Você já se sentiu infinitamente pequeno diante de algo imenso e infinito? Já percebeu o quão frágil é tudo à sua volta, inclusive, e principalmente, você? Já pensou que um dia o sol se apagará e tudo que você conhece deixará de existir?

 

Já pensou que em meio a tantas pessoas que transaram desde a mais distante ancestralidade humana, a “cadeia de orgasmos” entre elas é a causa eficiente da sua existência hoje? Já imaginou quanta coisa podia ter dado errado e você não existir? Aqui não estamos muito distantes do silêncio que muitas vezes se impõe quando testemunhamos uma criança vir ao mundo. Esse silêncio é nossa consciência ancestral de que devemos nossas vidas a todos os que viveram, lutaram e morreram antes de nós. A primeira palavra que devíamos aprender a falar é “obrigado”. Uma cultura que não cultiva o respeito pelos ancestrais é uma cultura de ingratos. Deveríamos assistir ao parto de joelhos.

 

Bastava uma dorzinha de cabeça numa das fêmeas ancestrais ou uma brochada num dos machos ancestrais ou um dos dois ser comido por algum predador, e você não estaria hoje aqui lendo a Folha.

 

Logo, é quase um milagre esse instante em que nos encontramos. Assim como toda a cadeia de eventos que envolve a sua vida e a de cada um de nós.

 

Diante de tantas variáveis infinitas, muita gente sente um certo agradecimento por ter nascido e pelas coisas que giram à nossa volta, tornando possíveis nossas vidas.

 

Nossa atitude deveria ser uma de completa reverência diante de tudo isso. Esse tipo de reverência desapareceu do nosso repertório porque somos uns mimados que acham que o universo é “um direito” cósmico. E que todos que transaram em nossa longa cadeia de ancestrais o fizeram “por nossa causa”.

 

Essa humildade diante da simples existência não é muito distante da ideia de graça no cristianismo (e também no judaísmo e islamismo). Dai que qualquer teólogo competente sabe que toda boa teologia começa agradecendo. Coisa pouco comum hoje em dia. Uma sociedade dominada pela ideia de “direitos” é necessariamente uma sociedade que cultiva a ingratidão. Nada mais distante da espiritualidade semita (das três religiões abraâmicas citadas acima) do que uma teologia que “pede”. A teologia começa agradecendo o fato de respirarmos. Ou, como diria Santo Agostinho (354-430), devemos agradecer pela língua que temos para falar.

 

Toda espiritualidade séria começa com a consciência do quão improvável é a nossa existência e a de todas as demais coisas à nossa volta. A fina relação entre essa enorme improbabilidade e nossa ínfima existência é que produz o sentimento de milagre, agradecimento e graça.

 

Que nenhum ateu inteligentinho queira me dar uma lição de estatística ou de acaso cego. Guarde-as para ateus inseguros e de alma tosca. A cegueira do acaso apenas torna a beleza do mundo ainda maior.

 

O que vem a ser a religião? Essa pergunta não é fácil de responder. Muitos tentam buscar uma resposta que sirva pra todas as religiões, mas isso não é evidente.

 

Entretanto, existem algumas ideias interessantes sobre essa busca de um “denominador comum” para as religiões que funcionam razoavelmente bem. E algumas delas passam justamente por esse sentimento de agradecimento pelo simples fato de sermos capazes de testemunhar toda essa beleza, ao mesmo tempo frágil e imensa. E de nos sentirmos de alguma forma dependentes dela.

 

O teólogo alemão Friedrich Schleiermacher (1768-1834), fundador da hermenêutica, disciplina que estuda os modos de interpretação de culturas e textos, é considerado o pai fundador dos estudos não religiosos das religiões. A história desses estudos é longa e não vou me ater a todas as controvérsias que a matéria exige.

 

O que me interessa aqui é o “denominador comum” que Schleiermacher pensava estar presente em todas as religiões. Para ele, as religiões são o fruto dessa percepção profunda de nossa dependência para com esse infinito que nos sustenta e, ao mesmo tempo, nos lembra o quão efêmero isso tudo é. Como o pó que se vai com o vento, mas que é capaz de ver o rosto de Deus.

 

Luiz Felipe Pondé

Folha de São Paulo – 29/2/2016