O conceito de espiritualidade dentro da Igreja teve quase sempre contornos monacais. O monge – como aquele que se retirava do «golfo do século», «especialista do espírito», – detinha-lhe o monopólio. A modernidade e as reforma das ordens religiosas introduziram algumas modificações neste conceito, sobretudo no que diz respeito à proposta espiritual da Companhia de Jesus, no século XVI, feita de uma síntese entre contemplação e ação, unindo a comunhão mais profunda com o mistério às atividades realizadas no meio da vida corrente.
No entanto, em relação aos assim chamados leigos, a questão permanece: pode-se legitimamente falar de uma espiritualidade leiga ou laical? Seria essa uma espiritualidade vivida por leigos ou uma maneira leiga de viver a espiritualidade? Ou, pelo contrário, deve-se simplesmente falar de uma espiritualidade cristã, sem mais distinções, deixando à liberdade do Espírito Santo, que sopra onde quer, o cuidado e a criatividade de ir colocando suas inscrições como melhor lhe pareça nas tábuas de carne que são os corações humanos?
Por outro lado, onde a luta pela justiça e o compromisso sociopolítico ocupam lugar de central importância na vida cristã e nas preocupações eclesiais, essa questão cresce e se complexifica ainda mais. A Igreja vê com doloroso pesar muitos de seus mais dedicados militantes afastarem-se das suas comunidades e abandonarem a caminhada eclesial, a partir do momento em que ingressam de corpo e alma na militância sindical ou na luta partidária. Muitos desses cristãos, sempre mais reclamados pela atividade política, deixam de ter tempo ou de ver como prioridade a reflexão em torno da Palavra de Deus, a celebração litúrgica, a oração. Carregando sobre os ombros o peso do compromisso e o desafio da eficácia, esses leigos militantes parecem ter desaprendido a gratuidade da relação pessoal e amorosa com Deus, e por isso se angustiam, sentindo-se ameaçados e mesmo devorados por uma práxis que vê aos poucos esvair-se a sua motivação mais transcendente.
Evidentemente, não temos nem pretendemos ter a resposta e a solução para um problema tão complexo e delicado como este. Não impede, porém, que a questão se coloque e seja mordaz. Porque, se bem que de um lado seja verdade que, sem a experiência do transcendente e da relação imediata com Deus em Jesus Cristo, o facto cristão se reduz a mais uma curta e empobrecedora ideologia, por outra parte, sem compromisso social e político a todos os níveis, a espiritualidade corre o risco de transformar-se na anestesia que os críticos da religião denunciaram como o «ópio do povo».
A espiritualidade de qualquer cristão – leigo ou não – deve ser algo profundamente integrador. Algo que não o aliene de nenhuma dimensão de seu ser humano, mas ao mesmo tempo não o manipule na direção de nenhuma determinada ideologia. Deve ser algo que – na aceção mais profunda da palavra – liberta para servir melhor e mais concretamente aos outros, para assumir mais plenamente a sua realidade quotidiana e ali encontrar e viver o desafio da santidade.
No que toca aos leigos, porém, existe um problema a mais: o fato de o cristão leigo ter desaprendido a acreditar na sua vocação à santidade. Não obstante todas as reiteradas afirmações da "Lumen gentium" [Concílio Vaticano II] de que a vocação à santidade é universal e comum a todo Povo de Deus; de que o chamamento à perfeição – e, portanto, a exigência de vivência profunda do Espírito – não se restringe às pessoas que optaram pelo estado de vida sacerdotal e religioso, o leigo em geral – com algumas e honrosas exceções – habituou-se a pensar e crer que isto não era para ele. Por muito comprometido que fosse, não se atrevia a crer na possibilidade de «ser santo como Deus é Santo» (cf. Levítico 11,44; 1 Pedro 1,16). Isto estava reservado àqueles e àquelas chamados à especial vocação que os retirava das preocupações do comum dos mortais e podiam dedicar-se em tempo integral às coisas do Espírito.
Sem querer ignorar o fato de que há diferentes carismas na Igreja, de que as vocações diferem entre si e que isto constitui a riqueza do Povo de Deus, parece-nos que mais uma vez, aí, a dicotomia "sagrado x profano"desempenhou um importante e nefasto papel. E para que o leigo reencontre o caminho da vida no Espírito será preciso – urgentemente – superá-la. Pretender confinar a plenitude de vida no Espírito, o gozo inefável da experiência imediata, direta, inebriante de Deus a um só grupo dentro da Igreja equivale – a nosso ver – a aprisionar e manipular esse mesmo Espírito Santo, que sopra onde e como quer. Todo o cristão que – incorporado pelo seu Batismo ao mistério da morte e ressurreição de Jesus – é chamado a seguir de perto esse mesmo Jesus, é um santo em potência, uma pessoa «espiritual» porque penetrada do Espírito em todas as dimensões da sua corporeidade, da sua mente, da sua vida enfim, como Jesus o foi.
E o campo onde essa vida no Espírito pode dar-se não é outro senão o mundo, a história, com os seus conflitos e contradições, com os seus apelos e exigências, com as suas maravilhas e injustiças, com as suas promessas e frustrações. A opacidade e o jogo de luz e sombras de que é feita a história humana passa a ser para todo aquele ou aquela que caminha segundo o Espírito no seguimento de Jesus, buscando fazer a vontade do Pai, uma permanente epifania, uma constante redescoberta de que tudo – a dor e a alegria, a angústia e a esperança –, tudo é de graça. E que, portanto, tudo também só pode ser ação de graças, Eucaristia.
Assim, a espiritualidade cristã já não estaria reduzida a ser o privilégio de uns poucos eleitos, mas uma exigência de vida de todo batizado, de todo o Povo de Deus, que ao mesmo tempo que cresce na comunhão íntima com o Senhor, avança também na luta por uma sociedade e um mundo mais justos e mais fraternos. Uma espiritualidade assim deveria redescobrir constantemente as suas fontes bíblicas, eclesiais e sacramentais. E também – porque não? – as suas fontes «leigas»: aquilo que o Espírito sopra no deslumbramento apaixonado dos namorados, nas brincadeiras das crianças, na vida dura da fábrica, no idealismo e nas nuvens de giz das salas de aula, no sonho dos artistas e na boca dos poetas, no canto dos cantores que cantam a vida, a morte e o amor. Redescobrir – também e sobretudo – as maravilhas que o Espírito faz no meio dos pobres, na sua sede inesgotável de oração e na criativa espontaneidade com que vivem os seus momentos litúrgicos mais fortes, nas suas festas e romarias, nos seus santuários e procissões, na sua imensa devoção aos mistérios da vida, paixão e morte do Senhor, ao Santíssimo Sacramento e tantos outros. Na pista aberta em busca da espiritualidade «perdida», todo o Povo de Deus é chamado a ter mais uma vez, «nos pobres seus mestres, nos humildes seus doutores».
Maria Clara Bingemer