“Eu sou a videira e vós os ramos” (Jo 15,5)

O Evangelho deste domingo é o começo do cap. 15 de S. João e que faz parte do longo discurso de despedida, depois da última ceia. Nesta parte do discurso fala-se da comunidade cristã e sua missão no mundo. Insiste que a Vida de Deus, como a seiva, deve atravessar cada membro da comunidade para que seja possível o amor que se deve manifestar em obras.

Como é habitual, o Jesus dos evangelhos não expõe esta realidade com longas explicações ou filosofias, mas utiliza imagens, parábolas ou símbolos certamente conhecidos por todos. Neste texto, nos fala a partir da videira, uma planta rica em significados na tradição judaica. A vinha, nos textos do AT, representava o povo de Israel, que Deus plantou, podou e cuidou de todas as maneiras possíveis. O Deus Pai foi representado, em muitas ocasiões, como um lavrador que cuida de sua vinha Israel. 

Na Última Ceia, Jesus convocou todos os seus(suas) seguidores(as) a formar com Ele um organismo vivo. E fez isso através da imagem da vinha: a cepa, os ramos e os cachos de uvas. As uvas não brotam diretamente da cepa, mas dos ramos. Porém, os ramos não dão uvas se não estão ligados à cepa.

Jesus nos fala do bio-sistema da videira: a relação misteriosa da cepa com os ramos e dos ramos com os cachos de uvas, e um misterioso Lavrador que a cuida para que ela dê muito fruto.

Na vivência do seguimento de Jesus, o importante é sentir-nos dentro de uma grande e misteriosa “bio-cenosis”, comunidade de vida. Espaço onde cada um se insere na Videira, onde cada membro se harmoniza e se dinamiza no corpo. O Abbá e a Santa Ruah cuidam deste organismo vivo, conectado em Jesus, como um corpo de dimensões cósmicas.

A “bio-cenosis” é o espaço onde respiramos ar purificado, vivemos da seiva que circula, experimentamos a liberdade do Espírito, produzimos frutos. Sim, trata-se de nos deixar levar pela misteriosa lógica da Vida.

A Vida continua sendo o centro do discurso de Jesus, neste domingo; afinal, estamos no tempo Pascal. Só assim o seguimento de Jesus torna-se fonte de vida e vida em crescente amplitude. Quando nos dispomos a caminhar com Ele, sob a ação do seu Espírito, realiza-se em nós um processo de abertura e de superação, de crescimento e de reconstrução de nós mesmos...; tomamos consciência de uma dimensão profunda de nosso interior, que nos permite experimentar uma outra vida, que supera tudo o que vivíamos até então.

Para isso, é preciso passar por contínuas “podas” de tudo aquilo que está sobrando ou que se tornou “peso morto”. O Abbá de Jesus cuida e poda os ramos para que deem mais frutos.

Conhecemos bem a poda necessária para que a videira não disperse a seiva, produzindo vistosa folhagem e ramos frondosos, mas sem frutos; uma videira deve dar cachos formados e grandes, nutridos até a maturação. Quando o agricultor poda, a videira “chora” onde é cortada, até que a ferida fique curada e cicatrizada. A poda tão necessária é sempre uma operação dolorosa para a videira: muitos ramos são cortados, jogados fora, secam e são destinados ao fogo...

Muitas vezes as podas são vistas como perdas, mas são perdas que abrem espaço à vida nova, ampla...

Nosso processo de crescimento pessoal revela uma constante necessidade de despojar-nos de costumes, lugares familiares, modos de nos relacionar com as pessoas queridas..., que nos acompanharam durante uma etapa, mas que agora se tornaram estreitos e nos impedem expandir a vida.

Quão difícil é deixar-nos podar sobretudo os ramos secos que se agarram a nós: atitudes fechadas, busca de prestígio, ego inflado, instintos de posse, falsas seguranças, visões atrofiadas... Esses ramos que nos sobre-carregam são “pesos mortos” que exigem uma demanda de energia que deixa de ser investida em outras frentes de vida. São ramos que não conduzem mais seiva, mas temos resistências em deixá-los podar. Vemos esses ramos em nós, os identificamos, os localizamos... mas custa cortar. Vemos e sentimos a necessidade de cortar, de separá-los de nós, de podar... mas custa eliminá-los.

O processo da “poda” da vida implica “perdas e ganhos”; as podas implicam uma travessia da “vida menor” à “Vida maior”. Se investimos todas as nossas energias na vida minúscula (apegos, medos, resistências...) nunca descobriremos a Vida maior. Aquele que se empenha a todo custo em salvar sua vida menor, vai acabar perdendo-a. Mas dará pleno sentido a esta vida se descobre e ativa outro nível mais profundo e encontrar a verdadeira Vida. Estamos aqui para pôr Vida onde só há “vida”.

Em tempos de busca de sentido ou de desorientação, reencontrar a vinculação existencial com “todas as coisas” e encontrar a “consistência” em Cristo se torna fundamental. Quando as experiências de isolamento,

abandono ou de individualismo tornam-se generalizadas, a leitura deste texto nos anima a potenciar as relações profundas e a reforçar a corrente de vida que vem desde Jesus e que nos comunica entre nós de maneira criativa.

Como seres humanos vivemos profundamente relacionados. O vínculo é algo que nos caracteriza essenci-almente. Em nosso mundo estamos “muito conectados, mas pouco vinculados”. Vivemos numa sociedade “des-vinculada”, que precisa re-vincular-se, constituindo a verdadeira comunidade humana: vínculos com a Videira vivente e vínculos fraternos.

O evangelho deste domingo nos convida a passar da mera conexão à verdadeira vinculação, aquela que nasce da fraternidade, da mesma seiva de Cristo, aquela que gera a caridade verdadeira, no compromisso pela justiça e pela dignidade de todos os seres humanos. Onde só há “conexão”, ali há atrofia e rigidez nas relações interpessoais, alimentando atitudes preconceituosas, intolerantes e indiferentes.

Só a vinculação quebra distâncias, dá calor aos encontros, abre corações e mentes para acolher o diferente.

A vinculação integra as diferenças; a conexão alimenta suspeita e julgamento diante de quem pensa, sente e ama de maneira diferente. A riqueza das diferenças alimenta e dá novo vigor aos vínculos.

Jesus, como Videira, estabelece um vínculo eterno com a humanidade, alimentando-nos com sua seiva e reforçando os vínculos humanos para além de toda expressão religiosa, social, cultural, política... 

É nesse conjunto de recursos e dinamismos vitais que a Graça (seiva) de Deus trabalha; Ela pode ser considerada como uma presença dinâmica, um estimulante das energias latentes do nosso “eu”.

A presença da seiva é um reforço, um suporte, uma ativadora das capacidades do eu; ela não constrange, não violenta, mas ajuda, esclarece, mobiliza as energias presentes, facilita largamente a missão de cada um.

Mais ainda, o Espírito habita nosso ser profundo, sustenta nossas energias sadias, aumenta nossas forças, compromete-nos a crescer de forma autônoma. Ele age como um “princípio dinâmico” e como um “energético ativo”, que reforça as atividades criativas do eu. Temos de viver a partir do Espírito, transformando e vitalizando nossos gestos, pensamentos, compromissos, encontros.

Intuímos uma conexão tão preciosa dentro de nós, uma seiva tão profunda... Muitas vezes, passamos a vida buscando seiva em outros lugares que nos tornam estéreis e vazios, e não descobrimos nosso ser essencial.

Texto bíblicoJo 15,1-8 

Na oração: Carregamos a Videira em nossas entranhas como um canto de libertação. Nosso interior conhece a Videira; conhece a Vida; nosso interior conhece a seiva da Videira. É algo como o espírito que nos anima.

Somos ramos e deixamos a seiva transbordar em nós; ramos sem fronteiras; ramos sem cálculos; ramos transbordantes.

- Onde sua vida está conectada? A seiva que você recebe alimenta sua vida ou a envenena, expande suas potencialidades criativas ou atrofia seus desejos e sonhos?

Pe. Adroaldo Palaoro sj

29.04.2021

Imagem: pexels.com