A trilogia Cinquenta tons de cinza, de E. L. James, nem chegou por aqui e já está gerando discussões. O romance, que vem representando 25% do mercado americano de ficção adulta (segundo dados da editora), conta a história de uma mulher adulta e seus relacionamentos sexuais. Anastasia Steele é uma jovem que é desafiada a ir até seus limites. O que se segue é a receita do sadomasoquismo clássico (contratos, algemas, humilhações), adaptado aos nossos dias. Os livros vão chegar ao cinema e vêm frequentando os programas de TV e revistas semanais dos EUA e do Brasil. O romance está em pré-venda no país e ganha as livrariasna semana que vem. O que chama atenção não é o sucesso de um livro sobre sexo, afinal sexo sempre vai ocupar lugar de destaque na nossa vida. O que espanta é que um olhar que carrega todos os elementos mais banais da sexualidade e de sua transgressão tenha o poder de criar tanto interesse. Não se trata de um fenômeno literário nem erótico. Os livros não são obras-primas (e obras-primas não costumam parar o trânsito) nem revelam segredos eróticos capazes de mudar a vida de ninguém. O fato de se inscreverem no circuito “sensualidade chique” e se destinar especialmente às mulheres descoladas mostra como a repressão está mais viva do que se imaginava. Num mundo em que a pornografia corre solta, em que a internet liberou todas as fantasias possíveis, fica difícil compreender por que um livro, ainda mais um romance convencional, ganha atributos de revolução comportamental, como vem sendo dito. Em outra escala, o caso lembra as liberalidades de Madonna, que ao mostrar o seio ou simular um coito parecia transgredir limites estritos da moralidade oficial, quando na verdade apenas transportava comportamentos de um lugar social para outro. Da sarjeta para o palco. A pornografia soft de Madonna e sua teorização por Camile Paglia são o arremedo de liberdade possível num cenário de proibições e fetichismo. Não vende porque funciona, funciona porque é vendável. Os últimos séculos tentaram – e quase conseguiram –transformar o sexo em atributo da biologia. No campo da ciência natural, tudo é explicável, normatizável, passível de um discurso da verdade. O sexo, assim, foi sendo engolido pelo conhecimento do corpo. Os comportamentos ganharam classificação, diagnóstico e terapias. Há o sexo certo e o sexo errado. Há uma terapêutica do sexo,uma normatização do gozo, uma higienização dos afetos.Tudo serve a um programa biológico que enquadra do prazer à proibição.

 

Michel Foucault foi quem melhor explicou esse engano, jogando por terra a ideiade que o problema era a repressão. O filósofo mostrou que o sexo, no mundo moderno, não emerge “contra” as proibições. Ele se relaciona não como uma transgressão ao poder, mas como um jeito de reafirmá-lo. A sociedade contemporânea não é mais a que proíbe, reprime e massacra a individualidade, mas a que obriga a fazer tudo de uma determinada forma, que confirma seus próprios valores. O que Foucault desvelou aos olhos assustados de pessoas que se julgam livres, é que o sexo na era moderna não é mais domado pela repressão, mas pelo discurso da ciência. Sexo é assunto do direito, da psicologia, da medicina. Existe o jeito certo e errado. A sexualidade passa a ser dominada pela pretensão à verdade. Frente a uma situação como essa, toda forma de transgressão soa como crime, doença ou desvio. E é por causa dessa normatização absurda que a indústria cultural passa a oferecer pequenos escapes autorizados, que dão uma aliviada na barra, mas não se contrapõem à norma. O erotismo e a pornografia light estão previstos nas regras dos comportamentos classificados como normais. Por isso os livros vendem muito, as revistas de mulher pelada são comentadas abertamente, Michael Jackson alisava a genitália e as coreografias de Madonna permitem mostrar o peitinho de vez em quando. Em caso de descaminho, é só chamar o terapeuta.

LOUCO AMOR

O que o autor de História de sexualidade mostrou de forma arguta foi que nossas experiências com o sexo são sempre resultado de convenções sociais. Sexo não é biologia, é política. Considerar que a sexualidade, por exemplo, está relacionada como saúde mental é algo só concebível em nosso tempo. Do mesmo modo que a ligação com a noção de pecado só é pensável num contexto marcado pela interpretação teológica do mundo. A cada época, um conjunto de normas conforma nossa experiência. Nosso tempo deu a essas normas o nome de ciência e à sua transgressão o apodo de crime ou doença. Foucault vai adiante, cria o conceito de biopoder. A ideia é fina. Para o pensador, num contexto em que o poder deixa de ser a capacidade de reprimir para se tornar uma forma de obrigar a determinados repertórios de atuação, tudo está focado na saúde, nos corpos individuais. O biopoder é o grande instrumento de controle social, a mais eficaz ferramenta para conseguir obediência a valores sociais conservadores, no sentido estrito da palavra. O ideal é que a vida continue, que o corpo não adoeça, que a sociedade não seja transformada. Tudo parado. Morte é vida. Por meio do biopoder, a sociedade se reproduz e as pessoas se mantêm produtivas. Na estratégia do biopoder, o sexo ganha funcionalidade como elemento físico de acomodação e instrumento moral de contenção. Sem se queimar com repressão e proibições, todos se sentem saudáveis e livres. No entanto, a capacidade de tomar decisões sobre a vida e o corpo (e, claro, o sexo) já foi transferida para os valores socialmente validados como operativos, normais e higiênicos. O biopoder medicaliza a sociedade e a política. A única tarefa passa a ser a sobrevivência. Quando o jogador Sócrates morreu, ainda jovem, em razão de suas escolhas de vida, muitos o condenaram como se houvesse praticado um crime contra si mesmo, e não exercido conscientemente sua liberdade. Na via contrária, a cada dia encontramos com pessoas que fazem de sua existência um exercício devotado para manter a vida. São pessoas que guardam exames como tesouros, vão ao médico o tempo todo, atrapalham a vida de parentes e falam de seus achaques como se interessassem a todos. Para viver mais, deixam de viver de verdade. Sua obra parece ser o obituário: “Depois de um calvário…”.

 

ARTE DE VIVER

Foucault era homossexual e morreu em decorrência da Aids. Mesmo sem ser um militante da causa gay – para um intelectual tão ousado foi relativamente discreto sobre suas intimidades – deixou algumas reflexões que estão na base do melhor ativismo político sobre questões referentes à sexualidade. O principal, para ele, é que tanto a identidade homossexual como heterossexual não são naturais, mas criadas culturalmente. As chamadas opções não existem como um fato “real”, mas como um processo constituído socialmente. Por isso, a ideia de que a libertação se dá quando uma pessoa se “assume” é uma bobagem, já que não há identidade a ser alcançada, mas a expressão simbólica e variável de vontade de viver melhor. O filósofo defende que a política nessa questão não se dá como uma forma de afirmação ou tomada de poder. Na realidade, a estratégia política verdadeiramente libertária não é a que defende um poder, mas a que questiona todos eles. O desafio é compreender como a sexualidade se constitui e como as relações de poder se organizam em torno dela. A homofobia é filha do biopoder de uma sociedade sexista e binária. O que os homossexuais mostraram foi a importância da invenção de novos modos e estratégias de resistência. O movimento gay deixou de lado a ciência pela afirmação da arte de viver. Inventar a própria vida é a maior realização. Ética e estética se encontram no projeto de suplantar o biopoder, o sexismo, a homofobia e o erotismo de butique. Como escreveu Foucault: “O sexo não é uma fatalidade: é uma possibilidade para uma vida criativa”.

 

 

 

João Paulo Cunha

Diretor do Caderno Pensar / Jornal Estado de Minas

Publicado em 28 de julho de 2012.

 

 

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15.09.2012