“Então Jesus levou-os para fora, até perto de Betânia. Ali ergueu as mãos e abençoou-os.
Enquanto os abençoava, afastou-se deles e foi levado para o céu” (Lc 24,50-51)
Agora que estamos chegando ao final do tempo pascal, vale a pena notar que a Páscoa, chave, centro e ponto de partida da fé cristã, é um acontecimento de uma riqueza tal que é impossível descrevê-lo com uma só imagem. Por isso, celebramos o mistério pascal durante cinquenta dias, e logo prolongamos esta celebração cada domingo. Trata-se de um acontecimento único, embora nós, para entendê-lo melhor, o celebremos por etapas. Dito de outra maneira: Paixão, Páscoa, Ascensão e Pentecostes são a mesma realidade. Pode-se falar de quatro momentos, mas, na realidade são distintas perspectivas do mesmo Mistério.
Quê estamos celebrando com a Ascensão? A Ascensão é mais um aspecto da cristologia pascal.
Cristo alcançou, na Ascensão, uma situação e um estado de infinitude que lhe permite preencher tudo com sua presença definitiva, e para comunicar-nos sua presença divina. Portanto, não se trata de uma Ascensão para um lugar físico que o afastaria para longe da humanidade.
A nuvem que o “oculta”, enquanto subia ao céu, não está nos indicando sua “ausência”, mas uma forma distinta de sua presença. Daqui em diante, Jesus estará presente entre nós através de seu Espírito, cuja missão é ser memória permanente e dinâmica para que não nos esqueçamos do que Ele disse e fez.
Precisamos recordar que, terminada a presença histórica de Jesus, vivemos o “tempo do Espírito”, tempo de criatividade e de crescimento responsável. O Espírito não nos proporciona a nós, seguidores(as) de Jesus, “receitas eternas”. Mas nos dá luz e ânimo para buscar caminhos sempre novos a fim de prolongar hoje o modo original de ser e de atuar de Jesus. Assim Ele nos conduz para a verdade completa de Jesus.
Lucas, o único evangelista que fala de ascensão, termina seu relato apresentando-nos os discípulos como que pasmados, olhando para o alto e a alguns personagens vestidos de branco que lhes repreendem: “Homens da Galileia, porque estás aí olhando ao céu?”
Como Jesus, a única maneira de alcançar a plenitude da vida não é “subir”, mas é “descer” até o mais profundo de nosso ser. Aquele que mais desceu é o que subiu mais alto.
Jesus deixou suas pegadas cravadas na terra, mas os discípulos ficaram assombrados com o olhar fixo nas alturas. Ao céu só se chega caminhando para as profundezas de nosso ser, pois só no mais profundo de cada um (céu interior), podemos encontrar o divino.
Não causa estranheza que, ao narrar a despedida de Jesus deste mundo, Lucas descreva de forma surpreendente: Jesus ergue as mãos e “abençoa” seus discípulos. É seu último gesto. Jesus volta ao Pai levantando as suas mãos e abençoando os seus seguidores. Ele entra no mistério insondável de Deus e sobre o mundo faz descer sua benção. Jesus deixa atrás de si sua benção. Os discípulos, envolvidos por sua benção, respondem ao gesto de Jesus indo ao templo cheios de alegria. E estavam ali “bendizendo” a Deus.
Saboreando com mais profundidade a narrativa da Ascensão, caímos na conta da insistência de Lucas no tema do bendizer de Jesus: “levantando as mãos os abençoou e enquanto os abençoava, se afastou deles...”.
Ao fixar a atenção no seu “bendizer” e fazendo uma tradução ao pé da letra do verbo grego “eu-logeo” (“eu”= bem; “logeo”= dizer), ficamos surpresos de que Jesus sobe aos céus dizendo coisas boas de seus discípulos e deixando um “informe final” sobre eles, claramente positivo.
É como se, antes de partir, Jesus tivesse redigido sua avaliação para prestar contas ao Pai e, para alívio nosso, revela-se satisfatória e elogiosa: somos boa gente, com pontos da vida a serem melhorados com certeza, mas, no conjunto, estamos bem. Ele leva anotadas muitas coisas boas de nossas vidas para contá-las ao Pai.
Vamos agora contemplar o gesto das mãos de Jesus que abençoam.
Jesus sempre gostou de “abençoar”. Abençoou as crianças, os pobres, os doentes e desventurados. Seu gesto era carregado de fé e de amor. Ele desejava envolver aqueles que mais sofriam, com a compaixão, a proteção e a benção de Deus.
A partir de então, seus(suas) seguidores(as) começam sua caminhada, animados por aquela benção com a qual Jesus curava os doentes, perdoava os pecadores e acariciava os pequenos.
Nós, seguidores(as) de Jesus, somos portadores(as) e testemunhas de sua benção no mundo.
Como cristãos, esquecemo-nos que somos canais da bênção de Jesus. A nossa primeira tarefa é ser testemunha da Bondade de Deus. Manter viva a esperança, não nos rendermos diante de tanto “maldizer”.
Deus olha a humanidade com ternura e compaixão.
Já faz muito tempo que esquecemos isso, mas a Igreja deve ser, no meio do mundo, uma fonte de benção. Num mundo onde é tão frequente “maldizer”, condenar, prejudicar e difamar, é mais necessária do que nunca a presença de seguidores(as) de Jesus que saibam “abençoar”, buscar o bem, dizer bem, fazer o bem, atrair para o bem.
A benção é uma prática enraizada em quase todas as culturas como o melhor desejo que podemos despertar para com os outros. O judaísmo, o islamismo e o cristianismo lhe deram sempre grande importância. E, embora em nossos dias tenha sido reduzida a um ritual quase em desuso, não são poucos os que ainda destacam seu conteúdo profundo e a necessidade de recuperá-la.
Abençoar é, antes de mais nada, desejar o bem às pessoas que encontramos em nosso caminho. Querer o bem de maneira incondicional e sem reservas. Querer a saúde, o bem-estar, a alegria..., tudo o que pode ajudá-las a viver com dignidade. Quanto mais desejamos o bem para todos, mais possível é sua manifestação.
Abençoar é aprender a viver a partir de uma atitude básica de amor à vida e às pessoas. Aquele que abençoa esvazia seu coração de outras atitudes pouco sadias, como a agressividade, o medo, a hostilidade ou a indiferença. Não é possível abençoar e ao mesmo tempo viver condenando, rejeitando, odiando.
Abençoar é desejar a alguém o bem do mais profundo de nosso ser, mesmo que nós não sejamos a fonte da benção, mas apenas suas testemunhas e portadores. Aquele que abençoa não faz senão evocar, desejar e pedir a presença bondosa do Criador, fonte de todo bem. Por isso, só se pode abençoar numa atitude de agradecimento a Deus.
A benção faz bem a quem a recebe e a quem a pratica. Quem abençoa os outros abençoa-se a si mesmo. A benção fica ressoando em seu interior, como prece silenciosa que vai transformando seu coração, tornando-o melhor e mais nobre. Ninguém pode sentir-se bem consigo mesmo enquanto continua maldizendo o outro no fundo do seu ser. Não é possível ser canal de benção do Criador se do próprio coração brotam palavras de intolerância, de preconceito e julgamento. “Maldizer” o outro é maldizer-se a si mesmo.
Texto bíblico: Lc 24,46-53
Na oração: Fazer memória dos momentos em que você foi canal de benção para muitas pessoas.
- Você usa as redes sociais para “bendizer” ou “mal-dizer”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“...e nós viremos e faremos nele nossa morada” (Jo 14,23)
Continuamos com o discurso de despedida de Jesus, depois da Última Ceia. O tema do domingo passado era o amor manifestado na entrega aos demais. Terminávamos dizendo que esse amor era a expressão de uma experiência interior, relação com o mais profundo de nós mesmos que é Deus.
Hoje o evangelho nos fala do que significa essa vivência íntima. A Realidade que somos, é nosso verdadeiro ser. O verdadeiro Deus não é um ser separado que está em alguma parte da estratosfera, mas o fundamento de nosso ser e de cada um dos seres do universo. Tudo está admiravelmente condensado e expresso nesta frase com a qual se inicia o evangelho de hoje: “viremos a ele e faremos nele nossa morada”. O ser humano está habitado por Deus, no sentido mais profundo que possamos imaginar.
Quem toma consciência de sua identidade profunda, descobre-se habitado e amado pelo Mistério e não pode fazer outra coisa senão amar e experimentar a unidade com todos. Na linguagem do quarto evangelho, Deus e Jesus são o “centro” último do nosso interior, o que constitui nossa identidade mais profunda. Deus Trindade abraça e se expressa em toda a realidade; habita tudo e em tudo se manifesta; envolve tudo e em tudo está presente. É o que experimentaram e proclamaram os místicos: “Meu Eu é Deus e não reconheço outro Eu que a Deus mesmo” (S. Catarina de Gênova).
João da Cruz escreve: “A alma mais parece Deus que alma, e ainda é Deus por participação”. Não se trata, portanto, de que Deus habite unicamente naqueles que cumprem a palavra de Jesus, num retorno à religião dos méritos e das recompensas. Deus habita já todos os seres: nada poderia existir “fora” d’Ele. Tudo é morada de Deus.
Segundo S. Inácio “Deus habita nas criaturas: nos elementos dando o ser; nas plantas, a vida vegetativa; nos animais, a vida sensitiva; nas pessoas, a vida intelectiva. Do mesmo modo em mim, dando-me o ser, o viver, o sentir e o entender. E também fazendo de mim o seu templo” (EE. 235).
Tudo está inundado de Deus; tudo é sagrado, nada é profano.
Deus não permanece exterior nós, mas habita no mais profundo de cada um; somos o que somos devido à presença de Deus em nós. A dignidade e o significado último de cada ser humano não provêm dele mesmo, mas da presença de Deus em seu interior.
Além disso, nós nunca estamos fora de Deus. Tudo que somos e temos é manifestação de sua força, bondade e amor. Com-viver com Deus tem sempre algo de aventura que assusta e encanta. É a chamada “experiência numinosa”. Pois, Deus e o ser humano não são adversários, mas “diferenças que se amam”. Por isso, ao abraçarmos cada pessoa, estaremos tomando nos braços não apenas os seus limites, fragilidades e sombras, mas também o seu infinito mistério: Deus mesmo.
Igualmente, distanciar-se do outro é expulsar-se de Deus, e quem se fecha à novidade do outro, inevitavelmente limita a ação do Criador no próprio interior. E para onde quer que olhemos, lá está Ele: silencioso, como nosso próprio mistério. Está presente na distante profundeza do universo como suprema fecundidade e nosso Pai, na proximidade dos seres humanos como humildade e nosso irmão, em nós mesmos como sentido e o vigor que nos faz viver.
Jesus viveu uma profunda identificação com o Pai que não podemos expressar com palavras. “Eu e o Pai somos um”. Nós também somos chamados a viver essa mesma identificação. Fazer-nos uma coisa só com Deus, que é presença e que não está em nós como hóspede agregado que chega e sai, mas como fundamento de nosso ser, sem o qual nada pode existir em nós. Essa presença de Deus em nós não altera em nada nossa individualidade. Nós somos totalmente nós mesmos e totalmente de Deus. Viver esta realidade é o que constitui a plenitude do ser humano.
Uma coisa é a linguagem e outra a realidade que queremos manifestar com ela. Deus não tem que vir de nenhum lugar para estar no mais profundo de nosso ser. Está aí desde antes de existirmos. Não existe “alguma parte” onde Deus possa estar, fora de nós e do resto da criação. Deus é Aquele que torna possível nossa existência. Somos nós que estamos fundamentados n’Ele desde o primeiro instante do nosso existir. Deus já não é esse Outro ao qual temos que ir ou esperar que venha, senão que forma parte de nossa realidade, um espaço do qual podemos nos diferenciar, mas não separar.
Descobri-Lo em nós, tomar consciência dessa presença, é como se Ele viesse a nós. Esta verdade é a fonte de toda experiência espiritual. Os místicos ousam dizer: “temos Deus dentro de nós; é tão unido a nós que Ele é a nossa própria profundidade”.
Aqui está a grande novidade da mensagem e da experiência de Jesus: revelar que o lugar da presença de Deus é o ser humano. Ele é experimentado dentro de nós; mas também é preciso descobri-Lo dentro de cada um dos outros seres humanos. A presença surge de dentro e nos sensibiliza a percebê-Lo no outro.
“Deixar Deus ser Deus em nosso interior” significa entrar no fluxo da dinâmica divina, ou seja, viver encontros divinizados, sendo presença divinizada, expressando palavras e atos divinizados...
A presença de Deus em nosso interior fica atrofiada quando nossa vida é carregada do veneno do preconceito, da intolerância, do julgamento, da suspeita e do medo do diferente. É justamente essa presença divina no eu profundo que nos diferencia e nos torna originais. Encontrar-nos com Deus na própria morada interna não é fechar-nos num intimismo estéril; implica ampliar o espaço do coração para acolher o outro que pensa, sente e ama de maneira diferente, porque também ele é morada da Trindade.
O Espírito é o garantidor dessa presença dinâmica do Pai e de Jesus em nós: “Ele vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos tenho dito”. O verdadeiro Mestre – nosso “mestre interior” – que nos irá conduzindo até a verdade é o Espírito de Deus, que se expressa no mais profundo de todo ser humano. É a “voz” de Deus em nós, à qual temos acesso a partir da abertura e disponibilidade interior.
O teólogo Schillebeeckx afirmou: “Se pudesse tirar de mim o que há de mim, ficaria Deus; se pudesse tirar de mim o que há de Deus, ficaria nada”.
Ao nos reconhecermos nessa morada interior, podemos receber a paz da qual fala Jesus; não só isso: descobrimos que somos Paz. Não é a “paz do mundo”, que sempre será oscilante e inconstante, senão a Paz que abraça todas as situações da vida, porque estamos ancorados naquilo que realmente somos.
O “shalom” judaico é muito mais rico que nosso conceito de paz; mas o evangelho de João acrescenta um “plus” de significado sobre o já rico significado judaico. A paz, de que fala Jesus, tem sua origem no interior de cada um. É a harmonia total, não só dentro da pessoa, mas com os outros e com a criação inteira. Corresponde ao fruto primeiro das relações autênticas em todas as direções; expressa a consequência do amor que é Deus em cada um, descoberto e vivido. A paz não é buscada diretamente; ela é fruto do amor. Só o amor, ativado e manifestado no próprio interior, conduz à paz verdadeira. Poder-se-ia dizer que esta “paz” não é algo diferente do Espírito. É a paz de quem permanece ancorado em sua identidade profunda, sem identificar-se com os altos e baixos das circunstâncias, nem perder-se com o “vai-e-vem” da mente.
É a paz que supera toda razão, porque nasce de um “lugar” que está mais além da razão, mais além da mente, na compreensão do Mistério que somos, e que não se vê afetado pelo que ocorre em nosso eu.
Texto bíblico: Jo 14,23-29
Na oração: Considerar, como devo, de minha parte, amar as pessoas de tal maneira que me faça transparente, para que através de mim os outros possam conhecer quem é Deus.
- Eu devo deixar “transparecer” a imagem de Deus, através da bondade, justiça, serviço... Deus “habita em mim”, deixando suas pegadas; através delas sou movido a dar testemunho de quem é Deus.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros” (Jo 13,35)
A revelação bíblica afirma que Deus é o Criador e Senhor, que envolve a criação com seu Amor dinâmico e criativo. É um Deus ativo, providente, fonte de vida, que realiza obras admiráveis e santas. Em seu Amor Oblativo, Ele vem ao nosso encontro e nos introduz no movimento de sua própria Vida. Somos seres agraciados(as). Viemos de Deus e voltamos para Ele. “N’Ele vivemos, nos movemos e existimos”.
Aqui nos encontramos como que no centro do mistério único, que é o mistério do Deus Criador e Providente, do Deus que “dá a Vida”, que cuida do universo, do Deus de quem tudo procede e para quem tudo retorna; em síntese, trata-se do mistério do Amor em excesso de Deus. Portanto, no princípio está o Amor e de suas entranhas tudo procede; cada criatura é uma irradiação de Deus, uma faísca da divindade, um transbordamento do amor de Deus. Tudo fala de Deus, tudo revela o seu Amor. Tudo está “amortizado”; o Amor se faz presença, se faz visível, se manifesta em cada detalhe da criação. No Amor tudo entra em movimento expansivo e aberto.
Jesus, em sua vida, sempre deixou transparecer esse Amor do Pai. O amor de Jesus, extenso e profundo como o oceano, nunca teve fronteiras: envolveu a todos, acolheu a todos sem preconceito de raça, cultura, sexo e religião. O mandamento do amor, mais que um mandato é, antes de tudo, um dom e uma revelação de Jesus a seus discípulos.
O evangelho de hoje também faz parte do discurso de Jesus no evangelho de João, o último e mais extenso, depois do lava-pés. É um discurso que abarca cinco capítulos, e é uma verdadeira catequese à comunidade, resumindo os mais originais ensinamentos de Jesus. Estamos vivendo o tempo Pascal e, com a ressurreição, o amor rompido renasce; com a ressurreição, o amor autocentrado nos faz sair de nós mesmos; com a ressurreição, os olhares desconfiados se tornam acolhedores; com a ressurreição podemos aprender a viver a partir de Deus; com a ressurreição o amor oblativo é capaz de mover nossa vida.
Só quem assume a Vida de Deus como sua, será capaz de expandi-la em sua relação com os outros. A manifestação dessa Vida é o amor efetivo a todos os seres humanos. O distintivo do cristão é o amor fraterno. E o amor é discreto, humilde, conhecedor de sua insuficiência, não é arrogante, não se derrama em palavras, não faz alarde, não vai se proclamando pelas praças, prefere o silêncio, passa desapercebido, prefere as obras às palavras (“o amor deve-se por mais em obras que em palavras” – Santo Inácio).
É o Amor nosso distintivo como seguidores(as) de Jesus? O sinal pelo qual os outros reconhecerão que somos discípulos(as) seus(suas) é a capacidade de amar-nos uns aos outros. Temos insistindo demasiado no acidental: no cumprimento de normas, na crença de algumas verdades e na celebração de alguns ritos. E esvaziamos o essencial que é o Amor. O Reino não se espalha por meio de armas, nem com a propaganda e nem com marketing algum; o Reino se espalha pelo contágio, porque o “Amor é contagioso”.
Porque fracassamos estrepitosamente naquilo que é a essência do Evangelho? Porque dizemos seguir Aquele que é a visibilização do Amor do Pai e o nosso estilo de vida destila doses mortais de indiferença, preconceito, intolerância, julgamento...? Vivemos tempos de ira e de ódio, expressões de um fundamentalismo e de um fanatismo que esvaziam toda possibilidade da vivência do amor oblativo. Estamos nos acostumando a ver o ódio e a vingança como um espetáculo a mais. As mediações digitais e as manipulações ideológicas não nos deixam perceber as verdadeiras consequências do ódio sobre as pessoas. É preciso resgatar a sacralidade do amor; afinal, ele é o motor de uma vida intensa. O amor ágape se expressa justamente como impulso para o diferente, abertura a quem pensa, sente e ama de maneira diferente.
O mandamento do amor continua sendo tão “novo” que está ainda por ser vivido em sua plenitude. Não se trata só de algo muito importante; trata-se do essencial. Sem amor, não há vida cristã. Nietzsche chegou a dizer: “só houve um cristão, e esse morreu na cruz”; precisamente porque ninguém foi capaz de amar como Ele amou. Essa é, com certeza, nossa raiz e nossa essência, nossa mais profunda força que, às vezes nos rompe por dentro, outras vezes nos faz subir ao céu. Podemos amar e ser amados. Vivemos desejando encontro, carinho, palavra de compreensão e reconhecimento. Dizemos de Deus, de quem somos imagem, que é amor. E quando olhamos ao redor e vemos os outros, sonhamos viver a partir da cordialidade de braços que se estreitam, olhos que se compreendem ou mãos que se enlaçam.
O amor tem muitos nomes, muitos rostos, muitas formas e expressões. Tem inumeráveis histórias. É amizade, fé, paixão, enamoramento; é fraterno, filial, paterno/materno; é compaixão pelas vidas feridas ou inspiração por viver intensamente. É encontro, quietude ou tormenta. É aceitação incondicional e, ao mesmo tempo, fé nas possibilidades do outro. Amor é saber compartilhar; e também saber pedir ajuda àqueles a quem confiamos. É desfrutar da presença e encurtar as distâncias. É celebrar juntos a vida e chorar juntos os golpes. Às vezes é sede, e outras vezes é manancial que sacia os desejos. É sinal que estamos vivos, e há ocasiões em que a vida é canto, e outras em que é luto.
Um mandamento novo: “que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei”. O “como eu vos amei” não é só comparativo, mas originante. Quer dizer: “que deveis amar-vos porque eu os amei, e tanto como eu os amei”. Jesus é o cume das possibilidades humanas. Amar é a única maneira de ser plenamente humano. Ele ativou até o limite a capacidade de amar, até amar como Deus ama.
Jesus não propõe um princípio teórico, e depois pede que todos o cumpramos. Ele começa por viver o amor e depois diz: “como eu vos amei”. Quem revela sua adesão a Jesus ficará capacitado para ser filho(a), para atuar como o Pai, para amar como Deus ama.
O amor que Jesus pede não é uma teoria, nem uma doutrina; manifesta-se na vida, em todos e em cada um dos aspectos da existência. A nova comunidade dos(as) seguidores(as) não se caracterizará por doutrinas, nem ritos, nem normas. O único distintivo deve ser o amor manifestado em suas ações.
O amor não é um sonho, é o impulso básico das pessoas criadas livres; livres para doar-se livremente, livres para participar da infinita abundância de vida com que Deus nos cumula. O amor é a vida mesma em seu estado de maturidade e plenitude.
Texto bíblico: Jo 13,31-35
Na oração: Repassa sua história de amor. Que nomes são importantes em sua vida? De quê maneira você ajuda o seu ambiente a estar “carregado de amor”?
Em quê circunstância da vida você se revela como pessoa amável?
Quê passos você dá para quebrar o círculo de ódio e violência, que mata o amor na raiz?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem” (Jo 10,27)
Todo quarto domingo de Páscoa é dedicado ao tema do “Bom Pastor”; a liturgia não apresenta outros relatos de aparições, mas continuamos com mais um texto profundamente pascal. No relato deste domingo, a alegoria do Pastor fala de “escuta”, “conhecimento”, “seguimento” e “vida eterna”, que é a chave do tempo pascal; ao mesmo tempo, num aprofundamento progressivo, o texto remete ao Pai e culmina na Unidade, como Fonte de onde tudo procede e para onde tudo retorna. São estas realidades que nos permitem conectar com o sentido originário da imagem do Pastor, sem cair na literalidade pastor/ovelhas, paternalismo/cordeirinho, poder/submissão..., que acabam provocando uma justificada resistência e rejeição.
Jesus quer estabelecer com seus(suas) amigos(as) uma relação que seja o reflexo daquela que Ele mesmo tem para com o Pai: uma relação de pertença recíproca, na confiança plena, na íntima comunhão. Para expressar esta realidade profunda, esta relação de amizade, Jesus utiliza a imagem do pastor com suas ovelhas: ele as chama e elas reconhecem sua voz, respondem a seu chamado e o seguem.
Esta parábola é muito instigante. O mistério da voz é sugestivo: desde o ventre de nossa mãe aprendemos a reconhecer sua voz e, quando nascemos, vamos reconhecendo outras vozes. Pelo tom de uma voz percebemos o amor ou o desprezo, o afeto ou a frieza, a acolhida ou a rejeição. A voz de Jesus é única! Se aprendemos a distingui-la de outras vozes, Ele nos guiará pelo caminho da vida, um caminho que supera também o abismo da morte.
O contexto do relato deste domingo é o embate de Jesus com as autoridades religiosas judaicas. Depois de dizer que elas não são suas ovelhas, Jesus descreve com todo detalhe o que significa ser dos seus. Destaca dois traços, os mais essenciais e imprescindíveis: “Minhas ovelhas escutam minha voz... e elas me seguem”. Não se trata só de ouvir a Jesus, mas de escutá-lo. Muitas vezes só ouvimos e aceitamos somente o que está de acordo com nossos interesses. Escutá-lo significa aproximar-nos sem pré-juízos e acolher o que Ele nos diz, mesmo que isso implique mudar nossas convicções; escutar é pôr toda nossa atenção para tratar de compreender.
“E elas me seguem”. Não basta escutar, é preciso colocar-nos em movimento e entrar na nova dinâmica da vida. Escutar tem ressonância interna e ativa todas as nossas potencialidades ali presentes. A boa notícia de Jesus consiste em manifestar que há uma nova maneira de assumir a existência humana, uma maneira de viver que esteja mais de acordo com as exigências profundas do nosso ser. Quando alguém é capaz de escutar esse chamado interior e de viver conforme ele, vive uma existência feliz. Vive de acordo com seu mais íntimo e esta adequação entre a vida exterior e a vida interior é a felicidade.
Em um mundo onde há tanto ruído, discursos ocos e palavreado intolerante, não é fácil prestar atenção a alguma voz em especial. O fato é que às vezes vivemos em bolhas onde raramente entram vozes que nos comovam de verdade. E, no entanto, debaixo de gritos, ruídos, músicas estridentes, anúncios, peças publicitárias e frases que apelam ao conservadorismo, continua brotando palavras cheias de verdade. Palavras que valem a pena escutá-las. Talvez, detrás de muitos gestos petrificados, palavras sem sentido, falsas seguranças, estarão vozes que clamam por ajuda, ou simplesmente expressam dor, desejo de paz, de consolo.
O verdadeiro desafio é aprender a escutar, por debaixo desses discursos, a palavra profunda, o canto tranquilo ou a voz que põe em movimento.
Saber escutar o outro é uma simples, mas profunda acolhida humana; trata-se de um ato de hospitalidade, pois consiste em abrir espaço para a presença do outro, sem preconceito. Porque quem escuta de verdade recebe toda palavra como nova e ativa a sensibilidade para deixar-se “tocar” pela voz que alarga a vida.
Vivemos mergulhados num mundo de vozes; um “vozerio” nos cerca: vozes que nos levam à morte, vozes que nos chamam à vida; vozes contaminadas pelo egoísmo, adulteradas pelo medo, deturpadas pela impureza, e vozes que são o eco do paraíso convidando para a festa, comunicando paz, convocando à comunhão... É possível que as vozes do egoísmo, do orgulho e da ambição tentem se disfarçar em voz de Cristo, a fim de arrastar-nos para o vazio e a ruína. Mas o Pastor verdadeiro não fala por ruídos, e sim pelo silêncio; não fala pela força dos pulmões, e sim pelo vento suave de seu Espírito...
Para escutá-la requer-se interioridade e atenção aos sinais de sua presença: pode ser a voz de um irmão pedindo socorro; pode ser a linguagem de um acontecimento alegre ou triste; pode ser uma palavra lida ou proclamada; pode ser uma inspiração misteriosa captada no silêncio...
Na arte do discernimento das vozes, o importante é, através da escuta interior, perceber de onde vem e para onde nos conduz cada voz que ressoa em nós. Se ela nos conduz para o outro, para o Reino...é clara manifestação da voz do Pastor.
Depois de mais vinte séculos, nós seguidores(as) precisamos recordar de novo que o essencial para ser a Igreja de Jesus é escutar sua voz e seguir seus passos. Primeiramente, é preciso despertar a capacidade de escutar Jesus; ativar muito mais em nossas comunidades essa sensibilidade, que está viva em muitos cristãos simples que sabem captar a Palavra que vem de Jesus em todo seu dinamismo e sintonizar com sua Boa Notícia de Deus.
Mas não basta escutar sua voz. É necessário seguir a Jesus. Chegou o momento de decidir-nos entre contentar-nos com uma “religião burguesa” que tranquiliza as consciências mas afoga nossa alegria, ou aprender a viver a fé cristã como uma aventura apaixonante de seguir a Jesus. Parece óbvio afirmar isso: somos seguidores de uma Pessoa (Jesus Cristo) e não seguidores de uma religião, de uma doutrina, de uma moral... Estas são mediações que deveriam nos ajudar a crescer na identificação e vida d’Aquele é o Bom Pastor.
A aventura cristã consiste em crer naquilo que Ele acreditou, dar importância àquilo que Ele deu, defender a causa do ser humano como Ele a defendeu, aproximar-nos dos indefesos e desvalidos como Ele se fez presente, ser livres para fazer o bem como Ele, confiar no Pai como Ele confiou e enfrentar a vida e a morte com a esperança com que Ele enfrentou.
Se, aqueles que vivem perdidos, sozinhos e desorientados podem encontrar na comunidade cristã um lugar onde se aprende a viver juntos de maneira mais digna, solidária e libre, seguindo a Jesus, a Igreja estará oferecendo ao mundo de hoje um de seus melhores serviços.
Texto bíblico: Jo 10,27-30
Na oração: minha voz, está a serviço de quem? Da vida ou da morte? Como ela se expressa: com intolerância, julgamento, preconceito? Sou canal através do qual a Voz de Vida chega até os últimos..., ou coloco minha voz à disposição daqueles que estão a serviço da violência e da morte? Sei distinguir as diferentes vozes que se fazem ouvir ao meu redor? Purifico minha voz no fogo do silêncio ou ela é expressão do ruído da superficialidade?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“...e naquela noite não apanharam nada” (Jo 21)
Estamos desfrutando do tempo Pascal no qual tudo na vida dos cristãos (a liturgia, os símbolos, as leituras da Palavra de Deus, as flores, o branco litúrgico, e inclusive, em algumas partes do mundo, o tempo meteorológico) nos fala da vitória da vida. É, sem dúvida, um tempo precioso no qual ressoa o Aleluia da noite de Páscoa e se prolonga na liturgia, na vida e nos corações.
O Evangelho deste domingo (3º Dom Páscoa) nos conduz até à “praia pascal” da Galileia. Depois dos terríveis capítulos anteriores (gritos, sangue, cruz, violência, tortura, morte...), os apóstolos se encontram de novo na Galileia, numa paisagem quase idílica, dedicados outra vez à pesca, como se nada tivesse acontecido. O texto está cheio de simbolismos, de significados insinuados e de sugestões, mas basta recordar que tudo acontece no alvorecer, nessa hora tão charmosa na qual vemos ainda com dificuldade.
O encontro com o Ressuscitado nas praias da Galileia nos motiva a buscar um novo sentido e uma nova inspiração para o cotidiano de nossas vidas. De fato, nem todos os dias são iluminados pelos êxitos; tampouco as noites. Há dias que anoitecem e há noites que amanhecem em meio a muitos fracassos. Nem todas as manhãs nossos pescadores chegam ao porto com suas barcas carregadas de peixes.
A vida tem seus êxitos e seus triunfos. Mas também suas derrotas e fracassos. É preciso saber acolher os triunfos sem que a fumaça do ego cubra nosso coração. E é preciso saber assumir a desilusão do fracasso, sem por isso sentir-nos derrotados. Os triunfos podem alimentar ilusões; os fracassos põem à prova nossa resistência e nossa constância.
Os discípulos, naquela noite não tinham pescado nada, além do cansaço e do frio do lago. Mas não tinham perdido a esperança. A pesca tinha sido um fracasso e, a partir da margem, um estranho personagem lhes sugere que lançassem as redes do outro lado do barco, como se eles não soubessem onde deveriam lançá-las; surpreendentemente eles têm grande êxito na pescaria. Nesse momento, o discípulo amado diz a Pedro: “É o Senhor!”
Adiantou-se a todos sem mover-se do lugar; olhou para frente sem soltar a ferramenta de trabalho; não gritou sua descoberta; simplesmente sussurrou, mas entre admiração e comoção: “É o Senhor!”
Voltou a sentir a água caindo sobre seus pés e o pulsar de um coração na noite do Serviço e do Amor; suas mãos não deixaram a rede de lado, mas seu olhar foi mais além: “É o Senhor!”
E, como sempre, Jesus se encanta com os encontros em torno ao fogo e à refeição. Ele se manifesta nas coisas simples da vida. Não foi preciso palavras. Um coro de silêncios interiores proclamava: “É o Senhor!”, enquanto se espalhava no ar um agradável odor a peixe recém assado.
Podemos considerar que a exclamação do discípulo amado -“É o Senhor”! - mostra o que significa ser contemplativo. O verdadeiro contemplativo pascal olha ao seu redor, à realidade mesma, à vida em sua contradição, com suas obscuridades e suas claridades, com suas grandezas e suas misérias, com seus êxitos e seus fracassos..., e descobre nela os sinais pequenos, frágeis, vulneráveis e, às vezes, aparentemente contraditórios da presença do Ressuscitado em nossas vidas. Talvez seja este um dos desafios mais importantes da vida cristã neste nosso mundo tão cheio de mensagens, de bombardeio de notícias, de imediatismo e rapidez, de encontros e desencontros.
Nós, seguidores(as) do Ressuscitado neste séc. XXI, do mundo digital, da pós-modernidade ou da arqui- pós-modernidade, da “cultura liquida” e dos “não-lugares”, deste mundo complexo e fascinante no qual nos toca viver e ao qual devemos amar, podemos ser esses humildes contemplativos que, em meio aos afazeres cotidianos, sussurram com emoção -“É o Senhor!”- e apontam para o Ressuscitado, presente nas penumbras da vida.
Essa é talvez a missão central da nossa vida cristã hoje: captar com emoção a luz que abre passagem entre as folhas da densa floresta, contemplá-la com gratuidade, indicá-la com humildade e anunciá-la com amor. E, mais ainda, devemos nos sentir chamados a deixar transparecer a luz da ressurreição na própria realidade interior, para poder ser presença iluminante no contexto tão obscuro no qual vivemos.
É a vida inteira que deve ser iluminada pelo acontecimento pascal. Viver, para o cristão, é acolher sua vida, com suas luzes e sombras, à luz do Ressuscitado que, embora não o veja de maneira transparente, continua se fazendo presente nas praias da nossa existência. Não há obscuridade que não possa ser iluminada; não há situações, por mais difíceis que sejam, que não possam ser revertidas pela presença d’Aquele que está no meio de nós.
Gastamos energia em dissimular nossas falhas e fracassos quando, afinal, é pela sua aceitação que a porta poderá abrir-se para esse Outro que, por sua vez, nos ama incondicionalmente. No segredo do coração podemos pressentir que estes fracassos, estas dificuldades são, talvez, a nossa maior sorte. Porque através deles nos libertamos de nossas ilusões sobre nós mesmos. Eles tendem a nos deprimir, mas também podem ser uma ocasião para nos fazer mais humanos e humildes. Acolher o fracasso é retirar nossas couraças, revelar-nos abertos, tolerantes e compassivos.
Segundo um místico “felizmente Deus criou falhas em nós; caso contrário, não vejo por onde Ele poderia entrar em nossa vida!”. Nossa vivência da fé pascal também nos revela que Deus tem mais facilidade de entrar na nossa vida pela porta dos fracassos, das feridas, das crises... Aqui é onde nos sentimos mais desarmados, mais abertos e mais sensíveis à acolhida do Deus surpreendente que sempre vem ao nosso encontro. Por outro lado, Deus encontra muito mais resistência de se fazer presente em nossa vida quando nos centramos na busca da perfeição, das virtudes... Aqui estamos “formatados”, fechados em nossa autossuficiência. Através dos fracassos nos aproximamos de nosso ser essencial e da fonte de recursos que transforma estes fracassos em caminhos de realização.
O Pe. Adolfo Nicolás (ex-superior geral dos jesuítas) afirmou certa vez: “é preciso celebrar nossos fracassos”. Causa estranheza ao ouvir tal afirmação, pois vivemos em um mundo onde somente os êxitos e vitórias são celebrados. Mas, o certo é que, quando compartilhamos e acolhemos nossos fracassos, derrotas e quedas, surge uma corrente de comunhão especial, nos sentimos mais autênticos e vivemos tais situações duras como parte de uma vida que, ao mesmo tempo, é difícil e preciosa, que desafia e recompensa, que golpeia e abraça. Assim, podemos crescer na consciência de que esses momentos também são constitutivos de nossa identidade; eles se revelam como ocasião privilegiada para ativar outros recursos e possibilidades que certamente não brotariam em tempos tranquilos.
Texto bíblico: Jo 21,1-19
Na oração: Percorrendo o cap. 21 de João captamos a profundidade da contemplação inserida na vida ativa.
- Não coloquemos fronteiras ao Espírito que irá moldando nossa visão e nossa escuta e, como João, nos fará proclamar: “É o Senhor!”, sem soltar a ferramenta, nem o computador, nem o carro, nem o bisturi, nem o livro, nem o pincel, nem o microfone, nem a vassoura...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“...mostrou-lhes as mãos e o lado” (Jo 20,20)
Os relatos das Aparições nos advertem de que não se trata de uma crônica de acontecimentos. O que João quer nos comunicar são vivências internas dos discípulos reunidos; o que ele quer nos transmitir está mais além daquilo que entra pelos sentidos ou podemos imaginar.
Destacamos algumas das expressões do relato de João para formular a fé no Crucificado/Ressuscitado.
O relato deste domingo se revela como uma catequese muito rica em conteúdo. Por uma parte, vincula a ressurreição com a paz, o dom do Espírito, o perdão, a fé, a missão... Por outra, parece querer responder aos cristãos da “segunda geração”, que já não haviam conhecido o Jesus histórico, nem haviam participado daquela primeira experiência “fundante”. É a eles, representados na figura de Tomé, que lhes é dito:
“Bem-aventurados aqueles que creram sem terem visto!”
São muitos os que se sentem escandalizados com o Evangelho deste 2º. Dom. de Páscoa. Não é possível que Jesus Ressuscitado conserve as chagas no seu corpo! Pode-se tocá-lo como se tocam as feridas sangrentas de um torturado, as mãos frias de um moribundo, os pés feridos de um imigrante?
Frente aos riscos de um falso espiritualismo que quer esquecer-se da “carne”, frente a todas as tentativas de entender a Páscoa como pura mudança de consciência, o Evangelho de João quis ressaltar a corporalidade do Cristo Ressuscitado e o faz desta forma, ou seja, dando um destaque especial às chagas das mãos e do lado aberto; o mesmo corpo do amor vivido e da entrega, o corpo ferido com cravos e lança, se converte assim em um sinal visível de Ressurreição, sinal que continua presente na realidade das pessoas.
A morte de Jesus não foi um acidente de percurso, não é algo que se esquece, sinal de sua condição humana; o Senhor ressuscitado continua sendo Aquele que leva em suas mãos e em seu lado as feridas de sua entrega, os sinais de seu amor crucificado em favor da humanidade. O Senhor ressuscitado continua sendo Aquele que sofre em todos os que sofrem no mundo. Como cristãos, professamos: “o Ressuscitado é o Crucificado”; por isso é necessário “tocar suas feridas”, ali onde Ele sofre naqueles que sofrem. Portanto, contemplar o Ressuscitado chagado impulsiona a continuar encontrando o mesmo Jesus nas chagas de todos os sofredores da história.
É surpreendente que o evangelho de João tenha conservado o registro da experiência de Madalena; mas, mais surpreendente ainda é o fato de que tenha recolhido a experiência de Tomé, para assim revelar-nos que a Páscoa significa tocar com mais força, de um modo mais profundo, as chagas de Jesus ressuscitado.
Maria Madalena havia “tocado em Jesus” no horto pascal, porque o amava e pela alegria de saber que Ele estava vivo. Mas, depois teve que deixar de tocá-lo fisicamente (“não me toques”), a fim de tocá-lo e conhecê-lo de um modo diferente, levando a mensagem da Vida de Jesus aos discípulos, fechados numa casa. Ela que o tocou com amor, foi a primeira das ressuscitadas com Jesus no jardim de Vida da Páscoa.
À diferença de Madalena, Tomé precisou aprender a ativar os sentidos: olhar, escutar, tocar...; precisou descer do pedestal dos seus dogmas, das ideias separadas, para retomar a experiência concreta do amor de Jesus, que é a vida entregue pelos outros, amor chagado. Não basta crer em Jesus, separado de sua vida de compromisso em favor da vida; para crer nele é preciso querer tocar suas chagas, que são as chagas do mundo ferido por falta de amor.
Tomé começou sendo o apóstolo de uma espiritualidade sem compromisso social, sem entrega profética, sem solidariedade com os pobres e excluídos. Não era um apóstolo “cristão” de Jesus crucificado, mas um praticante da religião desencarnada que alguns, ainda hoje, continuam defendendo.
“Tocar” em Jesus, colocar o dedo em suas chagas e a mão no seu lado aberto, é descobrir a ferida sangrenta da história humana, vinculando assim a ressurreição com a dor dos homens e mulheres oprimidos(as), torturados, enfermos, assassinados... Jesus Ressuscitado continua levando em suas mãos e em seu peito a ferida da história, não só as chagas dos cravos e o corte da lança em seu próprio corpo, mas a chaga dos enfermos e expulsos, dos famintos e oprimidos e a infinidade de pessoas que continuam sofrendo ao nosso lado.
O Ressuscitado se faz reconhecível, é o mesmo Jesus, é o crucificado, é seu corpo chagado. Trata-se de crer no Crucificado. Suas feridas são inseparáveis da morte e da entrega a uma causa: o Reino. Não é a passagem a uma condição superior à do ser humano, mas a mesma condição humana levada a seu cume, assumindo sua história anterior. As chagas, sinal de seu amor extremo, evidenciam que é o mesmo que morreu na cruz. Já não há lugar para o medo da morte. Ninguém poderá tirar de Jesus a verdadeira Vida, nem tirá-la dos seus discípulos. A permanência dos sinais de sua morte indica a permanência de amor; elas são as cicatrizes de um compromisso com a vida. Além disso, elas garantem a identificação do Ressuscitado com o Jesus Crucificado.
Concluindo, podemos dizer que a experiência de Tomé, que é também a nossa, tem um valor importante para nós, seguidores(as) do Ressuscitado. Hoje, ressuscitado, Jesus continua expondo-se, deixando-se tocar sem resistências, mostrando suas feridas, permitindo que, como Tomé, “coloquemos o dedo na ferida”. Quê paradoxo! Os sinais da Ressurreição se encontram aí onde antes se encontravam os sinais de dor e morte. Só quando assumimos esta realidade, poderemos testemunhar, como os primeiros discípulos, que o “Crucificado ressuscitou!”.
São estas suas feridas e chagas nas mãos e no lado aberto os sinais que o Ressuscitado nos mostra para que possamos reconhecer as cicatrizes que também nós carregamos em nossos corpos. São estes os sinais que Ele nos mostra para que possamos pôr também nossas mãos nas feridas que continuam abertas em nosso mundo, nas mãos e lados de tantas irmãs e irmãos, de tantos povos, de nós mesmos. O Ressuscitado continua carregando todas as chagas e convida-nos a tocá-las, a acariciá-las, a acolhê-las, a reconciliar-nos com aquelas que ainda não foram integradas e pacificadas, a empenhar-nos na transformação daquelas que são fruto da injustiça e do mal.
Páscoa é tocar e acompanhar Jesus nos chagados da vida. Páscoa é também (ao mesmo tempo) sentir nas mãos e nos dedos, no coração e no olhar, o abraço de amor de todas as pessoas. Não há Páscoa de Jesus sem corpo-a-corpo de intimidade e proximidade, de homens e mulheres, de crianças e idosos, nos diversos tipos de encontro e comunhão, não para possuir mas para compartilhar, não para impor-se, mas para juntos abrir caminhos sempre novos de respeito e admiração. Assim nos toca Jesus, assim se deixa tocar por nós.
Texto bíblico: Jo 20,19-31
Na oração: Trazemos gravadas em nossa geografia corporal infinitas pequenas mortes e feridas; às vezes tão pequenas que não deixam cicatrizes visíveis, mas estão aí, cravadas em nosso corpo.
Contemplando as chagas do Ressuscitado, seremos capazes de reconhecer que fomos criados para ressuscitar, com as nossas feridas integradas, pacificadas, iluminadas...; nossa sensibilidade será ativada o suficiente para poder reconhecer esses mesmos sinais de dor em outros corpos e rostos.
- “Fazer memória” das cicatrizes na sua história corporal, unindo-as às “feridas do Ressuscitado”.
Isso já é ressurreição, plenitude do mistério da comunhão através dos gestos, da proximidade, do abraço...
A cada abraço sentido, uma ressurreição também vivida!
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“...e viu que a pedra tinha sido tirada do túmulo” (Jo 20,1)
A escuridão da madrugada desaparece e desponta a Luz que dá início à nova Criação e à nova história. Depois do silêncio, renasce a Palavra. Parecia o fim e, no entanto, aquele silêncio era o mesmo que precedeu à Palavra criadora: “Faça-se a luz”! O silêncio de Deus é fecundo. É no tempo silencioso que a semente se torna fruto e o ser humano se torna pessoa. O silêncio permite transformar a morte em vida. Aquele túmulo, afinal, era uma fonte pujante de vida e de alegria. Aquele lugar, aparentemente escuro e vazio, veria uma luz que o mundo inteiro não pode conter. Por isso, para nós, as experiências do silêncio de Deus serão sempre um convite à fé e à esperança.
Não há razão para o medo e a tristeza, pois o silêncio esconde a vida e a consolação de Deus. Arrancados do silêncio dos nossos túmulos, também nós podemos gritar como Maria Madalena no primeiro dia de Páscoa: “Vi o Senhor”! Este grito, que nos enche de esperança, rasgará todo o silêncio e ecoará por toda a eternidade.
A pedra que fora removida do túmulo de Jesus revelou a Madalena uma novidade que seu coração buscava, uma novidade que espanta, enche o interior do desejo de procura: “Ele vive”. O caminho de Madalena em direção ao túmulo é símbolo da coragem de atravessar o escuro da madrugada para ver resplandecer uma nova aurora em sua vida, pela força criadora da única Presença que tudo sustenta, tudo recria e enche de amor: a presença do Cristo Ressuscitado.
Ressurreição: experiência de afastamento das pedras que travam o fluir da vida. “Nossa vida está escondida com Cristo em Deus”. Essa vida quer se expandir. Vida que vem de Deus, vivida em Deus e que desemboca, como um rio, no Grande Oceano da Vida.
A experiência da Ressurreição permite transformar todas as pedras da entrada do túmulo em pedra fundamento, sobre a qual construir nossa vida. A ressurreição tudo integra, tudo pacifica, mesmo as pedras que bloqueavam a vida.
A ressurreição nos faz sair da estreiteza da vida e renascer para coisas maiores, do alto.
“Há um risco de acostumarmos e conviver com os sepulcros” (Papa Francisco).
Sepulcro é passagem: é como ventre materno. Há um tempo para germinar, potencializar a vida.
Podemos dizer que a Ressurreição é a “pedra angular” da nossa vida de fé. Pedra sobre a qual a fé pode se construir, base sólida que fundamenta a nossa vida. Diferença entre a Pedra angular e a pedra rolada na entrada do túmulo (que impede o fluir da vida): pedra na entrada no túmulo é sinal de morte, pois se fixa no passado; pedra angular é sinal de vida, base sobre a qual se constrói um futuro inspirador.
Há muitas pedras na entrada do nosso coração, travando a vida (tristeza, fracasso, crise, trauma...); só a experiência de encontro com o Ressuscitado pode rolar estas pedras, integrando-as e dando um novo significado. A experiência de Ressurreição permite transformar a pedra da entrada do túmulo em Pedra angular.
No evangelho de hoje, a experiência dos três personagens (nossos espelhos), revelam pedras na entrada de seus corações. Madalena, vai ao sepulcro sozinha, de madrugada, busca um corpo, carrega uma pesada pedra de tristeza, fracasso e dor pela perda do amigo. Encontra a pedra do sepulcro removida e fica assombrada diante deste fato. A pedra do seu coração também começa a ser removida (vai culminar no encontro com Jesus); ela entra em outro movimento: sai de sua solidão e vai avisar os outros discípulos, embora não tenha clareza do que está ocorrendo.
Sua vida foi uma longa noite até que o encontro com Jesus a libertou e lhe abriu um novo horizonte, restituindo-a em sua dignidade de filha de Deus e potenciando-a para iniciar uma nova vida e formar parte do grupo dos mais achegados a Jesus. Madalena, a “apóstola dos apóstolos”, é uma de nossas grandes mestras na noite e na crise que supõe a passagem pelo Sábado santo.
Pedro e João também carregam a pedra do medo (estavam trancados em casa, como se fosse sua sepultura). Com o aviso de Madalena, começa um movimento interior neles: saem do esconderijo correndo e vão ao encontro do túmulo. João, talvez com uma pedra menor, corre mais veloz. Foi o único apóstolo fiel até o fim. Pedro, que carrega pedra até no nome, permanece na dúvida. João corre e chega primeiro; não entra de imediato no túmulo: precisa de tempo para processar a novidade da pedra removida. Ele é mais místico e se deixa impactar pela surpresa que encontra. Por isso, quando entra no túmulo, mergulha no mistério: viu e acreditou. Bastou alguns sinais (faixas de linho no chão e sudário enrolado), mas foi o suficiente para compreender o que estava acontecendo. Se não houvesse encontro com o Ressuscitado, para ele bastariam os sinais.
Pedro, primário na sua reação, entra abruptamente no túmulo: vê os mesmos sinais, mas ainda permanece na dúvida. Mas ambos, Pedro e João, sentem que as pedras interiores começam a ser afastadas.
“A pedra tinha sido removida”: debaixo de cada pedra que parece amassar-nos, há vida que quer ressuscitar. À luz da ressurreição não há pedra que seja capaz de sufocar o impulso vital. O sepulcro vazio é um convite a saber olhar com o coração para descobrir, nas faixas e sudários de nossa vida, a presença do Ressuscitado. Só o amor nos capacita para um olhar contemplativo; por isso, o amor corre mais depressa que a autoridade. Para quem tem olhar contemplativo, as faixas já representam um grande sinal: apontam para uma vida destravada e plena.
“Viver como ressuscitados” é a marca que identifica os(as) seguidores(as) de Jesus.
Estar atentos às faixas e sudários de nosso cotidiano: elas apontam para a vida.
Texto bíblico: Jo 20,1-9
Na oração: Vamos, no dia de hoje, acompanhar Maria Madalena em seu itinerário da morte à vida, vamos fazer o caminho com ela da nostalgia à fé, do luto à esperança, do vazio à comunidade, do silêncio ao anúncio.
Vamos assumir como nossas as suas perdas, seu pranto e seu desconsolo, e identificar neles também nossas perdas e as de nosso mundo.
Vamos pedir ao Deus de todo consolo que, com sua ternura e cuidado, regue as sementes de nossas perdas, nossas frustrações, nossos ceticismos, nossas expectativas fracassadas, para que engendrem vida nova e não amargura e nem desespero.
Acompanhando Maria Madalena em seu percurso de luto, façamos memória dos nossos lutos e os de nosso povo e peçamos a Deus para sermos consolados, e assim poder ser testemunhas da consolação em meio a tantos fracassos históricos, como estão acontecendo em nosso mundo e em nossos ambientes cotidianos.
- “Olhar o ofício de consolar que Cristo nosso Senhor exerce...” (S. Inácio de Loyola)
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Depois, as mulheres voltaram para casa e preparam perfumes e bálsamos” (Lc 23,56)
* Como se pode passar da SEXTA-FEIRA SANTA ao primeiro DIA da semana sem unir-nos a Cristo no SÁBADO SANTO?
É o Sábado Santo de um credo pascal que sabe que amanhã florescerá a messe. Submergido no sepulcro do Senhor, espera-se simplesmente. Ao sentir a própria incapacidade de levar adiante a exigência do Evangelho, o(a) seguidor(a) de Jesus se apresenta no sepulcro de onde pode irromper a força transformadora da manhã da Ressurreição.
Nossa experiência, como cristãos e como seres humanos, se parece bastante à experiência do Sábado Santo. Não é uma experiência de morte, como a da Sexta-feira Santa; não é tampouco uma experiência de luz, nem de vida, como a do domingo de ressurreição. O Sábado Santo é o dia da ausência e do vazio, o dia do luto, o dia das dúvidas e também das esperanças. É terra de penumbra, tempo de vigília. É um caminho que nos afasta da morte, mas não sabemos para onde nos leva. O Sábado Santo oferece duas possibilidades: ou habituar-nos à ausência, ou arriscar-nos a esperar o “desconhecido”.
O sepulcro é o lugar do silêncio e da espera, onde parece que nada acontece. Há muitos espaços em nosso mundo e em nosso interior que se assemelham a este; muitos lugares onde temos a sensação de apalpar a derrota e o fracasso. Pois bem, esse sepulcro onde jaz a Vida a ponto de explodir, onde a Palavra espera para voltar a ser proclamada com nova força, é hoje o ícone de esperança para todas essas realidades vencidas e atravessadas, que continuam esperando que se faça a luz. Ensina-nos a sentir que, embora não a vejamos, a pedra que cobre tantas realidades está a ponto de romper-se.
Aqui evocamos a palavra talvez mais estranha e misteriosa do Credo: “desceu aos infernos”, ao lugar onde todos os humanos estão unidos no destino comum da morte. Jesus penetrou nesse abismo, chegando assim ao que a Igreja chama “os infernos”, o submundo da morte.
O Credo afirma que Jesus “desceu” ao lugar ou estado desse inferno, para libertar os humanos da morte, oferecendo-lhes sua ressurreição (a tradução em português do Credo afirma: “desceu à mansão dos mortos”). Dizendo que “desceu aos infernos” o Credo destaca o abismo de dureza, destruição e morte onde Jesus revelou sua máxima solidariedade com os humanos. Dessa forma Ele se fez solidário com os mortos, radicalmente. Só é solidário quem assume a situação dos outros. Descendo até à tumba, sepultado no ventre da terra, Jesus se converteu no amigo daqueles que morrem, iniciando, precisamente ali, o caminho ascendente da vida.
Jesus penetrou no abismo da morte e sua presença solidária removeu as entranhas do inferno, como diz Mt 27, 51-52: “a terra tremeu e as pedras se partiram, os túmulos se abriram e muitos corpos dos santos falecidos ressuscitaram”. Dessa forma, realizou radicalmente sua missão messiânica. Jesus já tinha descido ao inferno dos loucos, enfermos, violentados pela miséria, aqueles que estavam angustiados pelas forças do abismo; assumiu a impotência daqueles que padeciam e pereciam arrastados pelas forças opressoras da terra, chegando dessa forma até o inferno da morte.
Havia sobre o mundo outros infernos de injustiça, solidão e sofrimento; mas só o inferno da morte era total e decisivo. Mas Jesus derrubou suas portas, abrindo assim um caminho que conduz para a plena liberdade da vida (à ressurreição), na dimensão da graça. A este nível podemos falar de reconstrução da realidade, salvação definitiva. Por isso, em princípio, estão (estamos) todos salvos pelo Cristo.
Jesus “desceu até o inferno” para encarnar-se plenamente, partilhando a sorte daqueles que morreram. Mas, ao mesmo tempo, “desceu” para anunciar-lhes a vitória do amor sobre a morte, revelando-se como Grande Evangelista que proclama a mensagem de libertação definitiva, visitando e libertando os cativos do inferno.
Quando afirmamos que Jesus “desceu aos infernos” estamos falando desta realidade radical de não-vida, onde Ele revela uma presença “iluminante”, abrindo um horizonte de luz a todos que “jazem na sombra da morte”. A morte redentora de Jesus estende sua influência até o espaço misterioso dos mortos. Não se trata de uma influência externa; foi Jesus mesmo quem partilhou o estado da morte, do inferno. Sua solidariedade simplesmente é anúncio de Evangelho, é salvação, é extensão inesperada da Misericórdia de Deus.
Em nosso contexto social, o inferno continua se expressando nas diversas opressões da história humana (desde a fome ao cárcere, da exclusão social à enfermidade, da injustiça à intolerância...). O Papa Francisco nos fala cada dia da necessidade de “descer aos infernos da história humana” (lugares de opressão, bolsões de fome, violências, exclusões...) para libertar os homens e as mulheres dos infernos atuais do mundo, esperando a grande libertação de Deus.
O pior inferno é aquele alimentado justamente pelos que se dizem seguidores(as) de Jesus, mas que assumem atitudes preconceituosas e intolerantes, fazem apologia da “posse de armas”, criam guetos sociais, políticos, religiosos..., onde a morte continua tendo a primazia. Neste inferno se situam aqueles que preferem fechar-se em sua violência, de maneira que não aceitam, nem neste mundo nem no novo mundo da páscoa, a graça messiânica e o amor universal de Jesus. Sabemos que Jesus não veio para condenar ninguém; mas se alguém se empenha em manter-se em seu egoísmo e violência, pode converter-se, ele mesmo (apesar da graça de Jesus) em inferno perdurável.
Só acredita n’Aquele que “desceu aos infernos” quem está disposto a descer com Ele e comprometer-se a tirar do inferno tantas pessoas oprimidas, torturadas, violentadas...Não tenhamos pressa no Sábado Santo. Não passemos tão rapidamente da Sexta-feira Santa ao Domingo da Ressurreição. Deixemos que o Sábado Santo estenda suas sombras em nosso interior. Reconheceremos, então, que essa é a chave para entender o que nos acontece e o que acontece na manhã de Páscoa.
Com Jesus, que desce aos “infernos” da humanidade, somos também movidos a descer em direção aos nossos “infernos interiores” (lugar dos traumas não pacificados, das vivências não integradas, das feridas não curadas). Na sombria obscuridade interior há pontos de luz que são alimentados pela presença de Jesus que, na morte e descida, integra tudo e tudo redime. Nada do que é humano é descartado.
Nosso interior, a terra, a humanidade, o cosmos… estão grávidos de Ressurreição.
Texto bíblico: Lc 23,50-56
Na oração: Como as mulheres, nos afastamos do túmulo para preparar aromas e perfumes. As orações são aromas que o Espírito recolhe em sua taça. A esperança é o perfume que faz ultrapassar a putrefação das intolerâncias e preconceitos.
Na noite do Sábado Santo nos propomos dormir pouco e levantar-nos muito cedo, porque algo surpreendente vai acontecer. A Luz está para chegar. O Espírito ficou sem palavra, mas já sussurra. A voz do silêncio já geme; nele vislumbra-se a chegada da Vida. Algo grandioso está sendo gestado.
Da escuridão da morte do Filho de Deus brota a Luz de uma esperança nova: a luz da Ressurreição reflete-se no rosto das mulheres esperançosas; a transparência feminina da “Ruah” nos mantém no ritmo da espera.
Aproximam-se os rumores de ressurreição. É Páscoa.
Não basta renascer; é preciso assumir nossa condição de responsáveis de uma Nova Vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Perto da Cruz de Jesus, estavam de pé a sua mãe, a irmã de sua mãe e Maria Madalena” (Jo 19,25)
Na história do cristianismo tivemos sempre duas grandes tentações: eliminar a cruz ou exaltá-la. A cruz não tem a última palavra no Evangelho, mas é uma página incômoda que não podemos saltar, como tampouco podemos negar nem ocultar a densidade do sofrimento. Negá-lo é negar o humano.
Há algo muito perturbador na ideia de um “Deus crucificado”. Escândalo para uns, contradição para outros, absurdo para muitos... Onde fica a grandeza, a força, o poder? Que sentido tem ainda hoje em dia ajoelhar-se ou fazer reverência diante do crucificado? Como olhar a face da derrota? Como aceitar a morte do Justo? Como compreender o silêncio do Pai diante da morte do Filho?
E aí surge a eterna pergunta pela questão do mal, pelo sofrimento dos inocentes, pela tragédia que atravessa a criação. Como é possível? E um grito se eleva ao céu, entre a queixa e a incompreensão: “por que?”
O Deus crucificado é, junto à ressurreição, a intuição mais radical de nossa fé. Fala-nos da fragilidade humana, assumida pelo mesmo Deus; fala-nos da paz como único caminho, frente a outras sendas construídas sobre o rancor, a violência ou a lei implacável; fala-nos do amor como a maior transgressão em um mundo que etiqueta muitas pessoas como indignas de serem amadas; fala-nos da dor de Deus, um Deus que não é distante, alheio nem indiferente à criação que saiu de seu coração; um Deus próximo até o ponto de esvaziar-se em nós, conosco, por nós; fala-nos das entranhas de misericórdia d’Aquele que se comove diante dos sofrimentos humanos; fala-nos de compromisso, de uma aliança inquebrantável, e de risco; fala-nos de vítimas inocentes e verdugos inconsciente que não sabem o que fazem.
Mas, nem para verdugos nem para as vítimas a Cruz há de ter a palavra definitiva. Tudo isso, e muito mais, é o que podemos ver quando contemplamos o Crucificado.
Gólgota, o monte da Cruz, do Amor e do pranto. Um lugar carregado de densidade. Nele está o amor fiel e atravessado de uma mãe, a fidelidade de um discípulo e a coragem das mulheres que não abandonam nem fogem; ali se expressa a esperança ferida de um bom ladrão, o reconhecimento assombrado de um centurião, a zombaria daqueles que não são capazes de compreender e pedem provas, a indiferença daqueles que repartem as roupas do crucificado; e, sobretudo, Gólgota desvela uma morte que é consequência de uma vida de entrega, feita de gestos, palavras e obras; desvela uma vida que se fez doação radical nas mãos daquele que se revela Misericórdia.
A vida de Jesus é inseparável de sua execução, de sua morte. Estas são consequência de seu modo de ser e de estar na vida e com as pessoas, sendo misericórdia em ação, misericórdia em relação.
O Crucificado é a expressão máxima da ternura entregue até o extremo na missão de aliviar o sofrimento dos últimos. Por isso, a ternura é também subversiva, porque inverte a ordem “colocando como primeiros os últimos” (Mt 20,16). A ternura vivida até o extremo, à maneira de Jesus, tem repercussões sociais e políticas e por isso se faz insuportável para aqueles que “fazem de sua força a norma da justiça” (Sb 2,1-17) e “reprimem a verdade com a injustiça” (Rom 1,18).
Jesus é condenado porque sua atuação e sua mensagem sacodem na raiz o sistema organizado a serviço dos poderosos do império romano e da religião do templo. A vida de Jesus se havia convertido em um estorvo que era necessário eliminar, como as vidas de tantas pessoas que hoje se tornam molestas ao sistema ou que são consideradas “presenças perigosas”. Este é o mistério que hoje estamos contemplando.
A liturgia da Sexta-feira Santa nos ajuda a abrir os olhos diante dos crucificados de hoje e a impotente proximidade de Deus com eles.
É preciso olhar sempre a Cruz por dois lados: o dos crucificadores e o das vítimas. Do lado dos crucificadores, a cruz é morte. “Maldita seja a cruz”. Nós cristãos já temos nos acostumados a cantar “Ó Cruz, tu nos salvarás”, e esquecemos que há cruzes que não são cristãs, mas legitimadoras da dor e da injustiça que recai sobre as vidas as pessoas mais feridas e excluídas. A Cruz nunca vai nos poupar da dor, mas nos dá lucidez. Ela nos impede cair em espiritualidades evasivas, depura nossas imagens de Deus, às vezes demasiado burguesas e light, que não suportam a prova do fracasso, da obscuridade e do silêncio.
A violência e a injustiça geram vítimas e contam com nossas cumplicidades. A Boa Notícia do evangelho se manifesta a partir do reverso da história e assume a miséria, a debilidade humana, o limite físico e psíquico, o fracasso. Por isso, a sexta-feira santa nos revela também os aspectos mais obscuros de nossa condição humana.
Há lugares e situações de vida diante dos quais não podemos deixar de exclamar: “Sempre é sexta-feira Santa!”: miséria, exaltação da violência, relações centradas na intolerância, solidão, sonhos quebrados...
Aproximar-nos de cada um desses lugares é tocar as chagas do Crucificado, chagas que criamos e geramos com nossa indiferença e nossa omissão; chagas que nos molestam porque cheiram mal, porque gritam e nos desmascaram, devolvendo-nos à nossa verdade mais íntima. Adentrar-nos em suas vidas é também apalpar o mistério, o mistério do mal e da injustiça, o mistério de uma Vida com maiúsculas que sempre é mais e que brota a partir de baixo e a partir de dentro para dar à luz a esperança, embora nós, muitas vezes, não saibamos percebê-la.
No Crucificado, Deus nos mostra a densidade mais profunda de seu mistério. Um Deus que não só está a favor das vítimas, mas que, à mercê de seus verdugos, revela sua máxima solidariedade e proximidade para com “os sem poder”, com aqueles que “desfigurados, nem pareciam homens” (Is. 52,14). Quando acompanhamos Jesus na paixão, também “vamos sendo talhados” pelas cenas que contemplamos, com o coração aberto à dor e à aflição. Essa dor esvazia nossas autossuficiências e purifica nossas autoimagens triunfais, humanizando-nos. Ao contemplar o amor redentor de Deus revelado em seu Filho Jesus, nós nos perguntamos onde está Ele no sofrimento. Há aqui uma inversão de perguntas:
Para responde à interrogação -“Onde está Deus nas situações de sofrimento e morte?”-, Deus nos desafia a responder à sua própria questão: “Onde está você no meu sofrimento?”.
Contemplando o Crucificado vamos pedir ao Senhor neste dia que nos ajude a permanecer solidários nas situações onde a “Divindade se esconde” (S. Inácio), que nos ajude a olhar a Cruz e escutar o grito dos crucificados nela; escutar os gritos daqueles que vivem na noite do sofrimento, da violência, da injustiça e do desamor. A Cruz é um grito no qual cabem todos os gritos da humanidade, desde o primeiro choro de uma criança até o último suspiro de um moribundo.
Escutemos neste dia os gritos daqueles que vivem na noite do sofrimento, os gritos dos empobrecidos, o grito dos povos e culturas condenadas à exclusão...; todos esses gritos unidos ao grito da mãe-terra, destruída em seus ecossistemas e explorada pela ganância.
Escutemos grito das vítimas do bilionário negócio da venda das armas; o grito dos “descartados” e de todos aqueles que o sistema considera como sobrantes: os sem teto, sem-terra, sem trabalho; o grito daqueles que são julgados por leis injustas em tribunais que, como Pilatos, lavam as mãos....
Texto bíblico: Jo 19,16-30
Na oração: nos Gólgotas deste mundo, continuar apostando, gritando e proclamando Vida, apesar daqueles que investem na cultura da morte.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Estavam tomando a ceia” (Jo 13,2)
Na Quinta-feira Santa celebramos o Amor de Jesus até o extremo, a radicalidade de sua ternura que se faz cuidado até o ponto de identificar-se com a humanidade mais ferida.
Não é só o “dia do amor fraterno”, mas do amor pleno, em todas as suas dimensões, tal como se revelou na vida e mensagem de Jesus, culminando neste dia através de quatro expressões:
- É Amor de Ceia, compartilhar o pão e o vinho (Eucaristia), em gesto de comunhão aberta a todos os homens e mulheres da terra, amor que protesta contra a fome e marginalização de milhões de pessoas;
- É Amor de Lava-pés, ou seja, de serviço concreto aos outros, na casa, no trabalho, nas relações... É lavar os pés, dar dignidade a quem está próximo ou distante, em gesto concreto de compromisso e ajuda humana;
- É o Amor do Novo Mandamento, o único mandato de Jesus, que marca a identidade dos seus seguidores.
- É Amor que se institui em forma de Ministério concreto de serviço aos demais. Este é o dia do sacerdócio, que não é posição de poder sobre os outros, mas um modo de viver, acompanhando e ajudando os outros, homens e mulheres, em gesto concreto de amor (“como eu vos tenho amado” e “vos lavei os pés”).
Enfim, Jesus pede aos seus que amem assim, que se lavem os pés, que se ajudem e sirvam a todos. Esta é sua Páscoa de Quinta-feira Santa. E tudo isso junto a uma mesa, despojada e provocativa.
Modelada pelo ser humano, a mesa, ao mesmo tempo modela todo aquele que dela se aproxima; na perspectiva cristã, a mesa desperta em nós aquela sensibilidade e delicadeza de servidores, como Jesus teve, ao se prostrar, com o avental, aos pés dos apóstolos para lavar-lhes os pés.
Jesus, antes de se deixar no sacramento do pão, “desejou ardentemente” cear com os seus, ou seja, Ele teve fome, desejo ardente, motivação para... A mesa e a refeição foram o “lugar sagrado” do pão, dos afetos, dos desejos de relações livres, de compromisso, de justiça e de solidariedade vividos por Ele durante sua peregrinação, passando de mesa em mesa, até se fazer alimento, numa mesa de refeição e de festa: a da sua Páscoa.
Podemos dizer que a mesa tem um “quê” de mistério pascal, pois ela nos capacita para acolher o inesperado que vem: o “outro” em sua aflição, em sua fome, em sua dor. Nela, o coração humano encontra repouso, alento, força e vigor para caminhar com sentido de viver no mundo que o cerca, ora em sua paixão, ora em sua morte, mas também em sua ressurreição, até que toda a Criação seja plenificada em Deus.
Palco da realidade cotidiana, a mesa da refeição e da festa transforma-se num grande teatro, onde o personagem principal é a vida e suas aventuras. Nesse teatro cotidiano, nós contamos, re-contamos e nos re-conectamos com a nossa própria história, muitas vezes enterrada pelo esquecimento. Como seres pensantes e pulsantes, somos desafiados, junto à mesa, a compor uma nova história.
O importante é que estejamos à mesa da refeição sempre inteiros, para que nada seja perdido, alienado aos nossos olhos, mas sim resgatado, redimido pelo “mistério do encontro”. Mesa criativa, solo de onde brota o alimento material, emocional, psíquico e espiritual em suas múltiplas formas, cores, aromas e sabores do Reino do Pão e da Festa da Vida.
A grande e sublime refeição foi a Última Ceia que se apresenta como o cume de todas as refeições que Jesus participara com diferentes pessoas, porque nela desembocam as aspirações de todos os tempos.
Na Eucaristia, estão a mesa, a comida e a bebida, os comensais, sem exclusão de ninguém, provocando, como na mesa humana, a partilha, o encontro, a troca, a comensalidade, a união e a comunhão.
O altar se torna o móvel sagrado por excelência, em torno do qual se reúne a povo peregrinante, que marcha para o festim do Reino, mesa definitiva, preparada para todos aqueles que ouviram e atenderam o convite do Senhor. A mesa do Senhor oferece pão e vinho, os quais são distribuídos sem distinção de pessoas. A eucaristia reúne os participantes na comensalidade divina, recordando-lhes o grave compromisso que os une a todos os homens e mulheres. Unir-se a Cristo é unir-se a toda e qualquer pessoa.
Quê fazia e quê queria fazer Jesus na Última Ceia?
A chave de resposta está no evangelho de hoje; a única forma de compreender a Eucaristia é entender o Lava-pés. O gesto escandaloso de Jesus revela um enfoque nem sempre percebido em seu sentido último. Jesus não faz um gesto teatral; Ele revela aos apóstolos um “novo ângulo” ou um novo modo de ver as coisas: não a partir do lugar dos comensais, mas a partir da perspectiva de quem não está sentado à mesa. O gesto de Jesus convida a nos deslocar, ou seja, ocupar o lugar da pessoa que não participa da mesa.
Quê novidade se percebe a partir deste lugar?
Quando me situo no lugar fora da mesa, a primeira coisa que percebo é que falta um lugar junto à mesa, precisamente o meu lugar. Suponhamos que os comensais me admitam à mesa e arrumem um lugar para mim. Automaticamente se revela um problema: redistribuição de espaço, de alimentos, etc... Portanto, olhar a refeição a partir do ângulo de quem não participa muda totalmente as perspectivas.
Assim fica claro que não é normal que haja pessoas excluídas da refeição, quando todos fomos criados para sentarmos como irmãos(ãs) na mesma mesa do Pai. Enquanto houver excluídos não será o banquete que Jesus quis, e portanto, será necessário cair-nos na conta da exigência de mudança para que todos eles possam participar. Somente fazendo-nos solidários da promoção e libertação daqueles que não se sentam à mesa comum poderemos realizar, na verdade, a prática do sacrifício de Jesus.
Esse era o desejo que habitava o mais profundo do coração d’Ele: reunir todos os homens e mulheres ao redor de uma mesa, sem exclusões e nem marginalizações. Não é possível reconhecer o Corpo do Senhor presente na Eucaristia se não reconhecemos o Corpo do Senhor na comunidade onde alguns passam necessidades. Pois, se fechamos os olhos às divisões e às desigualdades mentimos ao dizer que Cristo está presente na Eucaristia.
Enquanto não nos mobilizamos a mudar nossa sociedade de maneira que mais pessoas aceitem a alegria de compartilhar o pão e a vida, faltará algo em nossa Eucaristia.
Essa “ferida” o cristão deve sempre tê-la presente.
Texto bíblico: Jo 13,1-15
Na oração: O apelo, neste dia, é “cristificar nossas mesas cotidianas”; e ao participar delas nos descobrimos solidários com todo o povo que caminha; ao mesmo tempo, elas prolongam em nossas casas a “mesa do Senhor”, quebrando em nós qualquer solidão ou muralha e nos ajudando a acolher as pessoas, a amá-las na sua diferença. A “mesa cristificada” desperta em nós outras fomes: justiça, solidariedade, compaixão...
- Jesus, companheiro de mesa, nos convida a ser mesa de acolhida e de partilha.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“E levaram o jumentinho a Jesus” (Lc 19,35)
Celebramos hoje o chamado “Domingo de Ramos”, a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém. Nada de mobilizações, nada de comissão de preparação da festa; não teve um mestre de cerimônias para que tudo acontecesse dentro das normas estabelecidas; não pediu que a polícia lhe acompanhasse, nem guarda-costas para sua segurança pessoal. Jesus nunca buscou as grandes manifestações populares. A improvisação contou com a espontaneidade do povo simples e, como tal, nada de grandes solenidades, de aparato espetacular. Para Jesus, bastava-lhe um jumentinho. O resto ficou a cargo da iniciativa da multidão que se uniu a Ele, enfeitando o caminho e entoando hinos messiânicos.
Todos sabemos que as “mudanças profundas e duradouras” na sociedade não vem de cima, mas de baixo, a partir da solidariedade e da identificação de vida com os últimos deste mundo. Ali, nas periferias e nas margens, há uma esperança latente e alentadora daqueles que se empenham por imprimir um movimento novo à história; é nele que está a semente de uma vida diferente, criativa e mais promissora. E Jesus foi o ponto de partida de uma ousada mudança na história da humanidade.
Os evangelistas sinóticos relatam a vida pública de Jesus como uma subida das “periferias” até a capital política e religiosa. E Jesus “entra” em Jerusalém, montado num jumentinho e aclamado por seus seguidores. Escolhe um jumentinho como símbolo de um messianismo de paz e simplicidade. Nada, portanto, de uma manifestação espetacular; Ele rompe com a imagem de um triunfador e despoja-se de todo indício de poder. Jesus, presença de vida nos povoados, vilas e campos, quer levar vida a uma cidade que carregava forças de morte em seu interior. Ele quer pôr o coração de Deus no coração da grande cidade; deseja recriar, no coração da capital, o ícone da nova Jerusalém, a cidade cheia de humanidade e comunhão, o lugar da justiça e fraternidade...
Mantos colocados como tapetes pelo solo, ramos de oliveira e palmas e tudo o que saía de dentro das pessoas: o canto, o grito de louvor, as vivas, os aplausos. O povo simples faz as coisas de maneira simples, mas que se tornam simpáticas, festivas. Além disso, Jesus não precisava mais que isso. Jesus não quis entrar em Jerusalém como os conquistadores militares, mas como o homem simples, como o Salvador simples. Porque, para Jesus era uma entrada que queria ser como uma nova oferta de salvação à cidade de Jerusalém, e a salvação não é oferecida com títulos de grandeza; isso sim, ela é oferecida com cantos, danças, alegria. Jesus quer que todos descubram a novidade do Evangelho com vibração e com sentido festivo; quando Ele nos oferece o dom salvação, faz com alegria e é também com alegria que somos chamados a acolhê-lo.
Como mensageiro de paz, chegou Jesus a Jerusalém montado num jumentinho. Não precisava de soldados e nem de instituições de violência para se defender. Sem armas de guerra, sem um possante cavalo, sem poderes e nem ambições..., mas montado num jumentinho de paz; um jumentinho emprestado e novo, não domado, pois Jesus não possuía nem um jumentinho.
O texto de Lucas supõe que Jesus tinha conhecidos naquela região, à entrada da aldeia (Betfagé). O jumentinho não era seu, mas contava com amigos que o emprestaram. Este jumentinho é símbolo da vida campesina e pacífica, animal do pobre; é conhecida sua resistência na lida do cotidiano do campo: carrega peso, lavra a terra, suporta longas viagens... Não é animal para a guerra e nem para alimentar a vaidade daqueles que querem demonstrar seu poder diante dos outros. Jesus se serve de um jumentinho para dizer que não quer se impor pelas armas e pela força; seu senhorio é diferente, retomando as tradições campesinas de seu povo.
Como o jumentinho não tem arreio, nem apetrechos (é um jumentinho novo, nunca montado), os discípulos estendem seus próprios mantos na garupa, para que assim Jesus pudesse montar com dignidade e, sobre sua garupa, pudesse entrar na cidade, descendo pelo Monte das Oliveiras. Jesus chegou a Jerusalém de maneira pacífica, mas muito provocadora, pois instaurar o Reino como Ele propunha implicava um desafio para o sistema imperial de Roma e para a política sacerdotal do templo.
Que Jesus era uma pessoa desconcertante, não resta dúvida. Continuamente Ele assumia atitudes que desconcertavam a todos, ou realizava alguns gestos que causavam assombro... Sempre evitou grandes manifestações que poderiam se prestar a enganos e equívocos em torno à sua pessoa. Quando quiseram fazê-lo rei, escapou e se refugiou na montanha. Como é que agora, o primeiro dia de sua última semana, lhe ocorre armar um rebuliço? Como profeta, Jesus toma consciência que agora já não é mais o momento dos discursos, mas dos gestos; já não é o momento das palavras, mas dos fatos; já não é o momento de esconder-se, mas de mostrar a cara; já não é o momento das prudências, mas dos riscos; já não é o momento de ocultar sua messianidade, mas de proclamá-la.
A Igreja também necessita de gestos, mas de gestos evangélicos. Muito mais que grandes discursos, a Igreja necessita de gestos simples que o povo entenda, viva e sinta. Temos demasiados “exibicionismos clericais” que tem pouco a ver com a simplicidade de Jesus; temos grandes solenidades, que possivelmente são bem-intencionadas, mas que expressam pouco da simplicidade e da pobreza de Jesus.
Com frequência confundimos nossa vitalidade cristã com as grandes massas em torno às grandes figuras da Igreja. Medimos nossa fé pelas estatísticas daqueles que assistem a essas grandes manifestações. E logo, todos somos conscientes de que tudo continua igual, que as grandes massas não vão mudar depois dos grandes aplausos e vivas.
Jesus mesmo viveu essa experiência. Essa mesma multidão que hoje o acompanha, dentro de uns dias pedirá que o crucifiquem. Os entusiasmos massivos têm muito pouco de personalização da fé. É mais o sentimentalismo do momento que uma experiência profunda do Evangelho. Jesus não fundou uma Igreja de grandes massas. Pelo contrário, falou de uma Igreja “pequeno rebanho”, “sal e fermento”, esvaziada de vaidades e carregada de simplicidade.
Não estamos insistindo em demasia no prestígio da Igreja? Não estamos por demais preocupados com uma Igreja que brilha, em vez de uma Igreja simples, pobre e despojada? Não temos na Igreja “carros possantes” em excesso e pouquíssimos jumentinhos?
Texto bíblico: Lc 19,28-40
Na oração: Nosso zêlo e amor pelo Evangelho e pela semente do Reino que nele está contida, deve favorecer o advento de uma “Nova Jerusalém”; é preciso cuidar o coração, esvaziá-lo, limpá-lo, aquecê-lo, transformá-lo em humilde receptáculo, para que o Espírito do Senhor possa ali pousar e nele habitar como num ninho acolhedor, transmitindo-lhe vida, luz, calor, paz, ternura...
- Como você descreve sua “Jerusalém interior”: cidade da paz e do encontro ou cidade da intolerância e da violência?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério” (Jo 8,4)
“Um país que empequenece seus cidadãos para que possam ser mais dóceis em suas mãos, logo descobrirá que, com seres humanos apequenados, nenhuma coisa grande poderá ser realizada” (Stuart Mill). Em outras palavras, uma sociedade que “empequenece” as pessoas, nunca realizará grandes obras.
Uma afirmação assim, serve de advertência diante do nosso contexto social, político e religioso em que vivemos, onde a intolerância, o julgamento, o preconceito, a crítica destrutiva... assumem contornos assustadores, humilhando os outros, ridicularizando-os, descartando-os... Quando proferimos, contra uma pessoa ou grupos, acusações ou expressões que ferem a reputação, estamos esvaziando nossas relações de humanismo, desembocando na barbárie. E quando os meios de comunicação, sobretudo as redes sociais, se colocam a serviço deste movimento desumanizador, passamos a viver na “sociedade do desprezo”.
O espírito da acusação e de humilhação do outro, é um espírito de morte. Este mal espírito de nosso tempo, em seu exagero cancerígeno, aparece também, com muita frequência, na Igreja e em suas comunidades e grupos. Por meras aparências, suspeita-se do outro, pensa-se mal dele, condena-o no coração, marginaliza-o. Quantas pessoas já temos “empequenecidas” em nossa opinião! Diante do desapreço generalizado é preciso deixar ressoar em nosso interior as palavras de Jesus: “quem dentre vós não tiver pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra”.
As “pedras na mão” são fáceis de serem encontradas também em nossas vidas. Hoje são as pedras do WhatsApp, do twitter, das mensagens preconceituosas, das fake-news..., que bloqueiam o futuro das pessoas através da crítica sem piedade, do desprezo que destrói, da indiferença que congela as relações... A arrogância também tem raízes em nosso interior; manifesta-se no nosso pensar e agir cotidianos. Ela é a base de nossas intransigências, dos nossos preconceitos, dos nossos dogmatismos, de nossas críticas amargas, dos comentários maldosos... A arrogância mora no nosso desprezo e nas nossas ironias. Ela nos paralisa.
O convite de Jesus a reconhecer nosso pecado é a única via para que essas pedras não caiam sobre nenhum inocente e, ao mesmo tempo, nós possamos encontrar a possibilidade da transformação e da mudança. Enquanto nos habite este “espírito mau”, nada bom, nem grandioso poderá ser construído. Uma sociedade que “empequenece” seus homens e mulheres não poderá ter futuro; uma igreja que “empequenece” seus membros, através de um moralismo e um legalismo doentio, também não poderá ser testemunha do evangelho; um grupo, dentro da igreja, que faça o mesmo, estará traindo o modo compassivo e acolhedor de Jesus.
“A misericórdia de nosso Senhor se manifesta sobretudo quando Ele se inclina sobre a miséria humana e demonstra sua compaixão, para quem necessita de compreensão, cura e perdão. Tudo em Jesus fala de misericórdia; mais ainda, Ele mesmo é a misericórdia” (Papa Francisco). A presença misericordiosa de Jesus aparece claramente na cena da “mulher adúltera”, relatado pelo evangelho deste domingo. Ali, a mulher é colocada no centro, pelas autoridades religiosas que tem a lei na mão: constrangimento, humilhação, olhares julgadores, juízo de morte... sobre ela. Vítima de julgamento, ela está no centro da morte. Não há saída, perante a lei. Jesus, no entanto, toma outra atitude: desloca-se para o centro das atenções e se faz centro junto com a mulher; sua presença solidária continua deixando a mulher no centro; porém, Ele inverte a situação dela: ela agora está no centro da misericórdia, portanto, no centro da vida.
Jesus, com sua presença misericordiosa, inverte o sentido do centro: antes, centro de exclusão e violência, agora, centro como ponto de partida para nova vida. Antes, um centro atrofiado que conduzia à morte; agora, centro expansivo, pois ativa e impulsiona a vida em direção a um novo horizonte de sentido.
A partir desse centro, junto a Jesus, a mulher poderá ser autora de sua nova existência; ela é movida a expandir esse centro, indo ao encontro dos outros para testemunhar a experiência que viveu: “vai e não peques mais”. Ela, agora, torna-se centro da vida pois recupera sua autonomia e poderá abrir-se ao novo futuro, como oferta da misericórdia.
Vivamos a Quaresma como um novo tempo para nossa sociedade, para a igreja, para as comunidades! Queira Deus que nos “beatifiquemos” uns aos outros “em vida”! Só reconhecendo, com um olhar apreciativo, o profundo, o que há de bondade no coração, a luz que cada um emite, engrandeceremos os outros e faremos que nossa sociedade, nossa comunidade, seja cada vez maior. A cultura do encontro, da acolhida, do apreço pelo outro, faz chegar o Reino de Deus.
Jesus sempre revelou um “olhar alternativo”, longe do julgamento, do desprezo e da humilhação. Ele não via as pessoas através do filtro “justos ou pecadores”, nem projetava nelas suas simpatias ou antipatias, seus medos e suas necessidades.
Jesus sempre foi a luz, sem sombras nem exclusões. Ninguém nunca ficou à margem da sua luz, pois seu olhar pousava sobre todo rosto, sem diferenças de raças, línguas ou religiões. Quando Jesus se aproximava da realidade condenada, a olhava de maneira diferente do olhar domesticado pelo moralismo. Por isso, diante da insistência das autoridades religiosas que argumentavam com as pedras nas mãos, Jesus faz um silêncio, tempo e espaço que também ajudam os acusadores a olhar de outra maneira. Olhando com amor há, sim, saída para a mulher adúltera. Se não olharmos a realidade com amor, toda a nossa visão estará adulterada. Compreendem-no as autoridades religiosas quando Jesus as convida a olhar a mulher com misericórdia e a partir de sua própria realidade de pecadores. Os varões deixam cair as pedras de sua segurança e da lei, abrindo suas mãos para acolher outra visão. Assim, a mulher é salva da morte, da lei, de seu pecado e do cerco social que lhe negava a vida, simbolizado nesse grupo de homens que a rodeava. Jesus olha a interioridade, ali onde essa mulher é amada pelo Pai, e resgata sua vida dos olhares de morte que a capturam. Nesse dia, o povo que rodeava Jesus aprendeu a olhar.
Jesus é o mestre do olhar alternativo. Precisamente porque conhece o coração humano, Jesus acerta ao dizer: “Quem não tem pecado, que atire a primeira pedra”. Diante destas palavras, que desnudam as atitudes farisaicas daqueles que se achavam “justos”, todos se afastam. Ninguém é melhor que ninguém. Com quê direito julgamos, desqualificamos e condenamos?
Texto bíblico: Jo 8,1-11
Na oração: Em muitas situações difíceis da vida, o que salva é o olhar. Olhar com os “olhos cristificados”: eis o desafio. Não se trata de qualquer olhar. É o olhar limpo, diáfano, que desarma, que não esconde engano ou segundas intenções.
Contemplar o rosto do outro é sentir sua presença, sem pré-conceitos e pré-juízos..., vendo nele o sinal da ternura de Deus. Olhar admirado e gratuito, como aquele de Jesus, que transforma, que liberta e que se comove diante da realidade, especialmente da frágil realidade humana.
- Seu olhar: marcado pelo peso da lei ou pelo peso do amor?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e foi tomado de compaixão.
Correu-lhe ao encontro, abraçou-o e o cobriu de beijos” (Lc 15,20).
As parábolas mais belas que saíram dos lábios de Jesus, elaboradas nas profundezas de seu coração, foram aquelas nas quais deixou transparecer a todos a incrível misericórdia de Deus. A mais cativante, com certeza, é a parábola do “pai misericordioso”. Aqueles que a escutaram pela primeira vez certamente ficaram surpreendidos. Não era isto o que eles ouviam dos escribas ou dos sacerdotes. A insistência “moralista” no pecado nos fez interpretar esta parábola de uma maneira unilateral. É incorreto chamar o relato de “parábola do filho pródigo”. Ela não é dirigida aos pecadores para que se arrependam, mas aos fariseus e mestres da lei para que mudem sua ideia e imagem de Deus.
Nesta parábola, Jesus justifica sua postura para com os publicanos e pecadores, desvelando quem é o Deus de misericórdia para todos nós, sejamos “bons” e “maus”. Na maneira de atuar com os dois filhos, o pai da parábola torna visível o rosto do Deus compassivo revelado por Jesus e não o “deus legalista do templo”; a maneira como Jesus acolhe os pecadores e excluídos, torna presente o Deus que ama a todos indistintamente.
Jesus não fala nunca de um Deus indiferente ou distante, esquecido de suas criaturas ou interessado por sua honra, sua glória ou seus direitos. No centro de sua experiência religiosa não nos encontramos com um Deus “legislador” procurando governar o mundo por meio de leis, nem com um Deus “justiceiro”, irritado ou irado diante dos pecados dos seus filhos e filhas. Para Jesus, Deus é compaixão, e a compaixão é o modo de ser de Deus, sua primeira reação diante de suas criaturas, sua maneira de ver a vida e de olhar às pessoas, o que move e dirige toda sua atuação. Deus sente para com suas criaturas o que uma mãe sente para com o filho que leva em seu ventre. Deus nos carrega em suas entranhas misericordiosas.
A compreensão da “parábola do amor paterno-materno de Deus” pode ser para nós uma verdadeira iluminação. Ela revela não só o “coração compassivo” de Deus, mas também vemos, refletida nela, de maneira sublime, tudo o que devemos aprender sobre o “falso eu” e o nosso verdadeiro ser. Os três personagens representam diferentes aspectos de nós mesmos.
A “parábola dos dois filhos” trata de uma denúncia implacável contra a espiritualidade farisaica. Em primeiro lugar, tanto o filho mais novo como o primogênito habitam em cada um de nós; podemos encontrar em cada um deles, elementos que nos levem a identificar-nos com ambos.
Temos considerado a parábola como dirigida aos “filhos pródigos”. O “filho mais novo” simboliza nossa natureza egocêntrica e narcisista que nos domina enquanto não descubramos o que realmente somos. Dá por suposto que todos temos muito do filho mais novo, que é aquele que rompeu a aliança e se distanciou da casa paterna. A verdade é que a atitude do filho mais velho também deveria ser objeto de uma atenção mais cuidada. É relativamente fácil sentir-nos “filho pródigo”. É fácil tomar consciência de ter di-lapidado um capital que nos foi entregue sem ter merecido. É fácil cair na conta que temos rompido com o pai e com a casa, que temos desejado que ele estivesse morto para herdar seus bens, temos renegado o entorno no qual se desenvolveu nossa existência. Tudo para potenciar nosso egoísmo, para satisfazer nosso hedonismo à custa daquilo que nos foi entregue com amor. O fracasso do filho mais novo e a desesperada situação à qual chegou, facilita a tomada de consciência de que tomou o caminho equivocado.
É difícil descobrir em nós o “irmão mais velho” e, no entanto, todos temos mais traços deste que do filho mais moço. Com frequência, não entendemos o perdão do Pai para com os pródigos, nos irrita que outra pessoa que se comportou mal seja tão querida como nós; não percebemos que rejeitar o irmão é rejeitar o Pai; caímos facilmente na queixa que envenena e no julgamento que mata. Não só não nos sentimos identificados com o Pai, mas buscamos, por todos os meios, que o Pai se identifique conosco; coisa que não se passa na cabeça do irmão mais novo. A partir desta perspectiva, tampouco descobrimos que precisamos de conversão e temos de regressar ao Pai. Por isso, a parábola deixa em um suspense inquietante a resposta do irmão maior; não nos diz se ele acolheu o apelo do Pai e se incorporou à festa. Isto nos faz pensar.
A descoberta de que somos o irmão mais novo e, ao mesmo tempo, o irmão mais velho, nos faz perceber o objetivo da parábola, que é o Pai. Todo temos de deixar de ser “irmão mais novo” e “irmão mais velho” para converter-nos finalmente em “Pai”.
Todos somos chamados a deixar de ser irmãos e identificar-nos com o Pai, como Jesus (aqui podemos descobrir um profundo significado da frase de Jesus: “Eu e o Pai somos Um”). Nossa maturação pessoal acontece quando deixamos transparecer em nós a figura do Pai. “Sede misericordiosos como vosso pai é misericordioso”. A parábola de hoje nos faz tomar consciência que sempre haverá, em nossa vida, etapas a serem superadas, na direção do coração compassivo do Pai.
Permanecer distanciados de nosso verdadeiro ser é afastar-nos de Deus e caminhar na direção oposta à nossa plenitude. Daí a necessidade de interpretar a parábola não a partir da perspectiva de um Deus externo a nós, mas a partir da perspectiva de um Deus que se revela dentro de nós mesmos. Nós mesmos somos o Pai/Mãe que perdoa, acolhe e integra tudo o que há em nós de fragilidade e engano. Ser verdadeiro(a) filho(a) não é viver submetido ao pai ou afastado dele, mas imitá-lo até identificar-nos com ele.
O “pai” é nosso verdadeiro ser, nossa natureza essencial, o divino que há em nós. É a realidade que temos de descobrir no fundo de nosso ser. Não faz referência a um Deus que nos ama a partir de fora, mas ao que há de Deus em nós, formando parte de nós mesmos. É o fogo do amor compassivo que derrete a frieza nos nossos relacionamentos, queima toda pretensão de julgamento e intolerância, e ativa o impulso ao contínuo retorno à casa paterna. Essa realidade fundante tudo abarca e tudo integra nela mesma.
Para re-descobrir o(a) “pai-mãe que nos habita”, não supõe ignorar nossa condição de “irmão mais novo” e “mais velho”; é preciso aceitá-la, é preciso saber conviver com o que ainda há em nós de fragilidade e imperfeição. Devemos buscar superá-la, mas enquanto esse momento não chega, é preciso aceitá-la e ultrapassá-la, ativando o amor incondicional do Pai. Tanto o irmão mais novo como o irmão mais velho que há em cada um de nós, deve ser objeto do mesmo amor. A parábola não exige de nós uma perfeição absoluta, mas que caiamos na conta de que nos resta um longo caminho a percorrer. O que ela pretende é colocar-nos no caminho da verdadeira conversão: a superação do auto-centramento e do perfeccionismo.
Falta-nos dar o último passo no desprendimento do ego e para nos identificar com o que há de divino em nós, o Pai.
Texto bíblico: Lc 15,1-3.11-32
Na oração: “Eu e o Pai somos Um”: é a melhor expressão de quem foi Jesus.
Você também é “Um com Deus”, mas talvez não tenha se inteirado disto; descubra-o e esta frase saltará do mais profundo do seu ser.
- Descubra o que há em você do irmão mais novo: deixar-se levar pelo hedonismo individualista, buscar o mais fácil, o mais cômodo, o que o corpo pede... Seu objetivo é satisfazer as exigências de seu falso “eu”.
- Descubra o que há em você de irmão mais velho: distante do coração do pai, fechado na queixa amarga e incapaz de expressar um gesto de acolhida.
- Descubra as marcas do Deus Pai/Mãe nas profundezas de seu ser: cheio de compaixão, festeiro, aberto à vida...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Pensais que eram mais culpados do que todos os outros moradores de Jerusalém?” (Lc 13,4)
O evangelho deste domingo, exclusivo de Lucas, apresenta uma reflexão sobre a conversão, em forma de parábola, a partir de dois acontecimentos trágicos que causaram comoção no povo judeu. O relato traz à tona este eterno problema: é o mal consequência de um pecado? Assim pensavam os judeus no tempo de Jesus e assim continuam pensando a maioria dos cristãos hoje. Ou seja, uma “visão distorcida” de Deus, leva a acreditar que tudo o que acontece é manifestação de sua vontade. Os males são considerados castigos e os bens são considerados prêmios.
Para entender a “novidade” da resposta de Jesus, é preciso saber que, na mentalidade judaica, a enfermidade e o mal, em geral, eram consequência do próprio pecado. A ausência do mal, pelo contrário, era considerada sinal da benção divina. Por isso, aqueles que sofriam qualquer calamidade ou enfermidade se convertiam automaticamente em objeto de juízo condenatório por parte dos outros; diante do olhar preconceituoso e julgador, eles se sentiam acuados por um angustiante sentimento de culpabilidade e desesperança. A desgraça os limitava; a culpabilidade os afundava.
Jesus se declara completamente contra essa maneira de pensar. Ele se distancia dessa ideia tradicional, desatando o nó “religioso” entre sofrimento e pecado, entre culpa e o mal. Para Jesus, a relação de Deus conosco se situa numa dimensão mais profunda. Devemos deixar de interpretar como atuação de Deus aquilo que é próprio das forças da natureza ou consequência da maldade e violência humana. Nenhuma desgraça que possa nos alcançar devemos atribui-la a um castigo de Deus.
Devemos romper com essa ideia de Deus, senhor ou patrão soberano que, a partir de fora nos vigia e exige seu tributo. De nada serve camuflá-la com estas sutilezas: “Pode ser que Deus não castigue nesta vida, mas castigará na outra vida”; “Deus nos castiga, mas é por amor e para salvar-nos”; “Deus castiga só os maus”; “Merecemos o castigo, mas Cristo, com sua morte, nos livrou dele”. Pensar que Deus nos trata à base de pancadas e prêmios, é ridicularizar a Deus e ao ser humano.
Somos tecidos pela culpa desde o nascimento; somos acompanhados por ela durante toda a vida. Ela nos prende facilmente em suas teias, impedindo a manifestação da força vital que há em nós. Sabemos que o sentimento de culpa pode ser paralisante, ameaçador, freio e obstáculo tanto para o desenvolvimento de uma comunidade humana quanto para o crescimento de uma pessoa; esta, centrada no próprio eu, fica “ruminando” seus limites e fracassos, caindo no desespero e não percebendo nenhuma saída para sua situação.
O sentimento de culpa causa sérios danos que acabam afundando existencialmente as pessoas: isso gera a irresponsabilidade que infantiliza, a passividade que leva ao fanatismo, a atrofia da criatividade, o medo paralisante, o sentimento de indignidade... Também a imagem do Deus Amoroso, do Deus vivo e prazeroso, do Deus livre e libertador, fica diminuída segundo o tamanho de nossa consciência e inconsciência, marcadas pela culpabilidade.
Por obra e força da culpa, “Deus” converte-se em “deus” de morte, em “deus” oprimido e opressor, em “deus onivigilante”, que investiga morbidamente nossa interioridade para captar e julgar qualquer desvio. A este “deus” nada escapa: ele vê tudo, escuta tudo, controla tudo... A mensagem alegre do Evangelho se perverte e a vivência cristã deixa-se invadir por um mal-estar difuso, uma tristeza, uma angústia, um pesar... que muitas vezes tornam difícil reconhecer no anúncio de Jesus uma mensagem da Boa Nova. “Assim como Deus nos libertou do pecado... torna-se urgente libertar Deus da culpa” (Dominguez Morano). Um “Deus de vida” nos foi revelado, mas nossa culpa o transformou num “Deus de morte”. “Libertar Deus da culpa” significa “deixar Deus ser Deus”, abrir espaço para que Ele manifeste sua presença providente e amorosa.
A atitude sadia, portanto, é a da responsabilidade, como sentimento maduro de quem entende a vida como “resposta” (essa é sua etimologia) coerente com as diferentes situações que se apresentam. É a responsabilidade que desperta pesar e dor nas ocasiões em que, afastando-nos da fidelidade ao melhor de nós mesmos, provocamos dano aos outros ou ao nosso meio. Mas esse pesar doloroso, diferente da culpabilidade, não paralisa nem afunda, senão que mobiliza para a mudança.
A consciência responsável, de modo especial, nos move para a cura, a reparação; ao longo da experiência, com a ajuda da Graça e em constante discernimento, poderemos experimentar a contrição que leva à mudança, à busca de alternativas melhores de comportamentos e atitudes, a assumir modos de agir que tornem possível uma vida mais plena e amorosa. Só quando tomamos consciência do dano feito é possível restaurar as condições que favoreçam logo um viver mais feliz e pleno.
É esta responsabilidade que podemos associá-la com a conversão, pedida pelo evangelho de hoje. Porque o “perecer” de que fala não deve ser entendido em chave de ameaça nem castigo, mas simplesmente como a consequência de uma atitude e um comportamento desajustados. “Se não vos converterdes, todos perecereis”. A expressão não traduz adequadamente o grego “metanoia”, que significa “mudar de mentalidade, ver a realidade a partir de outra perspectiva”.
Jesus não diz que aqueles que morreram nas duas tragédias não eram pecadores, mas que todos somos igualmente pecadores e precisamos mudar de rumo. Sem uma tomada de consciência de que o caminho que fazemos nos leva ao abismo, nunca estaremos motivados para evitar o desastre. Se somos nós que vamos caminhando para o abismo, só nós podemos mudar de rumo.
Todos devem assumir a responsabilidade de suas ações. Não somos marionetes nas mãos de Deus, mas pessoas, ou seja, seres autônomos que devemos assumir nossa responsabilidade. A melhor tradução seria: “se não aprendes, inclusive com os erros, perecerás”. Dizendo de um modo mais simples: se não somos responsáveis, se não respondemos humanamente aos diferentes desafios que a vida nos apresenta, estaremos fechando a saída, alimentando infelicidade para nós mesmos, tornando a convivência impossível e destruindo o planeta; ou seja, estamos provocando nosso próprio desastre.
Libertados do “círculo infernal da culpa”, agora sim, podemos aderir à novidade do Reino, na plenitude da alegria e da festa. Temos diante de nós a nobre missão de transformar a realidade em Reino, e isso não será possível enquanto vivermos aprisionados nas malhas da culpa; enquanto a lei, o pecado e a culpa nos enredarem, não será possível perceber a novidade do Reino, que conduz à própria liberdade e à dos outros, à própria aceitação de si mesmo e à aceitação e ao amor aos outros.
O “Deus de Jesus” é Aquele que nos descentra e nos lança à realidade, com toda a dureza que esta pode nos apresentar em muitos momentos de nossa existência; em lugar de solucionar os problemas, Ele prefere nos dinamizar para que nós mesmos trabalhemos na busca de soluções. Deus é a plenitude de todas as aspirações humanas. Não há porque temer o Deus de Jesus.
Texto bíblico: Lc 13,1-9
Na oração: Examinar com cuidado a origem dos sentimentos de culpa, pode produzir um grande avanço no caminho da saúde interior e espiritual. Esclarecer, desmascarar a culpa, pode ser muito libertador, pois fortalece nossa atitude esperançosa; nossa relação com Deus, com o mundo e com os outros revela-se mais transparente e otimista.
- Sua relação com Deus tem a marca da confiança amorosa ou está carregada de culpa paralisadora?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante” (Lc 9,29)
O evangelho deste domingo recorda a Transfiguração de Jesus no monte (o Tabor da vida), face a face, diante do Pai e diante de seus três amigos, revelando assim seu rosto diante de todos. Ele quer que o vejam, que todos o vejamos (com Moisés e Elias), descobrindo assim o rosto do “Deus invisível” no rosto dos homens e das mulheres, para compartilhar com eles(as) vida e conversação.
O evangelista Lucas insiste em centrar a atenção do rosto de Jesus, que “muda de aparência”, se ilumina e aparece como revelação de Deus. Neste tempo quaresmal, Jesus nos faz subir ao monte e se transfigura (se desnuda e se reveste de glória), para que descubramos seu rosto, para que o vejamos, o contemplemos, de forma que saibamos quem Ele é, e possamos dialogar com Ele, em admiração, beleza e compromisso de seguimento evangélico. Pois bem, esse rosto de Deus que se ilumina em Jesus sobre a montanha se estende e se encarna no rosto de cada ser humano, sobretudo dos mais pobres e excluídos.
Dessa forma, Jesus identifica a estética (beleza do rosto) com a ética: move-nos a descobrir Deus nos rostos dos outros, acolhê-Lo presente nestes rostos e dialogar com Ele; deixar-nos interpelar por cada um destes rostos (enfermo, encarcerado, estrangeiro, excluído...), pois eles são em Cristo (sobre o Tabor da história) a beleza e presença suprema de Deus.
É muito frequente na Bíblia a menção à Face de Deus para indicar a sua presença e o reconhecimento re-cíproco entre Ele e o ser humano. “É tua face, Senhor, que eu procuro, não me escondas tua face” (Sl. 27,8).
A face humana tem sempre muito a dizer; por isso, é preciso iluminá-la com a transparência da Face de Deus. E, assim, a face humana se tornará, cada vez mais, face divinizada. A revelação bíblica, ao afirmar que Deus se “fez rosto” e que o ser humano é imagem de Deus, privilegiou o rosto humano. No entanto, hoje, a “deformação do rosto de Deus” ameaça essa face humana, desprezada pela violência preconceituosa, pela intolerância e pelo anonimato das grandes cidades.
Daí a urgência de uma reflexão sobre o rosto que se abre à eternidade, ao inesgotável, e que nos conduzirá ao “Rosto dos rostos”, o de Deus “humanizado”, para permitir-nos decifrar nele a face humana e o ícone do ser humano divinizado. Além disso, todo rosto, por mais desgastado ou destruído que esteja, revela-se único e inimitável, para quem consegue ver com o olhar do coração.
Nós conhecemos os rostos, temos familiaridade com os rostos, aprendemos a colher as suas expressões e nelas ler o interior da pessoa. Na realidade, não vemos com os olhos, vemos com o nosso rosto. Dizendo de outro modo: o “olhar” não se encontra nos olhos, mas no rosto. Os olhos nada dizem, mas o rosto com que olhamos guarda um segredo. É o rosto que desvenda o mistério do olhar. O rosto da mãe revela à criança o segredo do seu olhar. E o rosto da criança revela à mãe o segredo do seu olhar.
A palavra é a linguagem dos pensamentos, o rosto a linguagem das emoções, uma linguagem universal, não ensinada e não aprendida em parte nenhuma, mas por todos compreendida. As emoções falam a mesma língua em todos os tempos e lugares. A face humana é carregada de sentido. Fala, sem utilizar palavras; diz, sem soltar a voz. De repente, a face humana apresenta-se, comparece inesperadamente.
A face humana é mistério. Ata e desata segredos. É presença. Está exposta a todos. É patente. Está aí. Pode ser vista, pode ser comentada, pode ser seguida.
As expressões do semblante, o olhar, a voz, o sorriso, é uma linguagem na linguagem, um dizer no dizer, um texto inconsciente, nascido das profundezas, que se insere no texto verbal consciente. Palavras e expressões do rosto andam juntas e se interpenetram. As expressões do rosto falam mais do que as palavras, porque manifestam inúmeros significados a partir da personalidade humana; elas completam, confirmam e por vezes contradizem o que é dito com palavras e revelam, muitas vezes melhor que as palavras, a veracidade da pessoa. Acrescentam um complemento inconsciente de cor e de verdade às palavras, às vezes absolutamente contra a vontade de quem fala. A sua espontaneidade imediata precede as intenções.
A linguagem do rosto vem do fundo. Falamos do “rosto interior”; nas suas expressões aflora o íntimo do indivíduo, o mundo dos seus estados de ânimo, os quais, sendo intrinsecamente não verbais, fogem à linguagem articulada. E é uma linguagem verdadeira porque as emoções não mentem. Na face humana, escondem-se mensagens intrigantes. A face expressa a identidade da pessoa; ela revela o universo humano, é cenário de certezas, de decisões, de dúvidas, de aspirações, de dramas, de temores, de arte...
Nesse sentido, a transfiguração revela outra realidade de Jesus e nossa; este “mistério” nos desvela e nos move a ultrapassar nossas “falsas imagens” e encontrar-nos com a luz que nos habita. Podemos “entrar” dentro de nós mesmos porque em nós está a dimensão de eternidade, de transparência, de divino.
A transparência é algo mais estável e faz referência à luz, à vida interior, ao conhecimento próprio, ao desejo de deixar-se ver, à pureza de intenção, à simplicidade e ao deixar-se conduzir pelo mesmo Espírito de Jesus. Tem a ver com a capacidade de conhecer-se a si mesmo e de comunicar aos outros a verdade de si mesmo, que se visibiliza no rosto iluminado.
Tomamos este conceito como aquela qualidade de uma pessoa que vive e se manifesta aos outros por atos e por palavras, de maneira que fica clara sua verdade, seu sentido de pertença à comunidade dos seguidores de Jesus e sua confiança nos demais membros da mesma comunidade.
Não basta contemplar rostos humanas; importa deixar-se interpelar por eles. É preciso ser perspicaz para ler e interpretar o sentido da face humana. Só quem é transparente, possui um olhar límpido para captar o “mistério” escondido no rosto do outro. Ao contemplar um rosto, o olhar chega ao coração humano, ali onde se encontra o sabor divino mais genuíno na vida da pessoa. E quando somos capazes de olhar em profundidade o rosto do outro, com simplicidade podemos encontrar no coração dele uma “imagem” de meu próprio coração. O olhar transfigurado deve ser portador do bom aroma que atrai ao encontro e à fraternidade.
Em nosso corpo, o “rosto” tem uma importância muito especial: através dele e de seu olhar, nos mostramos e somos percebidos e encontrados. O rosto, o olhar, dão ao nosso corpo sua beleza verdadeira, tão diferente da beleza postiça dos cosméticos, das joias e vestimentas. É a beleza de um rosto que nos leva para a transcendência, a santidade. Quem se unifica e se dilata encontra, sem buscá-lo, seu verdadeiro rosto, porque a beleza do rosto, é “epifania da pessoa”. O verdadeiro rosto nasce do coração, quando este se transfigura.
Texto bíblico: Lc 9,28-36
Na oração:
Deixe que o Espírito lhe conduza até onde seus medos não ousam chegar, dentro da luz, da verdade, e da vida plena.
- É dentro de uma luz mais clara que o seu verdadeiro
rosto se revela, se refazem todos os caminhos e se superam todos os conflitos.
- Coloque-se diante de tantos rostos humanos: faça um “percurso”, começando pelos rostos mais próximos e familiares; lentamente, vá ampliando sua visão acolhendo os rostos dos mais distantes, excluídos, rostos desfigurados, sofridos, rostos que sofrem preconceitos, julgamentos... Por detrás da aparência de cada rosto, capte a presença do “rosto divino”; entre em sintonia e comunhão com todos os rostos, constituindo o grande painel do rosto universal da humanidade. Em cada rosto humano, sinta ressoar a voz do Pai: “este é o meu(minha) filho(a), o(a) escolhido(a)”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Não só de pão vive o homem” (Lc 4,4)
Antes da Quaresma, carnaval...; o carnaval é o tempo dos disfarces, o tempo das máscaras, quando ninguém quer mostrar seu próprio rosto e cada um se esconde detrás de seu próprio disfarce. Às vezes, temos a impressão que é preciso sempre estar usando máscaras, trocando-as de acordo com as circunstâncias.
Somos os mesmos, mas disfarçados. Somos os mesmos, mas dissimulando nossa identidade e revestindo-nos de qualquer outro personagem. Debaixo da aparente segurança, pulsa um rosto temeroso; detrás de uma face risonha há uma expressão de dor.
Agora, quando se apagam os ecos do carnaval, é tempo de tirar as “maquiagens”. Começamos o tempo quaresmal, o tempo do “des-velamento” (tirar o véu, ou a máscara), tempo privilegiado para deixar transparecer nossa verdade mais profunda e nossa real identidade. Mas, o mais curioso é que a Quaresma começa também com um “disfarce”. Com as tentações, percebemos que elas não são outra coisa senão o disfarce do “demônio” para enganar e enredar Jesus. Se examinarmos bem qualquer das três tentações, nos daremos conta de que são “disfarces do mal” “sob a aparência de bem” (S. Inácio).
A tentação tem muito de sedutora e maliciosa; aí está precisamente sua força de atração. A tentação é uma sedução que atrai irresistivelmente nossa liberdade, exerce uma fascinação que nos deslumbra.
Acaso alguém quer o mal pelo mal? Acaso alguém quer afastar-se de Deus livre, voluntária e consciente-mente? A mentira reveste-se de algo que a esconda e a apresente como verdade.
A tentação necessita revestir-se do bem para que nós a aceitemos livremente. A tentação nunca apresenta o rosto descoberto. Sempre aparece escondida e disfarçada. E assim foram também as tentações de Jesus. Tratava-se de demonstrar que realmente era Filho de Deus; ou de fazer-se poderoso e dono do mundo; ou simplesmente demonstrar que nada lhe iria acontecer e que ganharia a admiração de todo o mundo se pulasse da parte mais alta do templo. Mas, onde está o verdadeiro “disfarce” das tentações de Jesus? Está justamente no fato de procurar justificá-las com a Palavra de Deus. Portanto, utilizar Deus como uma justificação e legitimação para alimentar o ego, para fazer-se o centro, para dominar... E esta é a pior tentação e o pior dos disfarces.
Os evangelhos sinóticos (Mc, Mt e Lc) colocam o relato das tentações de Jesus no início de sua atividade pública. Talvez, com isso, eles estão nos dizendo que, antes de começar o percurso quaresmal, é necessário confrontar-nos com nossos próprios “demônios interiores”.
Sem ter passado por aí, o mais provável é que comecemos a ver “demônios” nos outros, ou que estejamos à mercê dessas forças que permanecem ocultas, mas bem ativas, em nós, conduzindo-nos aonde não queríamos ir.
Os “demônios” dos quais o relato evangélico deste domingo fala são três e que caracterizam bem o nosso ego: o ter, o poder e a vaidade (aparentar). É neles onde o ego se entrincheira e onde se apega para sentir-se que é “algo”. Bens materiais e consumismo, poder e influência, imagem e prestígio: eis aí os interesses do ego. Então, é quando o instinto de viver se transforma em obsessão pela saúde e pela vida longa; o instinto de ter se transforma em cobiça de acumular sempre mais; o instinto de valer, em obsessão pelo prestígio e pelo poder. É a deriva do coração humano, a inversão de sua vocação mais profunda.
Se nos damos conta, o que se busca detrás deles, é uma mesma coisa: segurança. Precisamente por isso, a maneira de “desmascarar” esses “demônios” é reconhecer suas artimanhas e descobrir a falsidade de suas promessas.
O relato das tentações de Jesus não é “história” mas teologia; não é crônicas de um acontecimentos, mas as tentações são descaradamente reais. Empregando símbolos conhecidos por todos, os evangelhos nos querem fazer ver uma verdade espiritual fundamental: a vida humana se apresenta sempre situada entre dois movimentos internos opostos: um, de saída de si, de vida expansiva, aberta a todos, comprometida...; outro, de retração, de medo, de fechamento no próprio “ego”. Trata-se do “joio” e do “trigo”, presente nas raízes de nosso ser. A questão fundamental é esta: “qual dos dois dinamismos alimentamos em nossa vida?”.
Que as tentações sejam três, não é casual. Trata-se de uma síntese perfeita de todas as relações que o ser humano pode desenvolver. A tentação consiste em entrar numa relação equivocada conosco mesmo, com os outros e com Deus. Uma autêntica relação humana com os outros depende, queiramos ou não, de uma adequada relação conosco mesmo e com Deus.
1ª. tentação: “Se és Filho de Deus, manda que esta pedra se mude em pão”. A tentação permanente é deixar-nos levar pelos instintos, pelos apetites, pelas “afeições desordenadas”. Ou seja, fazer em todo momento o que o ego exige. É negar-nos continuar crescendo e superando a nós mesmos, porque isso exige descentrar-nos, sair do círculo fechado do “eu autossuficiente”.
Nossa grande tentação hoje é converter tudo em pão. Reduzir cada vez mais o horizonte de nossa vida à satisfação de nossas necessidades, viver obcecados por um bem-estar sempre maior ou fazer do consumismo indiscriminado e sem limites o ideal quase único de nossas vidas.
Estamos vendo claramente que uma sociedade que arrasta às pessoas para o consumismo sem limites e para a autossatisfação não faz outra coisa senão gerar o vazio e o sem-sentido nas pessoas e alimentar o egoísmo, a falta de solidariedade e a irresponsabilidade na convivência.
2ª. tentação: “Se te prostrares diante de mim em adoração, tudo isso será teu”. O poder, em qualquer de suas expressões, é a idolatria suprema. O poder traz sempre consigo a opressão, nunca é mediação de libertação. Adorar a Deus não significa incensar um “deus exterior”. Trata-se de descobrir o que de Deus há em nós e viver em sintonia com Ele. Nosso autêntico ser não está no ego aparente, mas no “eu profundo”. Se descobrimos nosso ser essencial, não nos importaremos esvaziar nosso falso eu e, em vez de buscar o domínio sobre o outros, buscaremos o serviço para com todos.
3ª. tentação: “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo”! Realizar um ato verdadeiramente espetacular, para que todos vejam o quão grande somos. Todos nos exaltarão e nossa soberba chegará ao limite.
A resposta é esta: que deixemos Deus ser Deus. Aceitemos nossa condição de criaturas e, a partir disso, alcancemos a verdadeira plenitude.
Que esse tempo quaresmal possa ser um tempo precioso para “afinar” nosso interior: sermos mais sensíveis à realidade que nos cerca, buscar nela as pegadas de Deus que nos conduzem ao encontro, e deixar-nos alcançar pela graça de um Pai que deseja para todos nós a felicidade e a alegria.
Texto bíblico: Lc 4,1-13
Na oração: Para chegar a teu verdadeiro ser, é preciso atravessar teu próprio deserto. Liberta-te de tudo que acreditas ser, para chegar ao que és de verdade. Somente em teu próprio deserto se desvelará o sentido verdadeiro de tua vida. Isso sim, impulsionado pelo Espírito.
Sozinho e no deserto, tens que tomar a decisão definitiva. A “terra prometida” já está aí, do outro lado de teu falso eu. Mantém-te em silêncio, até que se derrube o muro que te separa de ti mesmo: o muro do poder, da vaidade, da riqueza... Deixa que a luz, que já está em teu interior, te invada por completo. Serás feliz e farás felizes àqueles que vivem junto de ti.
- Como sermos fiéis seguidores(as) de Jesus se não somos conscientes das tentações mais perigosas que nos podem desviar hoje de seu projeto e estilo de vida? Desmascará-las e “dar nomes”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto...” (Mt 6,17)
Quaresma é tempo favorável para “ordenar a própria vida” na direção do sonho de Deus para toda a humanidade. Para que este processo de “ordenamento” aconteça, o tempo litúrgico quaresmal nos convida a “considerar” as nossas relações vitais: com Deus, com os outros, com o mundo e conosco mesmo.
No Evangelho fala-se das “práticas quaresmais” da oração, esmola e jejum, onde nossas relações são iluminadas e questionadas pelo modo de proceder de Jesus. Quê sentido tem, para nossa cultura, estes três gestos que são propostos para uma vivência fecunda da Quaresma?
Em primeiro lugar, são três gestos que nos humanizam e tornam a vida mais leve e com sentido; eles condensam o sentido da vida cristã. A vida é um abrir-se aos demais (esmola), um mergulhar no mistério de Deus (oração) e ser capaz de ordenar e dirigir a própria existência (jejum).
É preciso criar espaço novo no coração e na mente, para que coisas novas aconteçam. Vividos a partir da identificação com Jesus Cristo, os valores da oração, da esmola e do jejum esvaziam nosso “ego” para nos aproximar dos pobres e excluídos, encher-nos de compaixão e misericórdia, exercitar-nos na prática do bem e da bondade, acolher o outro com sinceridade, perdoar gratuitamente, cuidar com ternura e admiração tudo o que nos cerca, encantar-nos com o mistério da vida, deixar-nos envolver pela graça e permitir que o amor circule em nós e no mundo, gerando vida em abundância.
Trata-se de um “modo de proceder” permanente, não só para o tempo quaresmal.
Há “quaresmas” na vida que nos atingem “fora do tempo”, em qualquer momento do ano; quaresmas que não queríamos viver e que sabemos que não nos resta outra alternativa a não ser passar por elas: enfermidades, momentos de crise, etapas de ruptura, tempos de luto por um ente querido que se foi... Mas há quaresmas que são a vida mesma, o tempo cotidiano de muitas pessoas, especialmente dos mais empobrecidos e sofredores de nossa sociedade. Todas estas realidades não são mudas: fazem chegar seus gritos a cada um de nós e nos falam de nossa limitação, de nossa fragilidade, de nosso pecado...
Quando os fiéis entram na fila para receber, sobre suas cabeças, um pouco de cinzas, na quarta-feira que dá início à Quaresma, eles não estão fazendo um ato derrotista, nem expressando uma tristeza inútil, nem mergulhando na escuridão daquilo que o fogo destruiu. Eles estão fazendo uma profissão de fé na força da esperança. Mesmo que tudo pareça arruinado, há uma potência interior que não permite ao ser humano desistir de si mesmo nem dos outros. Ela recobra a energia do perdão, o ânimo para prosseguir no caminho da vida, a confiança nas pessoas, a amizade que ficou ameaçada.
Nossas cinzas tem um valor muito diferente segundo sua origem. A imagem de uma mulher abatida diante do incêndio de sua casa e que perdeu todos os seus pertences, não é igual à cinzas de uma chaminé da casa de campo. “Cinzas: de quê?” Essa é a questão. Nossas cinzas são uma recordação da fragilidade na qual nos movemos na vida: o que perdemos, desperdiçamos da vida que nos foi dada; o amor aos outros que queimamos inutilmente; a terra calcificada de nossas indiferenças e de nossas cumplicidades; os sonhos que não permitimos que chegassem a ser realidade, queimados pela chama da nossa intolerância; os bons desejos que deixamos à beira do caminho, destruídos lentamente pelos pavios fumegantes...
De tudo isso temos que nos revestir; isso é o que carregamos sobre nossas cabeças, que se inclinam com humildade, ante o gesto sagrado. A sorte que temos é que nos é anunciado também um caminho novo, abre-se diante de nós um caminho para percorrer, desperta-se o fogo novo do amor, ativa-se uma nova energia criativa, mobilizam-se inéditos recursos internos... para dar uma nova feição ao nosso seguimento de Jesus. Portanto, no sentido bíblico, a cinza é força, espírito, vida, projeto, síntese e realidade carregada de futuro. É esperança, é ressurreição; é renovação e conversão, de tudo o que é nosso e dos outros. É comunhão e renascimento. A cinza é purificação.
A finalidade da imposição das Cinzas e a vivência das práticas quaresmais (oração, jejum e esmola) é nos ajudar a fazer uma “travessia interior”. Não se trata de viver a Quaresma só retocando, com certa “maquiagem cristã”, o exterior de nossa vida. É preciso deixar que a Graça de Deus encontre liberdade para transitar pelos recantos mais “escondidos” do nosso eu profundo. “E o teu Pai, que vê o que está escondido, te dará a recompensa”. Nosso coração há de empapar-se desta Graça, desse afeto a Jesus e ao seu Reino, que nos conduzirá até à alegria da Páscoa.
Precisamos de tempos, silêncios, espaços..., para criar um ambiente favorável para o encontro verdadeiro com Aquele que sempre vem ao nosso encontro; é preciso sair do espaço cotidiano, rotineiro, para entrar em outro espaço, amplo, provocativo, surpreendente... e deixar-nos afetar pelas coisas de Deus.
Redescobrir o próprio lugar interior é sinal de maturidade e sabedoria de vida.
Esse lugar nada tem a ver com o êxito social, ou o reconhecimento dos outros. É um lugar interior, uma atitude de prontidão em ultrapassar todas as camadas exteriores de si mesmo e chegar à dimensão mais profunda, que nem sequer temos palavras para expressá-la. Um lugar no qual não importa nem o que os outros opinam a respeito de nós, nem sequer a ideia que fazemos de nós mesmos. Um espaço íntimo, lugar de serenidade e de intimidade, a partir do qual a Graça tem plena liberdade de atuar.
Esse lugar só se pode indicar como “o escondido”, onde aprendemos a decifrar a vida, onde temos acesso aos recursos e às riquezas mais nobres que desvelam nossa verdadeira identidade. Ali, “no escondido”, é onde devemos acudir para orar, para tornar possível a emergência do “Deus escondido” em nós e nas transformações de nossa vida. Um lugar onde não contam os reflexos e as imagens, mas a realidade primeira, a que fica desvelada a partir do coração, o nosso interior, o centro vital que somos e a partir do qual nos nutrimos e vivemos.
“Entrar em casa” expressa bem uma atitude de movimento de fora para dentro, da rua onde transitamos indiferentes para o lugar onde vivemos a “mística do encontro”. Além disso, “entrar no quarto” indica um sinal especial de intimidade recolhida: é ali, onde é preciso fechar a porta e esperar pacientemente “Aquele que mora no escondido”.
Trata-se de fazer a experiência de entrar no “escondido”, na gruta do Horeb, na fenda das rochas do Sinai, no interior da tenda do deserto, no coração e centro da vida... Ali é onde uma visão nova e diferente da vida é possível: a d’Aquele que vê no “escondido” e sabe derramar graças como uma medida sacudida e ampla: seu próprio Coração.
Precisamos reavivar nossas pobres práticas quaresmais: fazer do coração um espaço humilde e rico; de nossas mãos, carícia e ternura; de nossos pés, desejo de proximidade e comunhão, para ungir com o azeite e vinho de nossa fragilidade tantos feridos e quebrados que se encontram às margens de nossos caminhos.
Texto bíblico: Mt 6,1-6.16-18
Na oração: Orar é um exercício de ida ao centro, encontrar-se consigo mesmo na essência do ser, e ali encontrar-se com Aquele que é o mais íntimo: o próprio Deus.
Portanto, orar nunca foi e nem será obrigação, regra, norma, lei, mandamento, ou outra coisa qualquer que uma pessoa se sinta forçada a fazer. No dizer de S. Inácio: “orar é uma conversação entre amigos”. Orar é um exercício das pessoas que querem se encontrar, centralizar-se, para sempre agir a partir do seu centro, e não a partir de outros centros (opinião alheia, costumes, moda, meios de comunicação, conveniência, tradição, etc.). Orar é um exercício disponível àqueles que querem ter vida a partir de sua própria vida, junto com o Autor da vida, levando vida a todos.
- Qual é do seu estado de ânimo ao iniciar o percurso quaresmal?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração” (Lc 6,45)
A antropologia bíblica considera o coração como o interior do ser humano em um sentido muito mais amplo que o das línguas latinas, que evocam a vida afetiva, a sede dos sentimentos... O coração é o centro de nosso ser, o nosso cerne mais íntimo, o coração do coração, que consiste, sobretudo, no lugar do encontro com Deus.
“O sentido de nossa vida não é outro que a busca deste lugar do coração” (Olivier Clément). Ou seja, no centro de nós mesmos, unificando nosso ser, está o coração, o “cofre” onde se guarda/oculta o que é mais nobre em nós. Por isso Jesus dava tanta importância ao coração: “a boca fala daquilo que o coração está cheio” (Lc. 6,45); “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt. 5,8).
É no “coração” que as forças vitais se acham disponíveis para ajudar a pessoa a crescer dia-a-dia, tornando-a aquilo para o qual foi chamada a ser. Trata-se da dimensão mais verdadeira de si, a sede das decisões vitais, o lugar das riquezas pessoais, onde ela vive o melhor de si mesma, onde se encontram os dinamismos do seu crescimento, de onde partem as suas aspirações e desejos fundamentais, onde percebe as dimensões do Absoluto e do Infinito da sua vida.
O coração do ser humano é a própria fonte de sua personalidade consciente, inteligente e livre. É o lugar de suas escolhas decisivas, da lei não escrita e da ação misteriosa de Deus. Trata-se do centro existencial que permite à pessoa orientar-se como um todo e plenamente em direção a Deus e ao bem. No coração está gravada a imagem divina oculta, “o homem de coração oculto” (1Pd. 3,4). S. Serafim de Sarov o denomina “o altar de Deus”.
Aqueles que descem às profundidades do seu interior ficam fascinados pelo esplendor daquilo que contemplam. O coração de cada um está habitado de sonhos de vida, de futuro, de projetos; aqui, todo ser humano sente-se seduzido pelo que é verdadeiro, bom e belo; busca ardentemente a pacificação, a unificação interior, a harmonia com tudo e com todos...; sente ressoar o chamado da verdade, o magnetismo do amor, da plenitude; sente-se atraído por um desejo irreprimível de autotranscedência...
Por ser livre e responsável, o ser humano é capaz de decisões e de realizações, de ser artífice de seu destino e de sua história. Ele sente por dentro o impulso para a expansão de si; ele escuta por dentro o chamado a viver e a viver em plenitude. Nesse sentido, o “coração” é, de nossa parte, o espaço divino por excelência. “Só o amor pode adentrar-se no Deus que é amor”. Assim, a descoberta do próprio ser profundo aproxima cada um do autor da vida: Deus.
É no coração, “última solidão do ser”, que a pessoa se decide por Deus e a Ele adere. Aqui Deus marca “encontro” com cada um. “Deus é mais íntimo a cada um de nós do que nós mesmos” (S. Agostinho). Chegar ao lugar do coração é dom de Deus: “Eu lhes darei um coração para conhecer-me; saberão que eu sou o senhor. Eles serão meu povo e eu serei seu Deus; eles se converterão a mim com todo seu coração” (Jer. 24,7). Eis o “lugar” onde poderemos estar em segurança, profundamente repousados.
Um coração que vibra harmoniosamente, de modo coerente, “com ondas de frequência elevada”, nos permite perceber a realidade de um modo igualmente harmonioso; sua energia radiante, transmissora de paz, de quietude, de confiança, de abertura, alcança os outros, tornando possível o sonho da unidade entre nós e aqueles que estão ao nosso redor.
Para os antigos monges, o contrário desta abertura de coração é a “sklerokardia”, ou seja, a “dureza de coração”, que impede a entrada em si mesmo e o encontro com os outros e com Deus. O coração pode palpitar ao ritmo da soberba ou da humildade, do amor ou do ódio, do egoísmo ou da generosidade. E está cheio de mesclas: de trigo e de joio.
Quando nosso coração está “fechado”, nossos olhos não veem, nossos ouvidos não ouvem, nossos braços e pés se atrofiam e não se movimentam em direção ao outro; vivemos voltados sobre nós mesmos, insensíveis à admiração e à ação de graças. Quando nosso coração está “fechado”, em nossa vida não há mais compaixão e passamos a viver indiferentes à violência e injustiça que destroem a felicidade de tantas pessoas. Vivemos separados da vida, desconectados. Uma fronteira invisível nos separa do Espírito de Deus que tudo dinamiza e inspira; é impossível sentir a vida como Jesus sentia.
A viagem para a própria interioridade, para a terra sagrada do coração, necessita de um hábil discernimento para conhecer as armadilhas e os “inimigos” que aparecem ao longo do percurso.
Quando, numa visão mais profunda de nós mesmos e do mundo, nos vemos como criaturas que surgem do amor de Deus, e quando essa visão é fruto de uma vivência interior e transbordante, começa a brotar no coração humano um movimento de unificação para Deus. Esse movimento é feito de confiança, de canto, de amor, de entrega, de serviço...
Por ser imagem de Deus, e porque “Deus é Amor”, o coração do ser humano é capaz do melhor: tem dada por Deus como dom da Criação, a potencialidade de amar aos outros com o mesmo amor com que Deus lhe ama, ou seja, com um amor gratuito e generoso. Mas, por ser uma imagem ofuscada pela limitação e pela fragilidade, o coração humano é também capaz do pior: de negar sua origem e sair ao encontro com a realidade a partir de suas potencialidades necrófilas (forças de morte); de viver dando as costas a Deus e distorcendo a imagem essencial de seu Criador; de se preocupar com o “cisco” no olho do outro, assumindo atitudes intolerantes e julgadoras...
Quando nosso coração está centrado em Deus, ou seja, quando ele se percebe que vem d’Ele, vive para Ele e para Ele retorna, tudo está em seu lugar, tudo vai bem. É “árvore boa que dá bons frutos”. As “coisas” não são obstáculos, e as pessoas muito menos. Nem sequer o nosso próprio e ambíguo “eu” é tentação.
Até nossos instintos mais primários ficam integrados nessa corrente de amor recebido e amor entregue. Mas quando se produz um descentramento do coração, dá-se um corte com a Fonte e, portanto, com seu destino; quando o coração é presa do “diá-bolos” (aquele que desune, que divide), então tudo começa a desandar: o “eu” inflado se converte num depredador; os instintos básicos se transformam em obsessões; a vida fica fragmentada e dispersa. Tudo se petrifica. O coração torna-se “oxidado”, pois seus impulsos oblativos não são ativados. “Não se colhem figos de espinheiros, nem uvas de plantas espinhosas”. É a deriva do coração humano, a inversão de sua vocação mais profunda.
Faz-se urgente reconectar-se com a Fonte, onde o coração é continuamente gerado, sustentado, alimentado pelo amor de Deus que o irriga, que o restaura. O coração profundo pode estar desprezado, adormecido, fechado, mas não pode morrer.
Texto bíblico: Lc 6,39-45
Na oração: A oração é o caminho interior que faz você chegar até o seu próprio “eu original”, aquele lugar santo, intocável, onde reside não só o lado mais positivo de você mesmo, mas o próprio Deus. Este é o nível da graça, da gratuidade, da abundância, onde você é chamado a mergulhar no silêncio, à escuta de todo o seu ser.
- Nas profundezas do seu coração, acolha, escute e reconheça o murmúrio da voz de Deus, que, como um rio calmo e ao mesmo tempo vivaz, o(a) acompanha, da nascente ao mar aberto.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso” (Lc. 6,36)
Tornar presente o Pai como Amor e Misericórdia foi, para Jesus, o cerne de sua missão: toda a sua vida foi uma eloquente demonstração da misericórdia divina para com a humanidade. Jesus, que encarna e torna visível no mundo a misericórdia do Pai, se faz também misericordioso. Anuncia aos pecadores que eles não estão excluídos do amor do Pai, mas que Ele os ama com infinita ternura. O Evangelho só aparece como Boa-Nova se compreendermos esta novidade introduzida por Jesus. Ele, em sua presença misericordiosa, revela um Deus desprovido de dogmatismos, de controle e de poder. O Deus de Jesus não é um juiz com um catálogo de leis que tem necessidade de mandar, controlar, verificar; o seu Deus é o Deus da misericórdia, da bondade sem limites e da paciência para com todos.
Jesus propõe um modo de ser humano inseparável da misericórdia do Pai:
“Sede misericordiosos como o Pai é misericordioso” (Lc. 6,36)
Ser misericordioso “como” Deus constitui o mais elevado convite e a mensagem mais profunda que o ser humano recebe sobre como tratar a si mesmo e aos outros. Deus, em sua misericórdia reconstrutora, libera em nós as melhores possibilidades, riquezas escondidas, capacidades, intuições... e nos faz descobrir em nós, nossa verdade mais verdadeira de pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis... É ele que “cava” no nosso coração o espaço amplo e profundo para nos comunicar a sua própria misericórdia. A força criativa do seu amor misericordioso põe em movimento os grandes dinamismos de nossa vida; debaixo do modo paralisado e petrificado de viver, existe uma possibilidade de vida nova nunca ativada.
A experiência de misericórdia gera em nós uma atitude correspondente de misericórdia. O Deus misericordioso cria em nós um coração novo, feito de acordo com o Seu, capaz de misericórdia (“bem-aventurados os misericordiosos porque alcançarão misericórdia”). É exatamente este o maior sinal da sua Misericórdia: ama-nos a ponto de enviar-nos ao mundo como instrumentos de Sua reconciliação, pondo em nosso coração um Amor que vai além da justiça.
A misericórdia é não só o atributo primeiro de Deus, mas também a mais humana das virtudes. É aquela que melhor revela a natureza do Deus Pai e Mãe de infinita bondade. É a que revela igualmente o lado mais luminoso da natureza humana. Por isso é a que mais humaniza as relações entre as pessoas.
A misericórdia presente em nós é modelada e alimentada pela Misericórdia divina, que se visibiliza no perdão, na compaixão, no consolo, na ternura, no cuidado... Nossa atitude misericordiosa nos configura à imagem do Deus misericordioso. É onde somos mais semelhantes a Ele. A misericórdia como estilo-de-vida cristã nos descentra de nós mesmos e nos faz descer em direção ao outro, numa atitude de pura gratuidade. A vivência da misericórdia nos torna realmente livres, e isso nos proporciona profunda alegria interior.
Uma misericórdia superabundante, generosa... é gesto gratuito e positivo de encontro, de acolhida, de cordialidade, que se torna hábito de vida: ser “presença misericordiosa”. A espiritualidade da misericórdia contém em si a gratuidade do relacionamento, a dimensão desinteressada da doação. É a partir da misericórdia que a pessoa é capaz de amar os inimigos, de fazer o bem aos que a odeiam, de bendizer os que a amaldiçoam, de oferecer a outra face, de emprestar sem esperar recompensa, de perdoar sem limites...
A misericórdia é humilde e não humilha, porque é discreta e silenciosa. Ser presença misericordiosa não significa pôr o outro de joelhos para que reconheça seus erros; ela nasce de um coração “educado” pela Misericórdia divina e se manifesta externamente com uma atitude mansa e condescendente. Essa Misericórdia é uma força poderosa, não se rende diante do mal, porque é sempre capaz de redes-cobrir o bem ou de salvar a intenção do próximo, de abrir-lhe novamente a esperança...
Entrar no movimento da misericórdia humaniza e cristifica essencialmente a pessoa, porque a misericórdia constitui “a estrutura fundamental do humano e do cristão”. Fundamentalmente, a misericórdia significa assumir como própria a miséria do outro, inicialmente como sentimento que comove, mas que, logo em seguida, leva à ação. Ela brota das “entranhas” e se dirige instintivamente ao próximo na forma de proximidade, acolhida e compaixão.
Misericórdia é exatamente: “ter coração” para o outro, dando preferência aos pequenos e pobres.
A misericórdia é a caridade que “toma mãos e pés”, ou seja, o amor que se expressa em uma ação decidida e generosa, capaz de transformar e libertar. Em hebraico, a palavra “misericórdia” – “rahamim”, significa ter entranhas como uma mãe. É comover-se diante da situação de fragilidade do outro; é sentir-se intimamente afetado e, por isso, com a disposição de ser magnânimo, clemente e benevolente para com ele. A misericórdia recebida e experimentada é a base da atitude compassiva, não como ato ocasional mas como estilo de vida evangélico. Torna-se o fundamento e a perene inspiração de uma existência de par-tilha e solidariedade.
Ser presença misericordiosa é um “modo de proceder”, um “estilo de vida” que não está ligado a uma transgressão; é muito mais um estilo de bondade, compreensão, magnanimidade, estilo de quem não se fixa no que o outro merece nem se escandaliza com sua miséria. "Devemos ser presença misericordiosa como pecadores, e não como justos”.
A misericórdia é fundamentalmente uma mensagem de estima e confiança no outro, crer na sua amabilidade. Por isso, a presença misericordiosa é força que provoca no outro a re-descoberta de sua própria identidade (uma pessoa amada e acolhida pelo Deus misericordioso) e ao mesmo tempo desata nele as ricas possibilidades de vida que estavam latentes.
Quem é misericordioso está convencido de que o irmão é melhor que aquilo que aparenta ser. A misericórdia é expansiva, ela abre um novo futuro e ativa os melhores recursos no interior de cada um. Ela não se limita ao erro, mas impulsiona o outro a ir além de si mesmo.
Onde não há misericórdia, não há sequer esperança para o ser humano.
Textos bíblicos: Lc 6,27-38
Na oração:
- Pedir maior consciência do Amor Misericordioso do Pai por você; que você possa deixar-se surpreender pelo Amor criativo do Deus Pai/Mãe... e participar em sua festa de reconciliação.
- Ao mesmo tempo, pedir um coração “desarmado”, pronto a re-criar (perdoar é re-criar, é dar oportunidade para alguém viver de novo).
- Entrar no “fluxo” da misericórdia divina: ser canal por onde ela circula para chegar até os outros.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“E, levantando os olhos para os seus discípulos, disse: ‘bem-aventurados vós...” (Lc 6,20)
“Ser feliz”: não há outra meta mais importante na vida de todos nós. De fato, é tão importante que se converteu em um desejo que repetimos de maneira muito frequente e, de forma especial, para as pessoas que mais amamos. Proferimos os votos de felicidade em qualquer evento, em todos os aniversários, no início de cada ano... Não podemos desprezar o excesso de nossas felicitações, por mais rotineiras que nos pareçam. Elas expressam um desejo profundo, talvez o desejo mais íntimo de nós mesmos.
“Que sejas feliz!” Que melhor sentimento que isso podemos desejar a alguém, seja ele(ela) quem for?
A proposta evangélica de felicidade tem algo a nos dizer em nosso momento atual?
A impressão que temos é que a vivência de muitos cristãos está longe de apresentar a Deus como amigo da felicidade humana, fonte de vida, alegria, saúde; na experiência de fé de muitas pessoas, o seguimento de Jesus, muitas vezes, não se associa com a ideia de “felicidade”. Predomina, em certos ambientes ou grupos cristãos, uma doutrina dolorida e uma catequese afastada da busca humana da felicidade. O cristianismo se apresentou, durante muito tempo, como a religião da cruz, da dor, do sofrimento, da renúncia, da repressão ao prazer e à felicidade neste mundo.
Diante de tal situação, Jesus, no Evangelho de hoje, afirma categoricamente: “Felizes sois vós!”. Jesus, ao “descer à planície”, promulga seu programa “com” vida, fundado não numa ética de “deveres e obrigações”, mas numa ética de “felicidade e ventura”. Aqui está a surpreendente novidade do projeto oferecido por Jesus. Sem sombra de dúvida, o significado das bem-aventuranças e, portanto, do programa de Jesus, é algo mais humano, mais próximo e mais ao alcance de ser entendido e vivido por qualquer pessoa de boa vontade.
O Evangelho, a “boa notícia”, é o tesouro que enche o ser humano de uma felicidade indescritível. Com efeito, a primeira característica que aparece nas bem-aventuranças é que o programa de Jesus para os seus é um programa de felicidade”. Cada afirmação de Jesus começa com a palavra “makárioi”, “ditosos”. Essa palavra, significa, em grego, a condição de quem está livre de preocupações e atribulações cotidianas.
As bem-aventuranças substituem os mandamentos que proíbem por um anúncio que atrai para a felicidade. E a promessa de felicidade não é para depois da morte. Jesus fala da felicidade nesta vida.
Conhecemos duas listas de Bem-aventuranças: a de Lucas e a de Mateus. São bastante distintas, porque uma fala dos pobres e a outra fala dos pobres “em espírito”; uma fala de fome e outra de fome de “justiça”... Costuma-se dizer que as Bem-aventuranças de Lucas são bem-aventuranças “de situação”, e as de Mateus são “de atitude”. Ou seja, enquanto Lucas diz: os que se encontram assim, os que estão nesta situação, são bem-aventurados (os que estão chorando, os que tem fome, os que são pobres...), Mateus diz: os que reagem desta maneira diante dos que choram, dos que são pobres, dos que tem fome... são bem-aventurados. É como a atitude que se toma frente aqueles que Lucas descreveu.
Antes de proclamá-las, Jesus vive intensamente as bem-aventuranças; elas são a expressão daquilo que é mais humano no seu interior; elas são seu auto-retrato. Jesus é o bem-aventurado. Ele personaliza tais atitudes: é o pobre, aquele que se comoveu diante da dor e misérias humanas, que expressa uma fome e sede de plenitude e humanização, que é incompreendido e perseguido por causa dos seus sonhos.
O Jesus que os Evangelhos nos apresentam deixa transparecer, permanentemente, um sentimento sereno e agradecido diante da vida. Ele vive apaixonado pelo Reino do Pai; Ele é um homem aberto e próximo das pessoas, com uma enorme capacidade de relação, de maneira especial diante dos mais pobres e excluídos. Mostra uma infinita confiança nas pessoas que encontra, seja qual for sua situação existencial. Ele é o portador definitivo de boas notícias. O evangelho da salvação chega até às barreiras e fronteiras humanas. Seu tempo é tempo de alegria; é a festa das bodas. Jesus nos convida a entrar na nova vida de felicidade e fraternidade. As bem-aventuranças são o caminho da felicidade.
Jesus, ao proclamar “bem-aventurados” os pobres, os famintos, os que choram, os que são perseguidos... jamais quis sacralizar a dor humana. Ao contrário, são bem-aventurados, sim, os pobres, porque, vazios de apegos e cheios de esperança, anunciam o sonho de Deus para a humanidade, uma nova sociedade baseada na solidariedade e na partilha; são bem-aventurados, sim, os famintos, porque trazem nas entranhas a fome de liberdade e sabem que o ser humano e o mundo carregam infinitas possibilidades de crescimento; são bem-aventurados, sim, os que choram porque suas lágrimas demonstram que eles ainda não perderam a sensibilidade, que eles sentem o mundo como injusto e que, por isso, são verdadeiramente os únicos a sonharem, a buscarem e a lutarem por um mundo novo; são bem-aventurados, sim, os que são perseguidos porque seguem corajosamente a estrela do Reino e são sinal de grande transformação realizada por Deus.
As bem-aventuranças nos revelam que somos habitados por um impulso que nos torna “buscadores de felicidade”. A sociedade de consumo que invadiu tudo, realça a felicidade como a meta imediata de nossas buscas, algo ao qual temos direito e que depende de fatores externos. Esta felicidade é passageira, pois quando a alcançamos, invade de novo a insatisfação, a inquietude, o ressentimento, a inveja... e de novo empreendemos nossa busca. Assim, pois, a felicidade nos escapa quando a buscamos “fora”, como fim em si mesma, para saciar nosso ego insaciável.
A felicidade nasce dentro de nós: daquilo que sentimos, que valorizamos, que vivemos... Por isso, as bem-aventuranças não são algo externo, mas atitudes que plenificam nossos corações. A chave da felicidade está em permitir que se revele o sentido da luminosidade que se encontra no fundo de nosso ser. O que nos tira a energia e nos torna impotentes é afastar-nos desse princípio vital que é o Divino em cada ser.
Ser o que somos, em serenidade e profundo sentido. A felicidade, tal como a verdade e a beleza, ao se revelar a nós, desata a potencialidade daquilo que somos e de tudo o que é. Nesse sentido, felicidade pode ser entendida como um “estado de espírito”; felicidade é viver sem chegada, sem partida; é experimentar uma sensação de renascimento de satisfação interior... ou sentir despertar em si um potencial de bondade, de compaixão, de solidariedade...muitas vezes desconhecida.
A verdadeira felicidade coincide com a paz interior; é o prazer de descobrir, cada dia, que a vida se inicia novamente em cada amanhecer; é fazer da mesma vida uma grande aventura... Por isso, a felicidade está relacionada com a gratuidade e com a gratidão.
Texto bíblico: Lc. 6,17.20-26
Na oração: “empalavrar” (pôr em palavras) as bem-aventuranças que brotam do seu coração, aquelas que lhe inspiram e dão sentido à sua existência, como seguidor(a) de Jesus.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
“Avança para águas mais profundas, e lançai vossas redes...” (Lc 5,4)
Indiscutivelmente, Jesus é o misterioso visitante que cada dia chega até nós para advertir que precisamos nos libertar do tedioso cotidiano, quando ele se torna convencional e, não raro, carregado de desencanto, pesado, estressante... Corremos o risco de sermos apenas imitadores ou repetidores, pois tememos nos perder na busca do novo, bloqueando o desenvolvimento pessoal e comunitário.
O encontro com Jesus nos arranca da rotina, do “sempre fizemos assim” e nos desafia a “pescar” de maneira diferente; sua presença alarga nossa mente e nosso coração instigando-nos a sair dos nossos estreitos mares e entrar no movimento do vasto mar que Ele nos oferece.
Em quê grau Sua presença nos desperta para aquilo que devemos ser como seus(suas) seguidores(as)? São grandes os riscos de vivermos em mares tão estreitos; é cômodo perceber, delimitar, defender e fechar-nos no próprio mar. Isso fazemos de maneira tão zelosa que nem vemos aquilo que está para além da margem onde nos estabilizamos.
Tal estreiteza de vida aprisiona a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O próprio espaço se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador de tudo aquilo que se faz.
Hoje, o lago de Tiberíades se converteu numa grande rede que abarca o mundo inteiro. Mas, o que as pessoas buscam nessa grande rede? E, sobretudo, o quê estamos oferecendo nela para evangelizar?
Com um só click podemos chegar a milhões de pessoas, podemos fazer muito bem, mas também podemos criar muita confusão e inclusive repulsa, podemos levar a mensagem de Jesus ou simplesmente fazer transparecer todo o nosso ego inflado, cheio de si mesmo. As redes sociais têm seus perigos, mas também tem suas grandes oportunidades que não podemos desperdiçar. Vamos nos dando conta que, enquanto não evangelizemos a partir dos meios eletrônicos modernos, não poderemos encher nossas redes de peixes. O seguimento de Jesus implica hoje a necessidade de evangelizadores nas redes sociais.
Tendo as ferramentas em mãos (nossas pobres barcas e redes) e sendo portadores de uma mensagem de vida (o evangelho) somos movidos por Jesus a “ser pescadores do humano”. No mar das redes sociais ressoa mais uma vez o apelo de Jesus: “fazei-vos pescadores do humano”. Frente a esta nova realidade, quê tipo de profecia responde melhor a nossa peculiar forma de cooperar na missão do Espírito do Abbá e de Jesus.
Estamos no mundo das telas: através delas nos interconectamos, transmitimos informações, saberes. As diversas telas tendem à convergência: com um só dispositivo, fixo ou móvel, podemos falar, enviar e receber fotos, música, vídeos e qualquer tipo de arquivo; com o “boom” das redes sociais podemos fazer isso com o grupo que elegemos em cada momento.
Se há algo que caracteriza nosso tempo é a nova consciência de ser rede-comunhão-interconexão-unidade. Encontramo-nos em um tempo surpreendente: as espetaculares inovações tecnológicas nos convidam a entrar numa inimaginável rede de informações, imagens, conexões... Nosso planeta está dotado de uma complexíssima textura de comunicações. Com apenas alguns clics oferece-se, diante de nós, um mundo complexo, de graça e maldade, de alianças para o bem e para o mal, de luzes e trevas.
E aí estamos nós, seguidores(as) de Jesus, “em-redados(as)”, nos perguntando por nossa identidade cristã, na vivência do Evangelho e na missão de nos fazer presentes neste “novo mundo”. Todos já sabemos que tudo está interconectado: a globalidade é interação. Lentamente vai-se tomando consciência de que formamos parte de um todo. A realidade vai se revelando como um manto sem costuras, sem fraturas, onde todos estamos implicados e comprometidos.
“Rema mar adentro!”, ressoa a voz de Jesus. A multidão permanece em terra; somente Pedro e seus companheiros se adentram no mar profundo. Este apelo de Jesus é muito simbólico. Em grego “bados” e em latim “altum” significam profundidade (alto mar); só nas profundezas é que se pode extrair o mais autêntico do ser humano, o que é mais nobre e divino.
Tudo o que, em vão, buscamos na superfície, está dentro de nós. Mas, ir mar adentro não é tão fácil como pode parecer. Exige ultrapassar as seguranças do “eu superficial” e adentrar-nos nas incontroladas águas de nosso ser profundo. Confiar naquilo que não controlamos exige uma fé-confiança autêntica. Dizia Teilhard de Chardin: “Quando descia ao profundo de meu ser, chegou um momento em que não ‘dava mais pé’ e parecia que me deslizaba para o vazio”.
O mar era o símbolo das forças do mal. “Pescar homens” era um dito popular que significava tirar alguém de um perigo grave. Não quer dizer, como se entendeu com frequência, fazer proselitismo ou converter as pessoas à força para a religião cristã. Aqui quer dizer: ajudar as pessoas a sair de todas as opressões que lhe impedem crescer e desenvolver suas potencialidades. Só pode ajudar o outro a sair da influência do mal aquele que encontrou o que é mais verdadeiro e nobre dentro de si mesmo.
Neste contexto atual, onde corremos o risco de nos converter em pessoas “grudadas” a uma tela, se faz mais necessário que nunca humanizar a rede para “pescar o humano” que está escondido no oceano interior de cada um. Esta humanização requer, em primeiro lugar, muita responsabilidade.
Tudo isto nos leva a pensar que na rede há uma grande necessidade de silêncio (“silêncio na rede”), precisamente para que possamos ouvir a verdade com amor. Há excessivas palavras que afogam, notícias falsas, “bullings”, campanhas desqualificadoras e comentários feitos com extrema má educação. Sobretudo nas páginas religiosas, precisamos de um silêncio construtivo para que se escute a verdade que liberta.
Silêncio construtivo significa utilizar uma linguagem propositiva, compreensiva, que estenda pontes de diálogo, que escute o outro que é diferente, que leve em conta o que “o outro” diz, talvez um aspecto da realidade que nos tinha escapado.
Silêncio construtivo significa tomar partido pelos mais fracos e excluídos; significa usar uma linguagem que sare as feridas, que reconstrua os vínculos quebrados. Uma página (mensagem) que só busca condenar, que só revela intolerância e preconceito, não pode ser evangélica. Literalmente, “há demasiado disparos” que desumanizam. Precisamos do azeito do consolo que cura as feridas, o vinho da esperança que nos une como irmãos acima das diferenças, o pão da compaixão que alimenta e eleva ...
É preciso fazer a “travessia” do estreito mar de nossa vida, onde nossas inúteis barcas e redes só “pescam” futilidades e lixo, para o grande oceano que Jesus nos oferece, carregado de vida e vida em plenitude.
Texto bíblico: Lc 5,1-11
Na oração: “Rema mar adentro e desce ao profundo de teu ter!” É um convite dirigido a todo ser humano. Sem essa profundidade, não é possível a plenitude humana. A contemplação é o único caminho.
“Não é necessário que percorras os mares buscando alimento; aprende a pescar em teu próprio mar interior; o que com tanto afinco buscas fora de ti, já tens ao alcance da mão, dentro de ti. Se não tens pescado nada, quê poderás oferecer aos outros? Se não tens aprendido a pescar, como poderás ensinar a outros? Dá verdadeiro sentido à tua vida e ajudarás os outros a atingir o mesmo”. (cf. Fray Marcos)
Pe. Adroaldo Palaoro sj
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