Pode ficar com tudo, eu não me queixo. A casa é sua. Tanta coisa que tem aqui para levar. Deixo os armários já meio abertos que é para facilitar o assalto, as gavetas também, com seus farelos de anos embolados. Tudo seu. Cem mil horas de desejos queimados, roteiros malucos de vida, mapas de ruas mal visitadas, botas para neve, janelas para o mar, velhos poemas. Fique com eles, noite minha, faça-os desaparecer como debaixo de uma enorme pálpebra sonolenta, eu não me queixo. Todos os diários de imagens, todas as palavras-chaves, todos os cadernos com notas de viagens subaquáticas são seus. Os livros, ai que pena, ai que grande pena que se percam, mas vá lá, se for o caso, leve-os também, como já o tem feito, página a página, que eu sei. E eu não a conheço, noite minha? Ao menos um bom tanto já, não a conheço? Por isso o meu respeito, o meu pacto de cordialidade. Venha, fique à vontade. Como diz quem é gentil feito o diabo: tenho-lhe estima, tenho-lhe apreço. Mas uma mãe também tem presas fortes. Uma mãe tem presas fortes e reluzentes, noite minha. Por isso nem pense em tocar nas mãos dessa criança que tem as palmas abertas para o dia, cintilando como dois girassóis. Nem ouse descer sobre esse pedaço dourado de bosque por onde ela corre à cata de gravetos e pedrinhas. Passe longe do balanço que embala o arrepio dessa menina, longe da nossa bicicleta, longe da nossa praça de fim de tarde com cata-vento e da praia onde ainda não empinamos nossa pipa, mas havemos de. Tudo antes dessa infância eu lhe entrego de bom grado, esquecimento. Porém, para cada dia depois dela, declaro entre nós, sem concessão e sem repouso, uma luta de garras e dentes.
Mariana Ianelli
In: RUBEM 30.12.2017