Para contemplar essa cena é preciso voltar no tempo e viajar no espaço. Quase 500 anos atrás, estamos num castelo da Espanha onde vamos encontrar um homem deitado num leito.

Ele chama-se Inácio e pertence à família de Loyola. Criado na corte, é um homem cheio de sonhos e vaidades. Mas agora, ali, naquela cama, tudo nele é a humilhação e o sofrimento de um soldado derrotado na guerra. 

Mas, vamos observá-lo, contemplar seu rosto e ouvir o que nos diz o seu coração. 

De repente o guerreiro acorda de um longo, doloroso e sobressaltado sono. O corpo dói horrivelmente. Qualquer movimento na cama, por menor que fosse, era como se mil punhais se cravassem em suas pernas, com a dor subindo como fogo até o cérebro. 

Inácio tenta lembrar. As imagens eram confusas. A febre ainda lhe queima a fronte. Aos poucos, entre mil dores, cena de batalha vem à sua mente. 

O bombardeio intenso. O ataque à muralha. A resistência teimosa, heróica, mas inútil, impossível. Pamplona em chamas. A explosão, o vazio, o nada. Lembranças truncadas pela ferida aberta, o sofrimento, a dor.

Acorda mais uma vez sem noção de tempo e espaço. Apenas as paredes em volta, a cama, as pernas imobilizadas por ataduras sob as quais parece haver ferrões em brasa. Então, aos poucos, vai tomando consciência de tudo. 

Há meses esta cena se repete. 

Inácio se recupera lentamente dos terríveis ferimentos da batalha. É uma surpresa o fato de estar vivo, apesar de ainda haver riscos. 

Ao lado, na cabeceira, os dois únicos livros que havia para ler. Ele estende a mão e toma “A vida dos santos”. Folheia o texto que quase decorara, tantas vezes o lera, mas seus olhos estão longe, atravessam as páginas do livro como se fossem transparentes e fixam-se na lembranças de outros tempos. O ambiente da corte, as festas, o luxo e a riqueza. Belas mulheres e belos sonhos. Conquistas e vitórias.

Feitos heróicos a serviço do rei, títulos de nobreza... 

Tais recordações enchiam o seu coração de entusiasmo. Mas logo uma fisgada na perna traz outra lembrança... a derrota, o fracasso. Aquela batalha perdida não havia destroçado apenas sua carne e seus ossos. Muitos sonhos foram também dilacerados... 

Inácio, então, vê-se tomado por uma grande melancolia. Seu coração se aperta e um nó na garganta anuncia mais uma madrugada de insônia. 

Se vivesse em nosso tempo, Inácio talvez se espantasse com a letra de uma canção de Guilherme Arantes que retrata bem o seu momento...

 

Quando eu fui ferido, vi tudo mudar, das verdades que eu sabia.

Só sobraram restos que eu não esqueci. Toda aquela paz que eu tinha.

Eu que tinha tudo hoje estou mudo, estou mudado à meia-noite, à meia luz
Pensando!
Daria tudo, por um modo de esquecer...
Eu queria tanto estar no escuro do meu quarto, à meia-noite, à meia luz
Sonhando!
Daria tudo, por meu mundo e nada mais...
Não estou bem certo se ainda vou sorrir sem um travo de amargura.
Como ser mais livre, como ser capaz, de enxergar um novo dia...
Eu queria tanto estar no escuro do meu quarto
À meia-noite, à meia luz
Sonhando!
Daria tudo, por meu mundo e nada mais...

Sem um rádio ou uma canção a que recorrer, os olhos de Inácio abrem-se para o livro em suas mãos. Lê, a princípio, para ocupar o tempo, mas, aos poucos, as histórias ali narradas fazem brotar em seu espírito outros sonhos, um entusiasmo novo, diferente...

Naquele leito, reduzido ao repouso absoluto, Inácio de Loyola, o guerreiro orgulhoso, não tinha outra coisa a fazer a não ser sonhar, pensar e repensar a vida.Contemplando seus sentimentos, a partir das lembranças que lhe vinham ao coração, iniciou um processo de redescoberta de si mesmo, do sentido da própria vida. Inácio sai daquela cama para começar de novo. Mais que isso; para começar DO novo. 

Uma novidade que vinha do gênesis dos milênios. 

Aos poucos ele irá descobrir que foi amado primeiro, e que a única forma de responder a este amor é com uma vida de amor. Uma vida em que, em tudo, ele se sentirá chamado a amar e servir... 

Retomando a caminhada do ano, após a pausa de Julho, rezemos como Inácio de Loyola rezou.

 
Senhor, nosso Deus, dá-nos a Tua força, para que cada um de nós,

assim como teu filho, Inácio de Loyola,

possa RECOMEÇAR a vida, a cada dia com o coração cheio de entusiasmo, alegria, disposição.
Que a tua graça esteja em nós,

recriando sempre o desejo de “em tudo, amar e servir” aos que estão ao nosso lado,

companheiros de caminhada pela vida.
Toma em tuas mãos os dons que Tu mesmo nos deste

e faz com que tudo em nós e à nossa volta possa acontecer para a maior glória do teu Reino.
Fica conosco, Senhor, agora e sempre,
Amém!


Eduardo Machado
Educador