Eu sou essa pessoa a quem o vento chama,
a que não se recusa a esse final convite,
em máquinas de adeus, sem tentação de volta.
Todo horizonte é um vasto sopro de incerteza:
Eu sou essa pessoa a quem o vento leva:
já de horizontes libertada, mas sozinha.
Se a Beleza sonhada é maior que a vivente,
dizei-me: não quereis ou não sabeis ser sonho ?
Eu sou essa pessoa a quem o vento rasga.
Pelos mundos do vento em meus cílios guardadas
vão as medidas que separam os abraços.
Eu sou essa pessoa a quem o vento ensina:
- Agora és livre, se ainda recordas.
Cecília Meireles
Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.
Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?
Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?
Ninguém responde, a vida é pétrea.
Carlos Drummond de Andrade
Caminho sem pés e sem sonhos
só com a respiração e a cadência
da muda passagem dos sopros
caminho como um remo que se afunda.
os redemoinhos sorvem as nuvens e os peixes
para que a elevação e a profundidade se conjuguem.
avanço sem jugo e ando longe
de caminhar sobre as águas do céu.
Daniel Faria
de Explicação das Árvores e de Outros Animais (1988)
Tudo posso entregar-TE
- paisagens e criaturas,
a alegria de amar e ser amada,
a obediência dos meus passos,
a agilidade das mãos que tecem em Teu louvor,
a glória de caminhar todas as manhãs
em busca do pão
Deixa-me Tua Palavra
- medida de todas as coisas.
Carminha gouthier
DA PÁSCOA
Porque para ressuscitar um Deus
não se prescrevem datas
(o divino brota
quando se rompem couraças)
e porque os símbolos, os mitos
são do humano a ceia mais farta,
peço-vos licença, Senhor de minha estória,
para à vossa mesa sentar-me,
com minha nudez
e toda fome de minha alma
inglória.
Fernando Campanella
O MAR DOS MEUS OLHOS
Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma
E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
Da praia onde foram felizes
Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os Homens...
Há mulheres que são maré em noites de tardes
e calma.
Adelina Barradas de Oliveira
As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões
E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos – digo,
As mulheres – ainda que as casas apresentem os telhados inclinados
Ao peso dos pássaros que se abrigam.
É à janela dos filhos que as mulheres respiram
Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas
Transformam-se em escadas
Muitas mulheres transformam-se em paisagens
Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram
Nos ramos – no pescoço das mães – ainda que as árvores irradiem
Cheias de rebentos
As mulheres aspiram para dentro
E geram continuamente. Transformam-se em pomares.
Elas arrumam a casa
Elas põem a mesa
Ao redor do coração.
Daniel Faria
I
O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.
II
Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!
III
A dívida interna.
A dívida externa
A dívida eterna.
IV
Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?
Carlos Drummond de Andrade
Duas coisas admiro: a dura lei
cobrindo-me
e o estrelado céu
dentro de mim.
Orides Fontela
In: Alba
Soneto de Lamentação
Há um menino dormindo na areia
um sono pra lá de profundo
é o sono de todo mundo
sem sonho, sem vida, sem veia.
As águas trouxeram o menino
sem mãe, sem pai e sem terra
despojo e despejo de guerra
jogado ao mar, sem destino.
O choro é tão forte e agudo
que por desgosto se espalha
no rosto de todo mundo.
E um pouco da minha esperança
padece, afogada na praia
no corpo daquela criança.
José Barbosa Junior - 03/09/2015
Silêncio Amoroso
Preciso do teu silêncio
cúmplice sobre minhas falhas.
Não fale.
Um sopro, a menor vogal pode me desamparar.
E se eu abrir a boca minha alma vai rachar.
O silêncio, aprendo, pode construir.
É um modo denso/tenso - de coexistir.
Calar, às vezes, é fina forma de amar.
Affonso Romano de Sant’Anna
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