Meu primeiro Drummond foi o Drummond político, de flor e estrela rubras, fora do colégio. Agora lembrando disso, revejo os Drummonds que havia em casa e me dou conta de que eram os menos afamados, os mais íntimos: poeta que falava de orgasmos, poeta que se despedia.


Meu primeiro Baudelaire, também fora do colégio, foi o poema “A carniça”, bem naquela época da adolescência em que o repugnante e o terrível são coisas que fascinam. O primeiro Camões lírico, igual ao de muita gente, foi o do fogo que arde sem se ver.


Nos tempos de faculdade, quis uma professora que minha primeira Marguerite Duras fosse a Marguerite Duras da Resistência Francesa. Não foi. Minha primeira Marguerite Duras foi um livrinho enigmático, estranhamente precioso, chamado “É tudo”, cuja leitura, mais cheia de silêncios que de palavras, parecia não ter fim.


James Wood conta que quando tinha quinze anos descobriu num saldão na estação Waterloo em Londres uma edição horrivelmente encadernada de um guia de romances e romancistas que se tornou o livro de maior influência nas primeiras vezes de sua vida de leitor. Foi através desse guia que o jovem crítico começou a se entreter com listas de verbetes de escritores e daí para os livros como se recebesse mensagens do mundo da literatura especialmente destinadas a ele.


Na falta de um guia megalômano como o de James Wood, nossas primeiras vezes vão botando seus ovos ao léu, aqui e ali. As indicações existem, mas sutilíssimas, desgarradas da crítica especializada, quando por exemplo diz a dona do sebo, mal levantando os olhos atrás dos óculos: tem mais livros ali atrás, se quiser dar uma olhada… Esse ali atrás pode ser a maior das pistas para um espírito interessado.


Na realidade não é garantia de nada estar atento quando muitas vezes é distraidamente que alguém chega aonde parece ter sido sempre esperado. Nem é certo que um primeiro encontro com um escritor, seja ele qual for, torne-se memorável. A primeira vez pode também ser a última. Ou pode acontecer que num primeiro momento um livro passe em branco e só depois de muitos anos ele ressurja com toda força.


Meu primeiro García Márquez foi o dos “Doze contos peregrinos”, o García Márquez de uma luz líquida que fazia flutuar tudo o que havia numa casa, e que mais tarde estava lá, “A luz é como a água”, agora um conto-livro, numa edição ilustrada para crianças.


Minha primeira Hilda Hilst foi a da negra cavalinha, a da morte amantíssima, Hilda numa edição bilíngue, português-francês, que fazia confundir sua poesia com poesia estrangeira, joia rara numa livraria de bairro que já há vinte anos não existe mais.


Há autores de quem já lemos tantas coisas que não sabemos mais quando e qual foi a primeira vez. Meu primeiro Pessoa talvez tenha sido Bernardo Soares, ou Álvaro de Campos, o certo é que não foi Pessoa ele mesmo.


Meu primeiro Augusto dos Anjos foi o filho do carbono e do amoníaco, mas poderia ter sido qualquer outro poema dele, pode ser ainda agora qualquer poema dele o meu primeiro, porque ler Augusto dos Anjos é magnificamente estranho, sempre.


Um antigo namorado de colégio, desses garotos que fazem o tipo menino velho, barba, camisa, cinto e sapato, olhando um dia a biblioteca de minha mãe, quis saber se ela já havia lido todos aqueles livros. Minha mãe assente, ele emenda: Mas a senhora fez um fichamento de cada livro? Minha mãe incrédula. E ele: Se não fez, não leu os livros.

O episódio virou uma anedota na família. A mãe era de ler, não de fichar o que lia. A mãe era de entrar nos livros como uma amante, não como uma visita. Tinha seu caderno de poemas compilados, uma antologia pessoal em letra manuscrita, e isso era tudo. Foi nesse caderno que li pela primeira vez um poema de Cecília Meireles. Chamava-se “Retrato” e era mesmo um retrato da mãe, uma verdade da mãe, uma intimidade sua, mais do que um poema de Cecília.

Mariana Ianelli

Escritora, poeta

Blog da editora Olho de Vidro - 26.04.2018

In: http://edicoesolhodevidro.com.br/primeiras-vezes/