Olha aí a selva no meio do caminho, Mariana. Um pote com pinceis escalvados de uso, uma ampulheta com bolinhas de mercúrio, um pequeno condor boliviano. Todas essas coisas de memória toldando as lombadas dos livros. Um relógio de sol, um lobo-guará de pelúcia, um carrossel de brinquedo que algum dia foi enfeite no pinheiro de Natal de uma casa na Holanda, uma foto do avô de smoking. Tudo tão longe. Uma libélula de bambu, um retrato de Eva Heyman, um frasco de perfume com tampa de rolha. Daquela foto com as mulheres da família, duas morreram, uma sumiu, restam outras duas. Passaram três gerações de gatos, duas agonias caninas e ah se a menina do quadro na parede abrisse os olhos. Uma Nossa Senhora do Ó de Sabará encasula na sua forma primitiva o miniconto de um milagre real. Uma Nossa Senhora do Ó com uma imensa barriga baixa num vestido cor de carne viva que veio das mãos de um artesão de Sabará. Numa caixinha azul, dezoito anos em bilhetes de teatro, dramas, tragicomédias, outras vidas, quase. Um corpo de rocha e suas diferentes idades. E a minha Yolanda, que começa a dar os primeiros passos, às vezes aparece no quarto do meu sobrinho e lhe devolve em espelho uma imagem de ternura gêmea daquela que eu vi, de um anjo loiro na minha porta, há vinte anos. Tudo tão longe. Tão intergaláctico. A selva no meio do caminho, afinal, também é um sábado à tarde a olhar as árvores do parque e ver como vai alto e longe a vida para dar sombra. Olha só. Como vai alto e longe a vida para dar sombra.

 

Mariana Ianelli é escritora, mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autora dos livros de poesia Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005 – finalista dos prêmios Jabuti e Bravo! Prime de Cultura 2006), Almádena (2007 – finalista do prêmio Jabuti 2008), Treva alvorada(2010) e O amor e depois (2012 – finalista do prêmio Jabuti 2013), todos pela editora Iluminuras. Como ensaísta, é autora de Alberto Pucheu por Mariana Ianelli,  da coleção Ciranda da Poesia (ed. UERJ, 2013).