TODAS AS CONTAS CONTAM

                                                                                                                                                                                                      Para o Padre Adroaldo

 

Um precioso feriado junto ao fim de semana possibilita uma viagem com minha família a Poços de Caldas. Tempo de lazer, descanso e proximidade com os meus. Tempo de ser marido, pai, companheiro e amigo, sem pressas...

Na praça em frente ao hotel, instala-se uma feira de artesanato. Distração garantida e, talvez, uns reais a menos na carteira e uns quilos a mais na bagagem de volta. Passeio entre as barracas, observando e sendo observado. Quadros previsíveis, peças de roupas, objetos em madeira, vidro, cristal. Coisas bonitas, originais, e outras nem tanto. Uma feira como tantas outras. 

Depois de olhar tudo e perguntar alguns preços, sentei-me num banco da praça para respirar aquele momento de tranquilidade e prazer. Diante de mim, um rapaz abre no chão um pedaço de feltro e monta ali a sua 'banca'. Anéis, colares, pulseiras vão sendo expostos. Minha curiosidade se aguça quando o 'hippie' começa a fazer o que se parece com um colar de miçangas. 

Ele pega um fio de nylon, desses de pesca, bem grosso, e um saquinho de contas coloridas. Apanha a primeira conta, amarela. Não sei por quê, mas sinto uma certa contrariedade. Achei que deveria começar pela azul. Mas ele, alheio a tudo, passa o fio pela conta e, num gesto rápido e automático, pega outra, verde. Há uma lógica, penso, o hippie é patriota! A continha verde escorrega pelo fio e vai se juntar à amarela. O artista estende a mão e pega outras contas no saquinho, sem sequer olhar. Vem uma preta, uma vermelha e outra amarela. Enfia as três que correm ligeiras pelo fio até se encontrarem com as outras. Na sequência, contas azuis, verdes, pretas e amarelas entram pelo fio, ou o fio entra por elas, e vão formando o que me parece ser agora um caos policromático sem nenhuma ordem ou critério. 

Quase me levanto do banco e interfiro quando o rapaz pega uma conta roxa. Mas, para meu alívio, o fio não entra. É grosso demais. É grosso e o buraco da conta é muito estreito. Pacientemente, o hippie apanha um minúsculo prego e cuidadosamente alarga o orifício da pequena conta roxa. E logo ela corre alegremente e repousa ao lado das outras.

O rapaz continua, calmo e distraído, a enfiar conta por conta, repetindo e alterando cores, colocando a mais brilhante ao lado de uma esmaecida e sem graça, numa sequência que parece seguir a absurda lógica do 'por acaso'. 

Enfim, ele termina o colar. Junta as extremidades do fio, dá um nó e corta as pontas que sobravam, de tal modo que não se sabe agora onde começa ou termina. Tudo é colar! Ele coloca sua obra sobre o feltro e observa. Sorri satisfeito. Eu reconheço que ficou bonito, mas não dou o braço a torcer: teria feito diferente. Provavelmente, escolheria cuidadosamente uma sequência de cores e a repetiria harmoniosamente até o fim do colar. Ou, quem sabe, faria um colar só de contas azuis, minha cor preferida. Preto e roxo jamais! Nem amarelo, que na época achava sem graça e sem vida. 

Levanto-me e vou embora, combinando cores e contas em minha imaginação. 

Meses depois, participo de um retiro espiritual em Itaici, São Paulo, orientado pelo padre jesuíta Adroaldo Palaoro. Ele começa fazendo no quadro um desenho e escrevendo nele:

"Tudo começa e termina em Deus. Ele dá sentido a todas as coisas".

 

Na curva do desenho, mergulho numa viagem mágica... A cena da praça atravessa a minha memória como as contas de um colar. Nesse colar colorido, vejo a minha vida sendo desfiada conta a conta, dia a dia. Cada dia, uma conta. Sem nenhuma lógica aparente. Um pequeno caos cotidiano, que frequentemente foge ao meu controle, escapa aos meus planos. 

Há trechos do colar que são uma sucessão de cores que se repetem. Dias de um azul clarinho, um verde brilhante, um vermelho escandaloso, um azul forte e vigoroso iluminando todo o colar. E logo a seguir, volta a rotina das cores que se repetem. Olhando o colar da minha vida, compreendo que a rotina é uma ilha cercada pelo imprevisível por todos os lados.

Mas em tudo há uma certeza: o fio. O fio atravessa e sustenta, indiscriminadamente, todas as contas do colar. Para o fio, todas as contas contam... A mais bela e brilhante e também a mais sem graça, aquela que eu rejeitaria e jogaria no lixo.

O Amor de Deus é o fio que sustenta as contas da minha vida. O vazio de cada conta é preenchido pelo fio. Quanto mais grosso o fio, mais forte o colar. O curioso é que o fio mais fino é mais prático de usar, passa mais fácil pelas contas. O fio grosso às vezes emperra, esbarra nos obstáculos que a conta tem. Às vezes, é preciso alargar os espaços da vida para caber o Amor de Deus. Amor... 

Percebo também que as contas ocultam o fio. Ele as sustenta, mas quase não aparece. Mas alguma coisa me diz que ele está lá. Essa coisa de não ver e, ainda assim, crer, tem um nome: Fé. Amor e Fé...

O resultado final é um colar colorido que, tenho certeza, vou oferecer ao Pai, de repente, quando, enfim, encontrá-Lo face a face. Quando, ao unir as pontas, não haja mais começo nem fim, apenas colar, apenas vida e vida em plenitude. Esse sentimento chama-se Esperança. 

Amor, Fé e Esperança, nos dramas e nas tramas do cotidiano. O desafio é tomar, todos os dias, o fio do Amor de Deus e deixar que ele atravesse as contas da minha vida, todas elas, sem escolher cores e formas, nem tamanho, nem comprimento. Na liberdade da Fé, na serenidade da Esperança. 

Vi naquela praça, e compreendi depois na oração, que, no Amor de Deus, até o 'por acaso' vira 'por querer'...

Eduardo Machado

Educador e escritor