternura os olhos do cego e o enviou a lavar-se na piscina de Siloé. É uma cena de reconstrução de uma pessoa quebrada e que nos recorda o primeiro barro com que Deus oleiro criou o primeiro ser humano.
No cego curado se revela a ação permanente de Deus: despertar a luz escondida em nosso interior, ativar a vida para dar-lhe amplitude maior.
Com o relato do cego de nascença, o evangelista João está propondo um processo catecumenal que com-duz o ser humano das trevas à luz, da opressão à liberdade, da identidade ferida à identidade reconstruída, da exclusão à participação. Mas, para isso, é preciso deslocar-se, fazer a travessia e descer em direção a Siloé, lugar das águas recriadoras. Este texto remete à experiência fundante da vida.
O caminho de “descida” é o caminho da vida. Siloé está situada na parte baixa da cidade, afastada daqueles que, na parte alta, controlam e manipulam religião e as pessoas, através da centralidade da lei, do culto, da tradição... Ali não há possibilidade da vida se expandir e se expressar em todas as suas potencialidades.
O reservatório de Siloé estava situado fora das muralhas, na parte baixa de Jerusalém e recolhia a água da fonte de Guijón e que chegava até ele conduzida por um canal-túnel (daí o nome aramaico de “siloah”= emissão-envio, água emitida-enviada). Era uma maravilha de engenharia, mandado construir pelo rei Ezequias no ano 700 ac, para fazer a água chegar à cidade.
No final daquele túnel o cego se faz presente, lava-se, assume sua vida, torna-se independente: um novo nascimento. Agora ele começa a acreditar em si mesmo, em seu valor como ser humano, em sua capacidade de ver e de dar direção à sua vida; assume sua condição humana e deixa de se sentir escravo dos outros, controlado por pais e mestres, como um mendigo inútil; na sua liberdade, ele agora pode assumir sua vida, decidir, dizer, afirmar-se...
Inspirados no evangelista João poderíamos dizer: a doença é a manifestação da perda do contato do ser humano com sua fonte divina. As duas narrativas de cura mais importantes no 4º. evangelho, ocorrem no tanque de Betesda e no reservatório de Siloé. Quando o ser humano é separado de sua fonte divina, ele adoece, e a cura acontece, quando esse contato com a fonte interior é reestabelecido. Para que isso aconteça, Jesus não precisa levar o doente até a piscina de Siloé; bastam o encontro com Ele e a força de Sua palavra para reconectar o enfermo com sua fonte profunda, da qual estivera separado.
Jesus reconstrói o cego quebrado em sua dignidade, mas motiva-o a assumir sua responsabilidade, deslocando-se ao reservatório de água de Siloé e rompendo sua dependência para com os fariseus e sacerdotes que o oprimiam, mantendo-o preso à sua situação de cegueira existencial. O apelo de Jesus é para que o cego seja ele mesmo, em liberdade; com seus gestos e com a força de sua palavra, Jesus despertou no cego a mobilidade e independência.
Nesse sentido, caminhar em direção a Siloé é descer em direção à própria humanidade, ao mais profundo de si mesmo, para lavar-se no manancial das águas puras. O cego seguiu as instruções, recuperou a vista e atingiu a integridade humana: passou da morte à vida, da opressão à liberdade.
Todos sabemos que o ser humano é dotado de recursos internos inesgotáveis. Cada um possui dentro de si uma fonte de forças reconstrutoras, renováveis, resilientes. Mas, muitas vezes, é preciso de um estímulo externo para reconectar-se com essa fonte.
Sabemos e sentimos, no mais profundo, o que é mais saudável e vital para nós, porém precisamos do encorajamento externo para voltar a confiar em nossas próprias potencialidades. O evangelho deste domingo nos ensina o caminho através do qual descemos a uma dimensão mais profunda e assim chegamos à corrente subterrânea; aqui experimentamos a unidade de nosso ser; aqui é o lugar da transcendência, onde nossa transformação realmente acontece.
Tal experiência significa abertura, dilatação do coração, expansão da consciência ao ver que tudo parte de Deus (Fonte do rio da vida) e tudo volta para Deus (rio que mergulha no Mar). A experiência de oração, junto à Piscina de Siloé, nos conduzirá à outra fonte, aquela que brota do coração, e que estava ressequida, impedindo-nos de reconhecer o murmúrio da água viva.
Sentados à beira da fonte silenciosa, poderemos, também nós, atingir experiências imprevistas e surpreendentes, ou reconhecer, através do murmúrio das águas, “vozes novas” que nos incitam a peregrinar para as regiões desconhecidas do nosso próprio interior. Só assim, poderemos vislumbrar o outro lado e tocar as raízes mais profundas que dão sentido e consistência ao nosso viver.
O manancial de nosso ser essencial constitui nossa autêntica vida. Descobri-lo, abrir-nos a ele, fazer-nos transparentes a ele e vivê-lo cada dia..., constituem a plenitude de nossa realização. A “descida” até o mais profundo de nós mesmos, requer que deixemos para trás um contexto de competição, de rivalidade e vazio, de fechamento e rigidez, de superficialidade e isolamento...
O encontro com a “água viva” abre futuro novo, motivando-nos à tomada de decisões, a assumir um estilo de vida coerente com aquilo que encontramos no fundo do nosso próprio coração.
Texto bíblico: Jo 9,1-38
Na oração: sente-se junto à sua Siloé interior; mergulhe na “fonte” que corre, desça às “águas” do amor do Pai, deixe-se molhar pelas Palavras do Filho e receba a força e a luz do Espírito.
- Na sua vida, o que está bloqueando, impedindo a manifestação das melhores forças, inspirações, criatividade?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Todo aquele que bebe desta água terá sede de novo” (Jo 4,13)
Diante da imagem do deserto, muito presente durante o tempo quaresmal, a sensação é de sede.
O deserto evoca nossa sede de água e de plenitude. Onde encontrar a água? Como saciar nossa sede?
É cada vez maior o número de restaurantes que dispõem de “menu de águas”. Águas dos mananciais mais puros, dos aquíferos mais profundos, das nascentes mais cristalinas... Água abundante e ao alcance daqueles que podem pagar por ela. Uma água para cada sede e uma sede para cada água.
No entanto, no mais profundo de nosso ser, somos habitados por uma sede que nenhuma água pode saciar: sede de sentido, de plenitude, de vida inspirada e criativa...
Bendita sede que nos mantém abertos a Deus e aos outros! As pessoas que fizeram diferença e mudaram o mundo foram aquelas profundamente sedentas. Amaram essa sede de que fala Jesus: “Se tu conhecesses o dom de Deus...” Pessoas que ativaram a sede de justiça, no deserto de uma injustiça asfixiante; pessoas que suportaram a sede de paz sob forte pressão das fábricas de armas; pessoas que viveram a fundo sua fé em uma Igreja que, com frequência, as deixava sedentas e as colocava à margem. Pessoas que se encheram de Deus porque renunciaram saciar aquela sede com qualquer água. Precisamos de pessoas, como a samaritana, que nos deem as coordenadas d’Aquele que pode despertar nossa sede, antes de nos dar água.
Jesus, junto ao poço de Jacó, é a viva imagem de um “Deus sedento”, que ama a humanidade até morrer de sede por ela, e que uma esponja molhada em vinagre não conseguirá apagá-la. Junto ao poço, nossa pequena sede e a sede de Deus se encontram. Sua sede de justiça confrontada com nossa sede de harmonia; sua sede de misericórdia confrontada com nossa sede de reconhecimento; sua sede de compaixão confrontada com nossa sede de segurança. Não para diminuir nossa sede, mas para ampliá-la; não para menosprezá-la, mas para dignificá-la.
A vida, carregada de obrigações, compromissos, preocupações, rotinas..., onde investimos tanta atenção e energia, pode maquiar ou bloquear as sensações profundas, fazendo-nos perder o contato com nossa sede original e criando um deserto existencial. Jesus assume nosso deserto; acolhe-o, fazendo-se presente em seus recantos de dúvida, de medo, de solidão. “Dá-me de beber”, ressoará no nosso eu mais profundo. E poderíamos lhe dizer: com a sede que temos, nos pedes que sacie a tua sede? A resposta não se faz esperar: é Deus quem tem sede de nós, é Jesus que nos convida a partilhar de nossa água com Ele.
Jesus cansado e sedento, sentado à beira do poço; uma mulher com sede que acode com seu balde para tirar água. Dois sedentos e com a água no poço. Sedentos os dois de água, mas, possivelmente, os dois também sedentos de algo mais que água. Jesus sedento quer encher de água viva aquele coração cheio de “maridos”; uma mulher sedenta de algo mais que pudesse apagar a sede que seus maridos não conseguiam.
A samaritana chega ao poço, alheia ao que ali lhe esperava e que, na trivialidade de sua vida cotidiana, tudo fazia-se previsível: vai somente buscar água com o cântaro vazio para retornar à sua casa com ele cheio. Não há mais expectativas, nem outros planos, nem mais desejos. Mas o imprevisível está esperando por ela, na pessoa daquele galileu sentado na beira do poço, que inicia uma conversação sobre coisas banais, talvez para não assustá-la: falam de água e de sede, de poços e de velhas desavenças entre povos vizinhos, coisas de todos os dias.
Jesus começa como o frágil sedento que se atreve a pedir água. A mulher, muito segura de si, sente-se dona do poço, da água e do balde. Subitamente, irrompe a linguagem das “coisas do alto”: o dom, uma água que se converte em manancial vivo, a promessa de uma sede saciada para sempre, um Deus que nos busca, fora dos espaços estreitos de templos e santuários.
A samaritana se defende e procura manter a conversa em um nível de trivial superficialidade, fugindo da irrupção do “novo” em sua vida. Mas, no final da cena, o cântaro que era símbolo da pequena capacidade que está disposta a oferecer, permanece esquecido junto ao poço, já inútil à hora de conter uma água viva. E os dois, Jesus e a mulher, terminam esquecendo-se da sede, da água, do poço e do balde. Duas vidas que se encontram e se comprometem: Jesus, que vai abrindo caminho para chegar ao profundo daquele coração feminino; a mulher que resiste, mas, aos poucos, se abre às palavras daquele homem imprevisível; Jesus, que vai desvelando a mulher por dentro, fazendo emergir seus profundos vazios; a mulher que co-meça a sentir o borbulhar do manancial em seu coração, encontrando-se com a verdade de si mesma; Jesus que vai se esquecendo do poço de Jacó e vai abrindo uma nova fonte naquele coração de mulher; a mulher que se esquece da água e do cântaro e regressa ao seu povoado gritando o que seu coração encontrara.
O encontro com a mulher samaritana é um belo ícone para descobrir o Mestre da Galileia que, como um grande mistagogo, vai conduzindo-a ao centro de si mesma, à profundidade de seu mistério pessoal e à consciência de ser uma “mulher habitada”.
“Descer” ao fundo do poço é a oportunidade para descobrir regiões novas e novos horizontes, para conhecer o reino interior, para encontrar a riqueza profunda e assim experimentar a transformação.
O caminho para uma nova qualidade de vida passa pela descida ao mais profundo do nosso próprio poço. Isso requer coragem para passar por todas as regiões sombrias e chegar ao fundo. Mas essa descida nos possibilita descobrir um mundo diferente que não conhecíamos, ou que havíamos perdido. Lá no fundo, encontra-se um bem precioso que podemos levar conosco, que nos ajuda em nosso caminho e que nos faz totalmente íntegros e sãos.
A CF deste ano, com o tema “Vida, dom e missão”, nos motiva a despertar as potencialidades de vida que ainda permanecem adormecidas. É preciso “descer” até às profundezas para descobrirmos uma nova riqueza que plenificará nossa vida; é “descendo” que poderemos revitalizar a vida que se tornara vazia e ressequida. É preciso despertar, escavar, avançar em direção ao “manancial” e saber que este não é nossa propriedade; ele nos é oferecido. Não basta falar de “água viva”, é também necessário “escavar” nosso “chão interior”, desbloquear e ampliar o espaço do coração para que o manancial ali presente, encontre chance de emergir e dar um novo sabor à nossa vida.
A vida sempre está oculta nas profundezas. A pessoa superficial é aquela que se confunde com suas ideias, seus apegos, suas falsas seguranças.... A pessoa do “eu profundo” é aquela que vive a partir da raiz, da fonte mesma da vida, e deixa vir à tona todas as suas riquezas, dons, capacidades...
O percurso quaresmal “des-vela” nosso “eu profundo”, o lugar onde habitam os aspectos benéficos da nossa personalidade, as boas tendências, as qualidades positivas, os dons naturais, as riquezas do ser, as beatitudes originais, as aspirações de grande fôlego, as idéias-força, os dinamismos da vida..., que formam o eixo de nossa existência, o melhor de nós mesmos, o fundamento de nossa verdadeira identidade.
O “tesouro do ser” (certezas, intuições, projetos, valores...), ainda que pareça esquecido, permanece armazenado em sua mensagem essencial, e pode se tornar a força que orienta toda a vida, a sabedoria da própria vida, um lugar de fecundidade, de criatividade, fonte de renovação...
Texto bíblico: Jo 4,5-42
Na oração: para realizar-se e desenvolver toda a sua potencialidade, busque, na oração, cavar mais profundamente, até atingir as raízes de seu ser, o núcleo original de sua personalidade.
- Diante da presença de Deus, esteja aberto(a) ao contato com a própria realidade interior, para que venha à superfície aquilo que sustenta e dignifica o seu viver.
- Dirija seu olhar para o mais íntimo de si mesmo(a), onde nascem sentimentos e valores, decisões e gestos..., onde você é convidado(a) a se alegrar com os rastros da Graça.
- Deixe-se conduzir pela “sede” de Deus que está enraizada em seu coração.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“O seu rosto brilhou como o sol e as suas vestes ficaram brancas como a luz” (Mt 17,2)
“Saí de vossas trevas! Deixai para trás a segurança do vale e empreendei, sem medo, a subida ao monte, porque lá no alto a luz vos espera!”. Este poderia ser o apelo do evangelho da Transfiguração, que pede de nós mobilidade para sair das falsas seguranças de uma vida sem horizontes. De fato, há em nós uma força atrofiadora que nos faz preferir a acomodação, permanecendo tranquilos, perdidos no imediato e alheios à capacidade de transfiguração que se esconde por detrás da aparente normalidade das pessoas e das coisas.
“O mundo está cheio de esplendor espiritual e de segredos maravilhosos, mas basta um pequeno cisco sobre nossos olhos para que tudo fique escondido”(Baal Sem Tov). Por isso, no Evangelho de hoje, e com diferentes graus de intensidade, o evangelista sai da esfera plana das descrições precisas e exatas e se expressa na linguagem do excessivo, do simbólico, do totalizante: “seu rosto brilhou como o sol”, “suas roupas ficaram brilhantes como a luz”, “uma nuvem luminosa os cobriu”... E como contraste escuro frente a tanta luz, três pobres homens assustados que balbuciam disparates, que preferiam permanecer junto a esta situação tão surpreendente.
A Transfiguração está nos dizendo quem era realmente Jesus e quem somos realmente cada um de nós. Essa cena que Mateus relata é um símbolo das muitas “experiências de transfiguração” que todos experimentamos. A vida diária tende a fazer-se cinza, monótona, cansada, e a deixar-nos desanimados, sem forças para caminhar. Mas, eis que surgem momentos especiais, com frequência inesperados, em que uma luz atravessa nosso coração, e os olhos de nossa interioridade nos permitem ver muito mais longe e muito mais fundo daquilo que estávamos acostumados a olhar até esse momento.
A realidade é a mesma, mas nos aparece transfigurada, com outra figura, revelando sua dimensão interior, essa na qual tínhamos acreditado, mas que com o cansaço do caminhar tínhamos esquecido. Essas experiências, verdadeiramente espirituais, nos permitem renovar nossas energias e, inclusive, entusiasmar-nos para continuar caminhando, com o sentimento de “como se víssemos o Invisível”.
Aquele Monte (Tabor) foi um espaço instigante para Jesus, lugar alto de sua experiência radical, de onde Ele podia ver os problemas da humanidade, para senti-los, para assumi-los e mudar... O mesmo Jesus nos faz subir à grande montanha para que vejamos as coisas de outra forma, de outra perspectiva...
É preciso, de vez em quando, tomar distância e nos afastar do cotidiano rotineiro e atrofiado, para ampliar nossa visão e contemplar o drama humano; é decisivo nos situar diante do calor de Deus (sarça ardente) para desvelar nossa verdadeira identidade. Somente assim a Montanha nos transfigurará para que nos empenhemos no serviço em favor dos “desfigurados” do mundo.
Todos nós aspiramos por experiências como a dos discípulos de Jesus no alto do Tabor. Mas nós não podemos nos encontrar com Jesus no Tabor da Galileia. Necessitamos buscar nosso Tabor particular, os rincões de nossa morada interior, onde estão as fontes que mais forças nos dão, as luzes com as quais nos sintonizamos para iluminar e dar um novo significado ao nosso compromisso primeiro. Todos nós somos portadores de uma luz que procede de dentro, uma iluminação interior, que só aquele que vive a partir de sua própria interioridade consegue ter acesso a ela.
Ao relatar suas experiências espirituais, muitos místicos fazem referência a uma luz que ilumina com força seu interior. É uma graça que não se revela rara, pois temos consciência que “Deus é luz” e que o mesmo Jesus se definiu como a “Luz do mundo”. Somos envolvidos providencialmente por esta expansiva Luz. Todas as pessoas que fizeram esta experiência de encontro com o “Deus da Luz”, puseram os meios para fazer a viagem interior e ativar a “faísca da luz divina” ali presente. Na medida em que se deixaram invadir por essa Luz, aproximaram-se cada vez mais dela para vivê-la com mais intensidade e para deixá-la refletir em seus rostos e ações. Por isso, foram pessoas de presenças originais e iluminantes em seu meio.
No ritmo do cotidiano, o dom imenso da luz passa desapercebido. Que o digam aqueles que não podem ver; que o digam aqueles que nunca puderam estremecer-se diante de um pôr-do-sol ou diante das cores vivas de uma pintura; que o digam aqueles que nunca puderam ver o brilho de uns olhos cheios de amor... Na costumeira cotidianidade, o perigo de não valorizar a luz é evidente; no entanto, para quem contempla sua cotidianidade, a formosura da luz que se derrama sobre nós que vivemos neste planeta sem luz própria é a prova da generosidade de Deus para conosco.
Por isso mesmo, há vidas luminosas e vidas obscuras. Há pessoas cuja luz interior transfigura suas vidas: vivem na transparência da luz, seus gestos e atos são luminosos, admiram-se com o brilho da vida e desejam que tudo tenha esse brilho, iluminam com sensata positividade tudo o que acontece ao seu redor, colocam-se sempre na perspectiva de quem desfruta da cor e do amor no encontro com os outros...
O resplendor da Transfiguração brilha no interior de cada um de nós; não nos vemos vazios por dentro porque no mais profundo de nós, na morada mais interior, está o “sol de onde procede uma grande luz” (Santa Teresa de Jesus). Deixar-nos transfigurar. Somos seres de luz e nossa verdadeira transformação nasce de nosso interior.
Na Transfiguração, Jesus nos faz descobrir nosso verdadeiro ser, que vemos refletido n’Ele. A transfiguração não é condição de um “iluminado”, mas a realidade de toda pessoa que é capaz de “sair de seu próprio amor, querer e interesse” (S. Inácio). Deixar-se transfigurar é descentrar-se e expandir sua luz, para realizar aquele chamado único de Jesus dirigido a todos: “Vós sois a luz do mundo”.
Transfiguração é festa da luz: Jesus é a Luz e no encontro com Sua Luz podemos ativar a tímida luz presente no nosso interior. Só assim podemos ampliar os espaços de luz em nossas vidas, para contagiar-nos de luz e para comunicar uma mística de luz em nosso entorno. Não se trata de falsas iluminações, mas de alcançar outra perspectiva de vida, mais luminosa, mais positiva, mais esperançada.
Para transitar na noite de nosso tempo precisamos buscar, na Transfiguração, a Luz que a ilumine e nos indique a direção e o sentido de nossa existência. A “noite de nosso mundo”- carregada de tanta corrupção, violência, preconceito e intolerância - pede pessoas marcadas pela experiência da Transfiguração, capazes de ver a presença d’Aquele que é a Luz no meio das realidades simples e cotidianas, no profundo do coração de cada ser humano, de cada realidade vivente, de cada palmo de nossa terra, no mistério insondável do universo grávido de graça.
Precisamos cultivar não só olhos que vejam a realidade, senão que sejam capazes de contemplar, no meio da noite, a presença da Luz: uma luz que brota das profundezas da realidade, do profundo do ser, onde o Deus, Fonte de vida, sustenta tudo; uma Luz que nos faz descobrir nosso ser essencial: filhos e filhas amados(as) e irmanados(as) com todos e com tudo.
Texto bíblico: Mt. 17, 1-9
Na oração: Na nossa vida cristã, não faltam momentos de claridade e certeza, de alegria de luz.
E tudo depende de nossa visão, ou seja, se nosso olhar só capta o imediato e rasteiro que nos rodeia, ou se é capaz de descobrir o profundo e o luminoso em tudo...
- Como é seu olhar? Você é capaz de transfigurar o olhar para captar a presença da Luz, da profundidade de sentido, da presença de Deus... que há por detrás de cada circunstância?
- Sua presença cotidiana, é oportunidade para deixar transfigurar sua luz interior, que se visibiliza na bondade, na compaixão, no compromisso com a vida...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“O Espírito conduziu Jesus ao deserto...” (Mt 4,1)
Na experiência do batismo, Jesus escutou a voz do Pai. Trata-se do principal momento teofânico de sua vida, juntamente com a transfiguração. Mateus se serve deles para proclamar que a identidade de Jesus consiste em ser o Filho amado do Pai. Essa é sua identidade e nela se revela que seu “código genético” consiste em ser o Filho, o Amado, o Predileto..., sobre quem se visibiliza a complacência do Pai.
Agora podemos compreender sua ida ao deserto, movido pelo Espírito, como uma necessidade imperiosa de “processar”, no silêncio e na solidão, essa revelação, de alargar espaço, em sua interioridade, para o deslumbramento e o assombro.
O significado do deserto não é prioritariamente o penitencial. “Levá-lo-ei ao deserto e falar-lhe-ei ao coração”, tinha dito Oséias (2,16), convertendo o deserto em um lugar privilegiado de encontro pessoal e de escuta da Palavra. Jesus é conduzido ao deserto para acolher a Palavra escutada em seu coração no momento de seu batismo. Ele precisava de tempo para assentar no mais profundo de seu ser uma Palavra que o descentrasse para sempre de si mesmo e o situasse à sombra da ternura incondicional de Alguém maior.
O evangelista Mateus apresenta a estadia de Jesus no deserto como um tempo de lucidez, fazendo-nos perceber que a relação filial da qual Ele tinha tomado consciência, iluminou de tal maneira sua visão, que se tornara impossível confundir a Deus com os falsos ídolos que o tentador lhe apresenta: um deus em busca de um mágico e não de um Filho; um “deus” contaminado das vazias pretensões do pior da condição humana: ter, brilhar, ostentar poder, exercer domínio...
O que parece claro é que Jesus buscou o deserto para um tempo de discernimento, em oração e em solidão, diante do Pai que o proclamou seu Filho; Ele teve de refletir e discernir sobre o modo como assumiria sua missão em sua vida pública.
Ora, essa missão comportava, de fato, não só um fim que havia de realizar (a salvação e a libertação total da humanidade) senão, também, um meio, ou seja, um caminho e uma maneira de proceder, tendo em vista alcançar aquele fim. E esse meio ou esse procedimento era, essencialmente, a solidariedade com todos os pecadores e excluídos da terra, a ponto de morrer com eles e por eles.
Não podemos esquecer que o tentador não propõe a Jesus que se afastasse de seu fim, ou seja, de seu projeto messiânico de salvação (“Se és o Filho de Deus...”), senão que, na realidade, o que ele faz é oferecer a Jesus alguns meios determinados para realizar a implantação do Reino do Pai.
Como viver sua missão e a partir de quê lugar? Buscando seu próprio interesse ou escutando fielmente a Palavra do Pai? Como deverá atuar? Dominando os outros ou pondo-se a seu serviço? Buscando sua própria glória ou a vontade de Deus? Centrando sua vida na busca de poder e riqueza ou assumindo uma vida pobre, como expressão de solidariedade com os mais excluídos?
Na cena das tentações, vemos Jesus reagindo do mesmo modo como fez ao longo de toda sua vida: centrado e em sintonia afetiva com tudo aquilo que Ele vai descobrindo como o querer de seu Pai: a vida abundante daqueles que veio buscar e salvar. Ele não veio para preocupar-se de seu próprio pão, mas de preparar uma mesa na qual todos pudessem se sentar para comer; Ele não veio para que os anjos o carregassem sobre as asas, para angariar fama e “ter um nome”, mas para dar a conhecer o nome do Pai e carregar sobre seus ombros todos os perdidos, como um pastor carrega a ovelha extraviada. Não veio para possuir, dominar ou ser o centro, mas para servir e dar a vida.
O que livra Jesus de cair nos enganos do tentador é sua excentricidade, sua referência ao Pai e à sua Palavra, e, a partir desse Centro, receberá o impulso para abandonar o deserto e se deixar conduzir pela corrente de Vida, alimentada pelo Espírito. A partir desse momento, vê-lo-emos caminhando pela Galileia, entrando em relação com o mundo dos pobres e excluídos, anunciando o Reino, criando uma nova comunidade de vida, buscando colaboradores, aproximando-se das pessoas, entrando nas casas, acolhendo, curando, ensinando, abrindo um horizonte de sentido para a vida das pessoas...
A passagem evangélica das tentações também nos inspira a encontrar com o mesmo Deus a quem Jesus conheceu no deserto: um Deus que não exige de nós proezas nem gestos espetaculares, mas somente alimentar nossa confiança n’Ele e nosso agradecimento; um Deus que nos dirige sua Palavra, não para nos impor obrigações ou para apontar nossas fragilidades, mas para nos alimentar e nos fazer crescer; um Deus que não é encontrado nos lugares carregados de prepotência, de poder, de vaidade e consumismo, mas nos lugares do despojamento e da simplicidade de vida, nos lugares dos “descartados” e excluídos.
Muitas vezes pensamos que Deus é um “estraga-prazeres”, ou um Deus triste que não quer que vivamos prazerosamente. E, então, temos a sensação que as tentações são essas coisas fascinantes que nos seduzem, mas que temos de renunciá-las em nome de uma suposta “perfeição”. Porém, Deus não é Aquele que complica nossa vida com leis, sacrifícios, renúncias... Ele quer que vivamos e, de maneira intensa.
Para cruzar os desertos da vida é preciso ativar uma atitude de esvaziamento de tudo aquilo que é “peso morto” para chegar ao mais profundo e verdadeiro de nosso ser. O deserto nos revela de onde viemos e para onde vamos; ele nos remete inteiramente ao Doador da vida e desperta outros recursos vitais, aninhados em nosso interior.
Tudo o mais é pouco para a sede do coração. “Só Deus basta”, nos sussurra o deserto.
Desde sempre, a humanidade inteira e cada um de nós, estamos expostos à tentação. Faz parte de nossa condição humana. Trata-se de um conflito permanente que pode travar nossa existência por dentro.
Por um lado, sentimos o apelo e o impulso para o bem, para a liberdade, para o compromisso e a fraternidade. Mas por outro, sentimos também a sedução e a tendência para o egocentrismo, o prestígio e os instintos de poder e posse. Sentimo-nos simultaneamente santos e pecadores, oprimidos e libertados.
As tentações sempre estão diante de nós, como pedras que se convertem em pães, como aplauso buscado a partir dos critérios do mundo, ou como joelhos que se dobram frente às promessas de um ídolo com pés de barro. São dinamismos que bloqueiam o fluxo da vida, impedindo-a de se expandir e de se colocar a serviço de outras vidas.
Ser tentado é próprio do humano, mas o que é divino pode também ser encontrado em nosso interior.
Quem é conduzido pelo Espírito, é capaz de acessar à própria interioridade e não se deixa enredar pelos estímulos externos nem pelos impulsos egóicos.
Diante das tentações do poder, do ter e do prestígio, o(a) seguidor(a) de Jesus responde com a partilha, o serviço, a comunhão, a solidariedade... O tempo quaresmal vem ativar esse dinamismo expansivo. E a Campanha da Fraternidade nos motiva a fazer da vida um grande dom e um profundo compromisso.
Só quem se deixa conduzir pelo Espírito, como Jesus, consegue romper com tudo aquilo que atrofia a vida; só assim consegue fazer o salto libertador
Trata-se de ser dócil para deixar-se conduzir pelos impulsos do Espírito, por onde muitas vezes não entende e não sabe. É Ele que ativa o que há de melhor em si mesmo, expandindo sua vida em direção aos valores do Reino: desapego, serviço, esvaziamento do ego...
Na realidade, só existe uma “grande tentação” para os cristãos: a tentação radical da infidelidade a Cristo e a seu Reino. É a tentação de traçar para si mesmo um caminho, isto é, de projetar uma vida para si, dando uma direção diferente daquela que lhe deu o próprio Deus. Esta é a maneira de trair o melhor de si mesmo, de renunciar ao que há de melhor em si mesmo. Tentação essa que significa o fracasso da própria vida.
Texto bíblico: Mt 4,1-11
Na oração: Diante de “Jesus tentado”, recorde experiências pessoais de tentação: quais são aquelas que mais lhe afetam e lhe seduzem? Como você procede para não se deixar conduzir e nem se determinar por elas?
- Recorde dimensões da vida que precisam ser ampliadas a partir da experiência do deserto.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“E o teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa” (Mt 6,4)
Com a cerimônia da “imposição das Cinzas”, toda a Igreja dá início ao percurso Quaresmal. Neste tempo litúrgico, inspirados pelo tema da CF2020, teremos a oportunidade de experimentar um modo diferente de viver, onde a verdadeira liberdade terá a chance de se expressar.
Quaresma pode ser escola de vida para o restante do ano; é tempo favorável para “ordenar a própria vida” na direção do sonho de Deus para toda a humanidade. Para que este processo de “ordenamento” aconteça, o tempo litúrgico quaresmal nos convida a “considerar” as nossas relações vitais: com Deus, conosco, com os outros e com o mundo.
Nem sempre sabemos viver de maneira intensa: conformamo-nos com uma vida estreita, estéril, fechada ao novo, carregada de “murmurações”... O dinamismo do Seguimento de Jesus, no entanto, é gerar vida, possibilitar que o(a) discípulo(a) viva a partir da verdade mais profunda de si mesmo(a); ou seja, viver a partir do coração. O seguimento proporciona vigor inesgotável, a vida se destrava e torna-se potencial de inovação criadora, expressão permanente de liberdade, consciência, amor, arte, alegria, compaixão.... Por isso, o sinal decisivo de que alguém crê no Deus de Jesus está na vida que leva; ou seja, está na experiência de viver como viveu Jesus de Nazaré.Distanciar-se da vida superficial-consumista e eleger a vida plena, profunda, comprometida: aqui está o sentido do “percurso quaresmal”
Em sintonia com toda as comunidades cristãs somos chamados a viver o “tempo quaresmal” sempre de ma-neira nova e inspiradora. O centro de nossa vida é Jesus Cristo, sua pessoa, sua mensagem, o mistério de sua morte e de sua ressurreição. O caminho do seu seguimento é sempre rico e surpreendente. Muitas vezes, corremos o risco de viver o tempo litúrgico da Quaresma como uma celebração rotineira, algo já conhecido.
Contemplando Jesus Cristo, descobrimos também quem somos nós. Ele nos interpela: que queremos fazer de nossa vida? Como queremos viver? Para quê e para quem vivemos?...
Nesse sentido, através da Campanha da Fraternidade, a Igreja no Brasil nos motiva a viver a Quaresma como um tempo privilegiado para dar um novo sentido à nossa vida. Através do tema “Vida, dom e Missão” e do lema “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele”, somos movidos a desatar todas as ricas possibilidades e recursos que querem se expressar e que se encontram no mais profundo de nossa interioridade.
A imagem de Jesus, presente junto às vidas feridas e bloqueadas, nos ajuda a conhecer nossa própria interioridade e desperta nossa vida, arrancando-a de seu fatal “ponto morto”, de seus limites estreitos e constituindo-a como vida expansiva em direção a novos horizontes. Nesse sentido, nossa quaresma torna-se um “estar com Jesus” para, como Ele, dar a Deus o lugar central de nossa vida. A quaresma é um tempo em que damos maior liberdade a Deus para agir em nós; é abrir espaço, alargar o coração para a ação de Deus. É tempo de reconstrução de nós mesmos (conversão), de retomada da opção fundamental por Deus e pelo seu Reino (maior serviço, mais compaixão, mais partilha, mais solidariedade...).
O Evangelho da 4ª. feira de Cinzas fala das “práticas quaresmais” da oração, esmola e jejum, onde nossas relações são iluminadas e questionadas pelo modo de viver e de proceder de Jesus. São três gestos que nos humanizam e tornam a vida mais leve e com sentido; eles condensam o sentido da vida cristã e apresentam-se como uma alternativa privilegiada para viver com mais intensidade. A vida é um abrir-se aos demais (esmola), sintonizar-se com o coração de Deus (oração) e colocar ordem na própria existência (jejum).
É preciso criar espaço novo no coração e na mente, para que coisas novas aconteçam. Sintonizados com o lema da CF – “viu, sentiu compaixão e cuidou dele” – a Quaresma é também um tempo privilegiado para reeducar a olhar: superar o olhar possessivo, interesseiro, frio... e entrar em sintonia com o modo de olhar de Jesus, ou seja, olhar carregado de admiração, compaixão, calor humano... Este tempo litúrgico nos move a fixar o olhar naquilo que vivemos, a contemplar tudo o que compõe nossa existência, para dar um novo sentido e significado.
Como o bom samaritano, precisamos re-aprender a olhar, para nos deixar impactar pela situação dos outros, sobretudo dos mais carentes e excluídos. Nesse sentido, as três práticas quaresmais – “jejum, oração e esmola” – implicam também uma conversão do olhar, para captar o mistério da vida que nos envolve e nos aproximar d’Aquele que é Fonte da Vida.
A liturgia quaresmal nos propõe o jejum; aqui, a novidade não está tanto em reduzir o que comemos, o que ingerimos de uma maneira quase mecânica. O jejum também tem a ver com o sentido da visão: olhar a nós mesmos, fixar a atenção naquilo que nos alimenta, ativar a prática de nos olharmos com mais compaixão; talvez, afastar de nós aquele olhar que nos destrói por dentro, que nos causa dano, que bloqueia a expressão de nossa verdadeira identidade. O olhar é o reflexo de nossa interioridade; ele tem um grande poder porque deixa transparecer o que acontece e o que sentimos por dentro.
A outra prática quaresmal proposta é a esmola; dar o que temos, não o que nos sobra; aqui significa compartilhar um olhar novo, que eleva o outro, que consegue perceber nele um tesouro escondido, olhar humanizante e humanizador; tem a ver com o presentear ao outro um olhar de consolo, de acolhida, de cuidado, de sorriso...; acostumamos a “ver” as coisas, as pessoas e, de tanto ver, banalizamos o olhar, perdendo a capacidade de despertar assombro e encantamento. Vemos e não olhamos. O que está próximo de nós, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual vai se estreitando e tudo se torna rotina.
É salvífico ativar o olhar mais expansivo e contemplativo, um olhar que nos faz sair de nós mesmos, conduzindo-nos à admiração e ao encantamento diante do dom maravilhoso da vida, em suas múltiplas expressões. Olhar que desperta a gratidão e o louvor. Um olhar que deixa transparecer, neste tempo propício, que a Vida com maiúscula é possível.
E, finalmente, a prática quaresmal por excelência: a oração. Deixemos retumbar dentro de nós a pergunta: “a partir de onde você olha?” A liturgia nos pede, neste tempo litúrgico, que sejamos capazes de olhar a partir de Deus; que fixando nosso olhar no Senhor Jesus, sejamos capazes de olhar-nos com mais bondade, de olhar os outros com mais carinho, de olhar a criação com mais admiração. Só assim teremos olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo.
Quaresma é um tempo para nos deixar olhar por Deus, para descobrir o olhar em cada irmão e aprender a olhar como Deus olha, porque um olhar Seu, bastará para nos fazer “converter e crer no evangelho”.
“Um olhar contemplativo percebe sinais de evangelho nos acontecimentos mais simples” (Ir. Roger).
Quaresma é um convite a começar outra vida, a concentrar nossas energias e a nos deslocar em outra direção. Nesse sentido, a vivência quaresmal é uma verdadeira “escola de vida”, cujo aprendizado nos leva ao centro do nosso ser, para enraizar nossa vida no coração da Trindade, dele haurir a seiva da vida divina e deixar-nos plenificar pela graça transbordante de Deus.
Nada mais contrário ao espírito do Evangelho que a vida instalada e uma existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos, definitivos, tranquilizadores... É vida em movimento, gesto de ir além de nós mesmos; vida fecunda, potencial humano. Vida com fome e sede de significado, que busca o sentido... Vida que é encontro, interação, comunhão, solidariedade. Vida que é seduzida pelo amor, pela ternura. Vida que desperta o olhar para o vasto mundo. Vida que é voz, é canto, é dança, é festa, é convocação...
Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18
Na oração:
- torne o seu coração vulnerável ao olhar do Pai, receptivo a todo apelo que vem d’Ele, deixando-se tocar pelo inesperado, pela novidade, pela iniciativa amorosa de Deus.
- evangelizar o olhar: aprender a olhar como Jesus, ultrapassando as aparências.
- como você “olha” as pessoas, as coisas, os fatos, o mundo...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Portanto, sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48)
O evangelho deste domingo é continuação do discurso de Jesus sobre o Monte, onde apresenta o modo original de ser e de viver dos seus seguidores; trata-se da nova justiça do Reino, onde Jesus vai até às raízes mais profundas de nosso ser para ativar o amor ali presente; este amor, aberto, oblativo, gratuito..., é capaz de uma nova relação até com os inimigos, em profunda sintonia com o modo de agir do Pai, que ama a todos, bons e maus, pois todos são seus filhos e filhas.
Mas, quando Jesus fala em amar os inimigos, não se refere somente àqueles inimigos externos. Suas palavras se referem também a um acontecimento interior. Quando o inimigo é uma força externa nem sempre há motivos para assumirmos a culpa. Mas quando o inimigo se encontra no nosso interior e nós não conseguimos entrar em acordo com ele, os responsáveis somos nós mesmos; precisamos saber lidar com nossas sombras e fragilidades e, assim, reconciliar-nos com o inimigo interno que rejeitamos.
Reconciliar-nos com nossas fraquezas e nossos lados sombrios é um processo doloroso, mas, quando tentamos evitar essa dor e ignoramos o nosso adversário interior, acabamos gastando muita energia na ilusão de mantê-lo afastado. Se não chegarmos a um acordo com o inimigo em nosso interior, ele se transformará em um tirano que nos dominará; aquilo que rejeitamos em nós se transforma em juiz interior e esse nos manterá confinados na prisão do nosso próprio medo e da auto-rejeição.
A cura significa também reconciliação; nosso inimigo interior só se transformará em nosso amigo e ajudante no nosso caminho de vida se nos reconciliarmos com ele. Ao oferecer-nos um gesto de perdão em vez de um gesto de repulsão ou de condenação, tornamo-nos mais humanos. Demonstramo-nos humanos com quem mais precisa de humanidade: nós mesmos.
É o momento da compaixão para conosco mesmo.
Diante da necessidade de reconciliação com nossas sombras, limites, fragilidades e fracassos..., pode parecer estranho a afirmação final, no evangelho de hoje: “Portanto, sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito”. Lucas, no entanto, modifica as palavras de Jesus para escrever: “Sede misericordiosos, como vosso Pai é misericordioso”. Sem dúvida, esta expressão parece mais ajustada, inclusive por todo o contexto. E tem razão, porque não se pode exigir que o ser humano seja “perfeito”; não só não está ao seu alcance, mas essa demanda pode conduzi-lo a um perfeccionismo estéril e esgotador.
Foi assim que, ao longo da história, surgiu uma cultura da perfeição; por séculos, a perfeição seduziu, modelou, dominou e controlou a existência de comunidades e sociedades inteiras. A nossa cultura é controlada pela ideia de que o ser humano pode e deve ser “perfeito”. Desde a nossa infância fomos impelidos a procurar a perfeição.
Anos e anos, essa ideia de “perfeição” foi modelando nossa mente e petrificando nosso coração. Também na vida cristã, inúmeras pessoas e grupos religiosos nasceram e cresceram seguindo as pautas de formação do chamado “ideal de perfeição”, gerando muita rigidez, moralismos, culpabilidades, escrúpulos... e farisaísmo. O seguimento da pessoa de Jesus foi se esvaziando, dando lugar a um voluntarismo centrado na prática minuciosa de leis e normas (legalismo).
Esse conceito assumiu um valor central na compreensão e na orientação da nossa vida espiritual, reforçando-se a ideia de que tudo aquilo que diz respeito a Deus deve ser perfeito. E a santidade passou a ser considerada como sinônimo de perfeição. No entanto, transitar pelo labirinto da perfeição é desumano. Caminhar por ele é uma luta árdua e solitária, pois torna-se difícil pedir ajuda e arriscar-se a que as próprias imperfeições sejam expostas aos outros.
A expressão “atingir a perfeição” revela-se uma imprudência. A procura da perfeição não ajuda a pessoa a viver, a amar, a sonhar, a sorrir, a perdoar, a ser feliz... Nas suas formas mais graves, a busca da perfeição é estressante, conduz ao desprezo de si mesmo, torna insuportável a relação com os outros e pode conduzir à automutilação.
Quem tem sua vida centrada na busca da perfeição, aceitar o erro é uma tarefa muito humilhante e dificultosa. Longe de ser uma oportunidade, o fato de equivocar-se representa uma ameaça à sua dignidade. Para ele não basta ser bom, é preciso ser perfeito. E, embora, no segredo mais íntimo aceita que jamais será perfeito, pelo menos tenta aparentar isso diante dos outros. Este modo de proceder tem um nome – perfeccionismo – e são muitos os que caminham por seu labirinto.
Isso não é vida. Queremos habitar e transitar por lugares onde a compaixão e o cuidado possam abraçar nossas fragilidades e limites. Devemos passar de um humanismo da “auto-exaltação” para um humanismo da “auto-acolhida”.
A compaixão afirma o “eu real” contra as pretensões do “eu ideal”.
A compaixão orienta-nos para a realidade profunda da nossa fragilidade; na compaixão alcançamos a nós mesmos; a compaixão nos leva de volta à casa, revestindo-nos de uma atitude amorosa para conosco.
O tecido da vida cotidiana nos oferece muitas ocasiões para esta prática de bondade para conosco. E a compaixão faz parte da essência de nosso ser. É a mais humana de todas as virtudes humanas. É ela que nos oferece inúmeras ocasiões para tratar-nos como amigos, em vez de nos tratar como estranhos.
Graças à compaixão, podemos nos levantar depois de cada queda, abrir-nos novamente à presença da Graça de Deus, continuar a amar tudo aquilo que dentro e fora do nosso ser se apresenta sob as vestes do humano. Deste modo, realizamos uma orientação sadia no fundo do nosso ser. Assim, o discípulo de Jesus deve ser perfeito no Amor como o Pai celestial é perfeito no Amor. Ele ama a todos sem distinção, “fazendo nascer o sol e cair a chuva sobre maus e bons, justos e injustos”.
Neste sentido, o chamado do Evangelho a ser “perfeitos como o Pai” está em um contexto do amor incondicional e envolvente de Deus, um amor que faz com que o sol se levante para as pessoas más e boas, e que permite que a chuva caia sobre justos e pecadores. Em outras palavras, a perfeição cristã é o convite a um amor que nunca se esgota; é o convite para aprender a perdoar como Deus perdoa e a amar como Deus ama.
Alguns exegetas interpretam que, em hebraico, a expressão “perfeito” faz alusão a algo “completo”. Nesse sentido, o apelo a ser “perfeitos” deve ser entendido como um chamado a aceitar-se em toda a sua verdade. Este sentido seria totalmente aceito a partir de uma antropologia humanista, como um princípio básico de unificação e crescimento: “aceita-te com toda tua verdade, com tua luz e tua sombra, teus acertos e erros, tuas qualidades e defeitos...!”
Somos chamados a ser “completos”, aceitando nossa verdade e abrindo-nos à nossa verdadeira identidade que transcende nosso ego; só assim poderemos viver a misericórdia ou compaixão.
Textos bíblicos: Mt 5,38-48
Na oração: A aceitação do limite nos ajuda a celebrar a vida em todas as circunstâncias e a saborear a realidade, cheia de riscos, incerta e insegura para todos, mas, ao mesmo tempo, única e irrepetível para sempre.
Longe da tirania do perfeccionismo, saberemos conviver com a rica pobreza de nossa condição humana; é a calma e o silêncio da oração que irão nos libertar da banalidade e do perfeccionismo, fazendo-nos reconciliar com as fragilidades, próprias e alheias.
- Sua vida é regida pela “pauta da perfeição” ou da “misericórdia”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
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