A vida é um milagre.
Cada flor,
Com sua forma, sua cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
Com sua plumagem, seu voo, seu canto,
Cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
O espaço é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
— Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.
Manoel Bandeira.
Publicação original: in Estrela da Tarde (1963)
"Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas
Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio
Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação
Não posso adiar o coração."
António Ramos Rosa - Viagem através duma nebulosa, 1960.
E então, pergunto, por que esta vida
de pão e horas moídas?
Por que não somente um pássaro
na insciência da tarde clara,
uma árvore verde embutida
no musgo da manhã... Por que esta vida?
Por que não uma pedra severa
que não procura, não erra, não espera,
ou então outra vida, outra vida
que não esta, de sal e lâminas finas,
que não esta, de sal sobre as feridas?
Renata Pallotlini
De Obra Poética (1995)
O QUE EU PROPONHO
O que eu proponho
É um inferno limpo
Sem nenhuma espécie de sonho.
Também um infinito
Onde tudo se acabe
Menos o grito.
O que eu proponho é uma eternidade
Onde seja proibida
A saudade.
Sem ilusões de nenhuma casta.
O que eu proponho é estar contigo
Até que eu diga
(e nunca vou dizê-lo)
basta.
Renata Pallotini
In: Poesia Não Vende, publicado pela Hucitec Editora, 2016.
QUADRO NA PAREDE
Diante de mim a rendeirinha
de Vermeer, olhos baixos,
medita sem meditar sobre seu mundo
rendado.
Toda a verdade é só um ponto de cruz.
Antonio Brasileiro
O Caminho da Vida
O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos.
A cobiça envenenou a alma dos homens... levantou no mundo as muralhas do ódio... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e morticínios.
Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria.
Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco.
Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.
Charles Chaplin
VENTO
Passaram os ventos de agosto, levando tudo.
As árvores humilhadas bateram, bateram com os ramos no chão.
Voaram telhados, voaram andaimes, voaram coisas imensas;
os ninhos que os homens não viram nos galhos,
e uma esperança que ninguém viu, num coração.
Passaram os ventos de agosto, terríveis, por dentro da noite.
Em todos os sonos pisou, quebrando-os, o seu tropel.
Mas, sobre a paisagem cansada da aventura excessiva -
sem forma e sem eco,
o sol encontrou as crianças procurando outra vez o vento
para soltarem papagaios de papel.
Cecilia Meireles
In Viagem
PALAVRAS
Nem tudo se tem coragem de dizer.
Mas dizer é uma coisa muito forte,
e, afinal, somos quase que só palavras,
em cada vão do corpo, cada fresta.
Esse o delicado abismo que habitamos,
e medeia de uma frase a outra frase,
embora cá dentro, um vasto mundo,
entre as duras bolhas dos silêncios.
Que luz me ilumina quando falo?
E quando escrevo o que se acende em mim?
Uma palavra brilha e se liga a outra,
e nenhuma está morta em dicionário.
E qual dicionário poderia contê-las?
Não as contêm o meu próprio peito,
nem extenso país, nem qualquer língua.
Gilberto Nable
MUDAR OU NÃO MUDAR
Fui neurótico durante anos
Cheio de ansiedades, depressões e egoísmos.
Todos me diziam que mudasse,
Eu ficava ressentido e ao mesmo tempo concordava,
e queria mudar, mas não conseguia,
por mais que tentasse.
O que mais me feria era o meu melhor amigo,
que, tal como os outros,
insistia que eu mudasse.
Mas, um dia, ele disse-me:
“Não mudes! Gosto de ti como tu és!”
Estas palavras foram música para os meus ouvidos,
esta frase do amigo: “Não mudes! Não mudes!
Não mudes… Gosto de ti como tu és!”
Então relaxei; voltei a viver. E então mudei!
Agora sei que não teria conseguido mudar até encontrar alguém que me amasse,
com ou sem mudança.
É assim que vós me amais, ó Deus?
(em Anthony de Mello, O Canto do Pássaro)
As palavras estão muito ditas
e o mundo muito pensado.
Fico ao teu lado.
Não me digas que há futuro
nem passado.
Deixa o presente — claro muro
sem coisas escritas.
Deixa o presente. Não fales,
Não me expliques o presente,
pois é tudo demasiado.
Em águas de
eternamente,
o cometa dos meus
males
afunda, desarvorado.
Fico ao teu lado.
Cecília Meireles
Se escrevesse um poema neste instante, escreveria uma árvore. Deixaria meu sangue circular em sua seiva, e os pássaros fazerem ninhos com palavras de paina.
Paulo Bomfim
De ‘O colecionador de minutos.’
O AMOR DISPARADO
Pressente-se o perigo
O coração acelera
E ganha vantagem
O médico o chama
De taquicardia
E o cérebro sabe
Daqui pra frente
Quem é que manda.
Adriana Garcia
in: Garrafas ao Mar
Penalux, Guaratinguetá-SP, 2018
Este é o começo do dia,
como o começo e o fim do mundo:
as nuvens aprendem a voar,
os campos vão sonhando nuvens,
o vento vai sonhando o pó
onde tristemente o amor palpitará.
Este é o começo do dia.
Vemos tudo o que já foi visto,
alguma coisa não mais se verá.
Nem sempre olhamos o dia
tão face a face e tão docemente.
Nem sempre sentimos esta saudade,
ainda ausente, ainda futura,
do que há e do que não há.
Este é o começo do dia:
- do céu, da luz, da terra, dos homens,
que acontecerá?
Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)
Biografia
Cecília Meireles
Escreverás meu nome com todas as letras,
com todas as datas,
e não serei eu.
Repetirás o que ouviste,
o que leste de mim, e mostrarás meu retrato,
e nada disso serei eu.
Dirás coisas imaginárias,
invenções sutis, engenhosas teorias,
e continuarei ausente.
Somos uma difícil unidade,
de muitos instantes mínimos,
isso seria eu.
Mil fragmentos somos, em jogo misterioso,
aproximamo-nos e afastamo-nos, eternamente.
Como me poderão encontrar?
Novos e antigos todos os dias,
transparentes e opacos, segundo o giro da luz,
nós mesmos nos procuramos.
E por entre as circunstâncias fluímos,
leves e livres como a cascata pelas pedras.
Que mortal nos poderia prender?
Cecília Meireles
Litania das Horas Mortas
Por estas horas de silêncio e solidão,
Eu gosto de ficar só com o meu coração.
É nestas horas de prazer quase divino
Que eu me sinto feliz com o meu próprio destino.
Por estas horas é que a cisma me conduz
Por estradas de treva e caminhos de luz.
É nestas horas, quando em êxtase medito,
Que sinto em mim a nostalgia do infinito.
Por estas horas, quando a sombra estende os véus,
A fé me leva além dos mais remotos céus.
É nestas horas de tristeza e de saudade
Que desperta em meu ser a ânsia da Eternidade.
Por estas horas, minhas naus ousam partir
Para Istambul, para Golconda, para Ofir...
É nestas horas, Noite amiga, em teu regaço,
Que eu me difundo pelo Tempo e pelo Espaço.
Por estas horas eu somente aspiro ao Bem,
Que em vida se tornou minha Jerusalém.
É nestas horas, quando o espírito descansa,
Que me depões na fronte o teu beijo, Esperança!
Por estas horas é que eu sinto florescer,
Como os astros no céu, o jardim do meu ser,
É nestas horas de quietude que deponho,
Ó Noite! em teu altar, minha lâmpada — o Sonho.
Por estas horas é que eu gosto de sonhar,
Para ter ilusões brancas como o luar.
É nestas horas de mistério e beatitude
Que a Glória me fascina e a Poesia me ilude.
Por estas horas de tranqüila e doce paz,
Quanta serenidade o espírito me traz!
É nestas horas, quando a treva se constela,
Que ouço o teu canto nas estrelas, Filomela!
Por estas horas, a minh'alma anseia por
Teu encanto, Ventura! e teu engano, Amor!
É nestas horas de tristeza e esquecimento
Que eu gosto de ficar só com o meu pensamento.
Por estas horas eu me julgo Parsifal
Para ir pela renúncia à conquista do Graal.
É nestas horas que, como um eco profundo,
Repercute no meu o coração do mundo.
Por estas horas transitórias e imortais
Se desvanecem minhas dúvidas fatais.
É nestas horas de harmonia indefinida
Que eu tento decifrar o teu enigma, Vida!
Por estas horas, meu instinto morre, com
A intenção de ser justo, o anseio de ser bom.
É nestas horas de fantástico transporte
Que eu busco interrogar a tua esfinge, Morte!
Por estas horas, eu me enlevo assim, porque
Vela no lodo humano a luz que tudo vê...
Por tuas horas silenciosas, benfazejas,
Deusa da Solidão, Noite! bendita sejas!
Da Costa e Silva.
“Quando eu morrer… se pusessem uma lápide no lugar onde ficarei, poderia ser algo assim: “Aqui jaz, indignado, fulano de tal”. Indignado, claro, por duas razões: a primeira, por já não estar vivo, o que é um motivo bastante forte para indignar-se; e a segunda, mais séria, indignado por ter entrado num mundo injusto e ter saído de um mundo injusto. Mas temos de continuar, de continuar andando, temos de continuar"
José Saramago
Epigrama nº 2
És precária e veloz, Felicidade.
Custas a vir, e, quando vens, não te demoras.
Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,
e, para te medir, se inventaram as horas.
Felicidade, és coisa estranha e dolorosa.
Fizeste para sempre a vida ficar triste:
porque um dia se vê que as horas todas passam,
e um tempo, despovoado e profundo, persiste.
CECíLIA MEIRELES
In Viagem, 1939
O amor disparado
Pressente-se o perigo
O coração acelera
E ganha vantagem
O médico o chama
De taquicardia
E o cérebro sabe
Daqui pra frente
Quem é que manda.
Adriane Garcia
In: Garrafas ao mar (2018)
Preciso do teu silêncio
cúmplice sobre minhas falhas.
Não fale.
Um sopro, a menor vogal pode me desamparar.
E se eu abrir a boca minha alma vai rachar.
O silêncio, aprendo, pode construir.
É um modo denso/tenso - de coexistir.
Calar, às vezes, é fina forma de amar.
Affonso Romano de Sant’Anna
Tudo o que existe se esfarinha.
Tudo o que é férreo
um dia se corrói
que é outra forma de farinha.
A memória
tem mais fermento das ilusões
que trigo da razão.
Meus olhos são dois buracos negros.
Nada me desassossega
mais que o sossego.
Ronaldo Costa Fernandes
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