«Não precisamos de mais nada a não ser um espírito vigilante.» Este apotegma do abade Poemen, um Padre do Deserto, exprime bem o caráter essencial que reveste a vigilância na vida espiritual cristã.
O Novo Testamento opõe a vigilância ao estado de ebriedade e ao da sonolência; define-a como a sobriedade e a atitude de ter os olhos abertos daquele que tem um propósito preciso a atingir e do qual se poderia distrair se não fosse, precisamente, vigilante.
Dado que o propósito a perseguir, para um cristão, é a relação com Deus através de Jesus, a vigilância cristã está totalmente em relação com a pessoa de Cristo, que veio e que virá.
Basílio de Cesareia termina as suas "Regras morais" afirmando que a «especificidade» do cristão apoia-se na vigilância ligada à pessoa de Cristo: «O que é próprio do cristão? É vigiar a toda a hora do dia e da noite e de permanecer pronto na perfeição que agrada a Deus, porque sabe que o Senhor vem à hora que ele não espera».
A insistência sobre a dimensão temporal, neste texto, não é obra do acaso. O vigilante é arquétipo do profeta, aquele que procura traduzir o olhar e a Palavra de Deus no hoje do tempo e da história.
A vigilância é, por isso, lucidez interior, inteligência, capacidade crítica, presença na história, não distração e não dissipação. Unificado pela escuta da Palavra de Deus, interiormente atento às suas exigências, o homem vigilante torna-se responsável, ou seja, radicalmente não indiferente, consciente de tomar cuidado de tudo e, em particular, capaz de vigiar sobre os outros homens e de os guardar.
«Ser "episcopus", bispo», escreve Lutero, «significa olhar, ser vigilante, vigiar atentamente.» A vigilância é por isso uma qualidade que exige grande força interior e produz um equilíbrio: trata-se se pôr em prática a vigilância não somente sobre a história e sobre os outros, mas também sobre si, sobre o seu próprio ministério, sobre o seu próprio trabalho, sobre a sua própria conduta, em suma, sobre toda a esfera das relações que se vive. De modo que sobre tudo reine o senhoria de Cristo.
A dificuldade da vigilância consiste precisamente no fato de que é sobre si, antes de tudo, que é preciso vigiar: o inimigo do cristão está nele próprio, não fora dele. Tende cuidado convosco e velai: que os vossos corações não se tornem pesados com a devassidão, a embriaguez e as preocupações da vida, diz Jesus (cf. 21, 34.36).
A vigilância exige o preço de uma luta contra si próprio: o vigilante é o resistente, aquele que combate para defender a própria vida interior, para não se deixar levar pelas seduções mundanas, para não se deixar vencer pelas angústias da existência; em suma, para unificar fé e vida e para se manter em equilíbrio e em harmonia.
O vigilante é aquele que adere à realidade e não se refugia na imaginação, na idolatria, que trabalha e não cai na preguiça, que se coloca em relação, que ama e não é indiferente, que assume com responsabilidade o seu compromisso na história e vive-o na espera no Reino que virá. A vigilância é, portanto, a fonte da qualidade da vida e das relações e está ao serviço da plenitude da vida; ela combate as seduções que a morte exerce sobre o homem.
Paulo adverte os cristãos de Tessalonica com estas palavras: «Não durmamos, pois, como os outros, mas vigiemos e sejamos sóbrios» (1 Tessalonicenses 5, 6). Na simbólica bíblica, mas também noutras culturas, cair no sono significa entrar no domínio da morte.
Vigiar, por seu lado, é uma atitude própria do homem atento e responsável, mas adquire uma significação particular para o cristão que coloca a sua fé em Cristo morto e ressuscitado. A vigilância é assumir, de maneira íntima e profunda, a fé na vitória da vida sobre a morte.
Desta forma, o vigilante opõe-se ao homem adormecido e embrutecido que amacia os seus sentidos interiores, que permanece na superfície das coisas e das relações; ele torna-se também um homem de luz, capaz de irradiar a luz.
«Iluminados» pela imersão batismal, os cristãos são «filhos da luz» chamados a iluminar: «Que a vossa luz brilhe diante dos homens, a fim de que eles vejam as vossas belas obras e glorifiquem o vosso Pai que está nos Céus» (Mateus 5, 16).
Não se trata de exibicionismo espiritual, mas sobretudo do efeito transbordante da luz que, permanecendo num coração vigilante, não pode ficar escondida, mas emerge por ela própria e se difunde.
Em certo sentido, a vigilância é a única coisa absolutamente essencial ao cristão: ela é a matriz de toda a virtude, ela é o selo de toda a ação, a luz dos seus pensamentos e das suas palavras. Sem ela, todo o agir do cristão arrisca-se a ser pura perda. O abade Arsénio diz: «Todo o homem deve vigiar as suas obras para não trabalhar em vão».
Enzo Bianchi
In "Les mots de la vie intérieure", ed. Cerf
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 01.12.2015 no SNPC
«Escrevi o teu nome na areia, mas a onda apagou-o. Gravei o teu nome numa árvore, mas a cortiça caiu. Esculpi o teu nome no mármore mas a pedra desfez-se. Tomado pelo desespero, escondi o teu nome no meu coração, e nele o tempo o conservou.»
Não sei quem escreveu estas palavras. Encontrei-as algumas vezes nos livrinhos que os noivos preparam para o seu matrimónio religioso, dando aos parentes e amigos a oportunidade de seguir a liturgia nupcial.
É verdade que as frases são algo enfáticas e sentimentalistas, mas o sentimento, em certos momentos, não estraga, sobretudo quando colhe um fundo de verdade humana e espiritual. O tema é simples e pode tocar quer o amor de casal quer todo o género de relação interpessoal e, em sentido mais lato, todo o compromisso de entrega ao próximo.
As promessas de amor exterior são significativas mas, como se sabe, os belos discursos deixam marcas frágeis, mesmo quando são frementes e incisivos. É a entrada no santuário da consciência, no profundo da vontade, na seriedade da vida que torna o amor sólido e constante.
As muitas palavras, a denguice, as expressões retóricas deixam o tempo que encontram, apesar de terem a sua função. O que conta e permanece é a escolha do coração, ou seja, da interioridade, que se consagra ao outro com verdade e intensidade.
Infelizmente, a educação para viver deste modo o amor é rara, acontecendo aquilo que, ceticamente, o príncipe Fabrizio, de "Il Gattopardo", de Tomasi di Lampedusa (1896-1957) observava: «Amor: fogo e chama por um ano e cinzas por trinta!».
P. (Card.) Gianfranco Ravasi
Trad.: Rui Jorge Martins in: SNPC 27.10.2015
Podem tornar-se instantes de graça todos os instantes da vida? Ou, pelo contrário, não: há instantes límpidos, incomparáveis, de que não conhecemos as regras, e só estas são portadores da possibilidade de sentido e redenção para a vida?
Não fiz sondagens, mas direi sem muitas hesitações que a maior parte de nós tende para esta segunda hipótese. A vida normal goza de má imprensão, sobre ela recai um imutável descrédito, como se vivêssemos a descobrir que o que nos falta está noutro lado.
Olhamos os dias, o curso dos seus instantes reputados como sem história, estranhamento seguros de que deles não virá o que procuramos. Seduz-nos muito mais o extraordinário: pensamos que, no fundo, a felicidade depende da experiência não habitual, descontínua, de uma visita esporádica, de um lampejo que não se detém.
Se tivéssemos de assinalar, entre as práticas artísticas, um exemplo desta sensibilidade dominante, poderíamos citar as fotografias (extraordinárias, ainda para mais) de Henri Cartier-Bresson.
Na introdução ao primeiro livro de imagens que publicou, ele propõe uma tese precisa sobre o que chamava «o instante decisivo». Hoje é impossível pensar na sua fotografia e, em certo sentido, no que é a fotografia em geral, sem revisitar esse texto que o tempo tornou cada vez mais influente.
O ponto de partida de Cartier-Bresson é uma epígrafe extraída dos volumes de memórias do cardeal de Retz: «Não há nada neste mundo que não tenha um momento decisivo». E o que diz, em síntese? Que quando o olhar do fotógrafo considera o mundo, sabe que exercita um poder: pode modificar perspectivas, colocar a máquina fotográfica próxima ou afastada do sujeito, realçar um detalhe ou recompor a realidade.
Mas ao fotógrafo ocorre também dar-se conta de que estão reunidos todos os elementos para uma excelente fotografia, e todavia ainda falta alguma coisa, e não sabe o quê. Até que acontece alguma coisa de imprevisto a atravessar a cena. O fotógrafo põe-se então a acompanhar o movimento por trás da sua máquina e espera, espera, espera.
Quando, por fim, carrega no botão, sente confusamente que captou algo. Mais tarde, no laboratório, revelando aquele material, dá-se conta de que o que captou era o instante decisivo. Fixou o instante sem o qual aquela imagem seria banal, não possuiria a mesma forma, intensidade, pulsão, mistério e vida.
Por isso, a atividade do fotógrafo e do artista pode apenas consistir numa espera aberta ao momento extraordinário. Será também assim para nós? Será que é isto que talvez suceda no labor interno que desenvolvemos, na vida espiritual que se ativa em nós?
Os ingredientes estão lá todos, mas ainda não é suficiente. O quotidiano é opaco, demasiado preso àquilo que conhecemos, que nos é familiar. «De Nazaré pode vir alguma coisa de bom?» (João 1, 46), perguntamos incessantemente. Consumimo-nos na espera difusa daquilo que virá, preferimos sempre o distante ao próximo, o futuro ao presente, e tornamos a existência uma ficção de si própria.
Mas se não é agora, é quando? Se a graça não atravessa precisamente estes instantes cinzentos e contraditórios, esta montanha de emoções dispersas, este movimento que nos parece demasiado concreto, demasiado denso, demasiado obtuso, dificilmente a graça se manifestará de outra forma.
Também aqui o caso de Henri Cartier-Bresson nos pode ajudar de novo. Porque a sua história é, no fim de contas, mais complexa. A curadora de uma grande mostra sobre a sua obra trouxe à luz elementos novos relativos ao seu modo de trabalhar, até então desconhecidos.
Aquilo que a sua investigação nos mostrou é que, mais do que um «instante decisivo», trata-se com mais verdade de uma «escolha decisiva», pois o fotógrafo fazia vários disparos da mesma cena, por vezes em grande número, mas escolhia só um e eliminava os outros.
O instante decisivo não é, então, um momento exterior irrepetível, nem essa epifania que encontra espaço num fugitivo piscar de olhos: é um instante, qualquer instante, que eu faço tornar decisivo, por nele investir deliberadamente a minha esperança.
José Tolentino Mendonça
In "Avvenire"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 27.09.2015 no SNPC
O papa acentuou este sábado, em Filadélfia, a necessidade de os leigos e, em particular, as mulheres, serem encorajados a uma participação mais ativa da Igreja, tendo citado a pergunta que o papa Leão XIII dirigiu a Santa Catarina Drexel: «E tu, que farás?».
«Sabemos que o futuro da Igreja, numa sociedade em rápida mudança, exigirá – e já agora o exige – um compromisso cada vez mais ativo por parte dos leigos», afirmou Francisco na missa, a que presidiu, com o clero, religiosos e religiosas do estado norte-americano da Pensilvânia.
As palavras endereçadas a Santa Catarina Drexel (1858-1955, canonizada em 2000 por S. João Paulo II), oriunda de Filadélfia, recordaram-lhe que «cada cristão recebeu, em virtude do Batismo, uma missão», sublinhou o papa.
«"E tu, que farás?" É significativo que estas palavras do papa já idoso tivessem sido dirigidas a uma mulher leiga», apontou Francisco, acrescentando que «um dos grandes desafios que a Igreja tem pela frente» é «promover, em todos os fiéis, o sentido de responsabilidade pessoal pela missão».
Esta tarefa «exige criatividade para se adaptar às situações em mudança, para levar avante a herança do passado, não primariamente mantendo estruturas e as instituições que também são úteis, mas acima de tudo estando disponíveis para as possibilidades que o Espírito abre».
O propósito de integrar mais os leigos na missão da Igreja não significa, segundo o papa, que o clero venha a «transcurar a autoridade espiritual» que lhe foi confiada, «mas discernir e usar sabiamente os múltiplos dons que o Espírito concede à Igreja».
«De forma particular, significa valorizar a contribuição imensa que as mulheres, leigas e consagradas, deram e continuam a oferecer na vida das nossas comunidades», apontou Francisco.
O repto que Leão XIII lançou a Santa Catarina Drexel impeliu-a «a pensar no trabalho imenso que havia para realizar e a dar-se conta de que também ela era chamada a fazer a sua parte».
«Quantos jovens, nas nossas paróquias e escolas, têm os mesmos ideais elevados, generosidade de espírito e amor a Cristo e à Igreja! Perguntemo-nos: somos nós capazes de os pôr à prova? Somos capazes de os guiar e ajudar a fazer a sua parte?», perguntou o papa ao clero e religiosos.
Um dos muitos campos de ação da Igreja em que a contribuição de voluntários leigos é imprescindível consiste no apoio a pessoas detidas; Francisco, que como arcebispo de Buenos Aires era visitante frequente de prisões, encontrou-se este domingo, em Filadélfia, com reclusos do Instituto Correcional de Curran-Fromhold.
«[Cristo] vem ao nosso encontro para nos calçar de novo com a dignidade dos filhos de Deus. Quer ajudar-nos a recompor o nosso andar, retomar o nosso caminho, recuperar a nossa esperança, restituir-nos a fé e a confiança. Quer que regressemos às estradas da vida, sentindo que temos uma missão; que este tempo de reclusão nunca foi sinônimo de expulsão», declarou.
Depois de afirmar que é «penoso» constatar como por vezes «se geram sistemas prisionais que não procuram curar as chagas, curar as feridas, criar novas oportunidades», o papa acentuou que o período na prisão «só pode ter um objetivo: estender a mão para retomar o caminho, estender a mão para que ajude à reintegração social».
«Todos temos alguma coisa de que ser limpos, purificados. Que a consciência disto nos desperte para a solidariedade, para nos apoiarmos e procurarmos o melhor para os outros», assinalou Francisco.
Também neste domingo, último dia da visita aos EUA, o papa reuniu-se, à margem do programa da visita previamente divulgado, com três mulheres e dois homens que foram abusados sexualmente quando eram crianças.
«As palavras não podem exprimir cabalmente o meu lamento pelo abuso que sofrestes. Vós sois filhos preciosos de Deus que deveriam sempre esperar a nossa proteção, o nosso cuidado e o nosso amor. Lamento profundamente que a vossa inocência tenha sido violada por aqueles em quem confiastes. Em alguns casos a confiança foi traída por membros da vossa própria família, noutros casos por padres que tinham a responsabilidade sagrada pelo cuidado da alma. Em todas as circunstâncias, a traição foi uma terrível violação da dignidade humana», disse Francisco às vítimas, em declaração divulgada pela Rádio Vaticano.
«Para aqueles que foram abusados por um membro do clero, lamento profundamente as vezes que vós ou a vossa família falou do caso para reportar o abuso, mas não vos ouviram ou acreditaram. Por favor, saibam que o Santo Padre ouve-vos e acredita em vós. Lamento profundamente que alguns bispos tenham falhado na sua responsabilidade de proteger as crianças. É muito perturbador saber que, em alguns casos, houve bispos que foram mesmo abusadores. Peço-vos que sigam o caminho da verdade até onde ele conduzir», afirmou.
«Peço-vos humildemente, e a todos os sobreviventes dos abusos, que fiquem connosco, que fiquem com a Igreja, e que juntos, como peregrinos no percurso da fé, possamos encontrar o nosso caminho para o Pai», concluiu Francisco [tradução SNPC].»
No encontro que teve, a seguir, com prelados, Francisco prometeu que «todos os responsáveis pelos abusos sexuais a menores serão punidos», e declarou que sentia «vergonha» que esses crimes.
Missa do Papa com clero, religiosos e religiosas - Filadélfia, 26.9.2015 (publicado no SNPC 27.09.2015)
«Apesar de tantas dificuldades que afligem hoje as nossas famílias, não nos esqueçamos, por favor, disto: as famílias não são um problema, são sobretudo uma oportunidade; uma oportunidade que temos de cuidar, proteger, acompanhar.»
Este foi um dos apelos que o papa lançou às famílias reunidas na catedral de Nossa Senhora da Assunção, em Santiago, no último dia da viagem a Cuba(22/09/2015).
Selecionamos algumas das passagens da intervenção do papa Francisco, com subtítulos acrescentados pela redação da página do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura de Portugal.
O casamento, colheita de uma vida doada
As bodas são momentos especiais na vida de muitos. Para os "mais veteranos", pais, avós, é uma ocasião para recolher o fruto da sementeira. Dá alegria à alma ver os filhos crescerem, conseguindo formar o seu lar. É a oportunidade de verificar, por um instante, que valeu a pena tudo aquilo por que se lutou. Acompanhar os filhos, apoiá-los, incentivá-los para que possam decidir-se a construir a sua vida, a formar a sua família, é um grande desafio para todos os pais.
O casamento, festa da alegria e da esperança
Os recém-casados, por sua vez, encontram-se na alegria. Todo um futuro que começa; tudo tem «sabor» a coisas novas, a esperança. Nas bodas, sempre se une o passado que herdamos e o futuro que nos espera. Sempre se abre a oportunidade de agradecer tudo o que nos permitiu chegar até ao dia de hoje com o mesmo amor que recebemos.
Jesus, presença à (nossa) mesa
É no seio dos nossos lares que Ele [Jesus] incessantemente continua a inserir-Se, e deles continua a fazer parte. É interessante observar como Jesus se manifesta também nos almoços, nos jantares. Comer com diferentes pessoas, visitar casas diferentes foi um lugar que Jesus privilegiou para dar a conhecer o projeto de Deus. Vai à casa dos seus amigos – Lázaro, Marta e Maria -, mas não é seletivo: não lhe importa se são publicanos ou pecadores, como Zaqueu. (...) Bodas, visitas aos lares, jantares: algo de «especial» hão de ter estes momentos na vida das pessoas, para que Jesus prefira manifestar-se aí.
A refeição, hora sagrada
Lembro-me que, na minha diocese anterior, muitas famílias me explicavam que o único momento que tinham para estar juntos era, normalmente, o jantar, à noite, quando se voltava do trabalho e as crianças terminavam os deveres da escola. Era um momento especial de vida familiar. Comentava-se o dia, aquilo que cada um fizera, arrumava-se a casa, guardava-se a roupa, organizavam-se as tarefas principais para os dias seguintes. São momentos em que uma pessoa chega também cansada, e pode acontecer uma ou outra discussão, um ou outro "litígio". Jesus escolhe estes momentos para nos mostrar o amor de Deus, Jesus escolhe estes espaços para entrar nas nossas casas e ajudar-nos a descobrir o Espírito vivo e atuante nas nossas realidades quotidianas.
Família, escola de vida
É em casa onde aprendemos a fraternidade, a solidariedade, o não ser prepotentes. É em casa onde aprendemos a receber e agradecer a vida como uma bênção, e aprendemos que cada um precisa dos outros para seguir em frente. É em casa onde experimentamos o perdão, e somos continuamente convidados a perdoar, a deixarmo-nos transformar. Em casa, não há lugar para "máscaras": somos aquilo que somos e, duma forma ou doutra, somos convidados a procurar o melhor para os outros. Por isso, a comunidade cristã designa as famílias pelo nome de igrejas domésticas, porque é no calor do lar onde a fé permeia cada canto, ilumina cada espaço, constrói comunidade; porque foi em momentos assim que as pessoas começaram a descobrir o amor concreto e operante de Deus.
Sem família, a vida torna-se vazia
Em muitas culturas, hoje em dia, vão desaparecendo estes espaços, vão desaparecendo estes momentos familiares; pouco a pouco, tudo leva a separar-se, a isolar-se; escasseiam os momentos em comum, para estar juntos, para estar em família. Assim não se sabe esperar, não se sabe pedir licença ou desculpa, nem dizer obrigado, porque a casa vai ficando vazia: vazia de relações, vazia de contatos, vazia de encontros. (...) Sem família, sem o calor do lar, a vida torna-se vazia; começam a faltar as redes que nos sustentam na adversidade, alimentam na vida quotidiana e motivam na luta pela prosperidade.
A família ensina a ser para os outros
A família salva-nos de dois fenômenos atuais: a fragmentação (a divisão) e a massificação. Em ambos os casos, as pessoas transformam-se em indivíduos isolados, fáceis de manipular e controlar. Sociedades divididas, quebradas, separadas ou altamente massificadas são consequência da ruptura dos laços familiares, quando se perdem as relações que nos constituem como pessoa, que nos ensinam a ser pessoa. A família é escola da humanidade, que ensina a pôr o coração aberto às necessidades dos outros, a estar atento à vida dos demais. Apesar de tantas dificuldades que afligem hoje as nossas famílias, não nos esqueçamos, por favor, disto: as famílias não são um problema, são, sobretudo, uma oportunidade; uma oportunidade que temos de cuidar, proteger, acompanhar.
Família, centro e futuro de humanidade
Discute-se muito sobre o futuro, sobre o tipo de mundo que queremos deixar aos nossos filhos, que sociedade queremos para eles. Creio que uma das respostas possíveis se encontra pondo o olhar em vós: deixemos um mundo com famílias. É certo que não existe a família perfeita, não existem esposos perfeitos, pais perfeitos nem filhos perfeitos, mas isso não impede que sejam a resposta para o amanhã. Deus incentiva-nos ao amor, e o amor sempre se compromete com as pessoas que ama. Portanto, cuidemos das nossas famílias, verdadeiras escolas do amanhã. Cuidemos das nossas famílias, verdadeiros espaços de liberdade. Cuidemos das nossas famílias, verdadeiros centros de humanidade.
Eucaristia, Pão de Vida das famílias
Não quero concluir sem fazer menção da Eucaristia. Tereis notado que Jesus, como espaço do seu memorial, quis utilizar uma ceia. Escolhe como espaço da sua presença entre nós um momento concreto da vida familiar; um momento vivido e compreensível a todos: a ceia. A Eucaristia é a ceia da família de Jesus, que, de um extremo ao outro da terra, se reúne para escutar a sua Palavra e alimentar-se com o seu Corpo. Jesus é o Pão de Vida das nossas famílias, quer estar sempre presente, alimentando-nos com o seu amor, sustentando-nos com a sua fé, ajudando-nos a caminhar com a sua esperança, para que possamos, em todas as circunstâncias, experimentar que Ele é o verdadeiro Pão do Céu.
Pedir pela Igreja e pelas famílias
Daqui a alguns dias, participarei juntamente com famílias do mundo inteiro no Encontro Mundial das Famílias e, dentro de um mês, no Sínodo dos Bispos, cujo tema é a família. Convido-vos a rezar especialmente por estas duas intenções, para que saibamos todos juntos ajudar-nos a cuidar da família, para que saibamos cada vez mais descobrir o Emanuel, o Deus que vive no meio do seu povo fazendo das famílias a sua morada.
Papa Francisco
Edição: Rui Jorge Martins
Publicado em 22.09.2015 no SNPC
Ao que parece, durante anos, o compositor John Cage sondou a possibilidade de elaborar uma obra completamente silenciosa, mas impedia-o duas coisas: a dúvida se uma tarefa assim não estaria, desde logo, votada ao fracasso, porque tudo é som; e a convicção de que uma composição tal seria incompreensível no espaço mental da cultura do Ocidente. Contudo, encorajado pelas experiências que se realizavam já nas artes visuais, construiu a sua peça intitulada 4’33’’.
A proposta de Cage era completamente insólita: os músicos deviam subir ao palco, saudar o público, sentar-se ao instrumento e permanecer, em silêncio, por quatro minutos e trinta e três segundos, até que, de novo, se levantassem, agradecessem à plateia e saíssem. Na assistência instalou-se a polémica e choveram as vaias. Mas ao longo de toda a sua vida, John Cage referiu-se a essa peça com sentida reverência: «A minha peça mais importante é essa silenciosa; não passa um só dia que não me sirva dela para a minha vida e para tudo o que faço. Recordo-a sempre que tenho de escrever uma nova peça».
Quando penso no contributo que a experiência poética ou religiosa possa dar num futuro próximo à humanidade, penso francamente que mais até do que a palavra será a partilha desse património imenso que é o silêncio. Na palavra fazemos a experiência da diferenciação, experiência certamente fundante, mas também ela parcial e insuficiente. Precisamos do auxílio de outra ciência, a que recorremos pouco: o silêncio. Isaac de Nínive, lá pelos finais do século VII, ensinava: “A palavra é o órgão do mundo presente. O silêncio é o mistério do mundo que está a chegar”. Creio que é absolutamente urgente revisitarmos com outro apreço os territórios dos nossos silêncios e fazermos deles lugares de troca, de diálogos, de encontros. O silêncio é um instrumento de construção, é uma lente, uma alavanca.
As nossas sociedades investem tanto na construção de competências na ordem da palavra (e pensemos como a escolarização está ao serviço da capacitação dos indivíduos em ordem a um funcionamento eficaz com a palavra) e tão pouco nas competências que operam com o silêncio. Somos analfabetos do silêncio e esse é um dos motivos porque não sabemos viver na paz.
O silêncio é um traço de união mais frequente do que se imagina, e mais fecundo do que se julga. O silêncio tem tudo para se tornar um saber partilhado sobre o essencial, sobre o que nos une, sobre o que pode alicerçar, para cada um enquanto indivíduo e para todos enquanto comunidade, os modos possíveis de nos reinventarmos. Mas para isso precisamos de uma iniciação ao silêncio, que é o mesmo que dizer uma iniciação à arte de escutar.
Na sociedade da comunicação há um défice de escuta. Numa cultura de avalanche como a nossa, a verdadeira escuta só pode configurar-se como uma re-significação do silêncio, um recuo crítico perante o frenesim das palavras e das mensagens que a todo o minuto pretendem aprisionar-nos. A arte da escuta é, por isso, um exercício de resistência. Ela estabelece uma descontinuidade em relação ao real aparente, à sucessão ociosa do discurso, à enxurrada que a telenovelização do quotidiano (seja ele político, económico ou cultural) comporta. A escuta constitui uma cesura, um corte simbólico, uma deslocação.
Pense-se em como o silêncio mostra o patrimônio de uma amizade. E a pergunta é: como percebemos que dois desconhecidos são amigos? Pela forma como conversam? Certamente. Pelo modo como se riem? Claro que sim. Mas ainda mais porque nitidamente acolhem o silêncio um do outro. Entre conhecidos o silêncio é um embaraço, sentimos imediatamente a necessidade de fazer conversa, de ocupar o espaço em branco da comunicação. Com os amigos o silêncio nada tem de embaraçoso. O silêncio é um vínculo que une.
José Tolentino Mendonça
In "Expresso", 13.6.2015
O diálogo é o único caminho para se conquistar a efetivação da paz, em todos os níveis, instâncias e segmentos da sociedade. No fundamento do diálogo, está o enorme desafio do entendimento. Os desajustes nas dinâmicas que levam ao entendimento prejudicam a busca pela verdade, não possuída, em caráter absoluto, por ninguém - por nenhuma autoridade religiosa ou sistema político-ideológico. Só se aproxima da verdade quem dialoga. Essa constatação se aplica na administração de situações que ocorrem no ambiente doméstico, nas que se relacionam ao ambiente profissional, ao exercício da cidadania e também nas grandes tratativas de relações políticas internacionais. Buscar a paz acima de tudo é abrir-se ao diálogo. Só o entendimento conquistado pelo diálogo possibilita o avanço na direção da paz. O distanciamento desse dom de Deus é resultado da incompetência para o diálogo. Nesse ponto, há um detalhe de grande importância a ser observado para que o dialogar permita o entendimento e, consequentemente, o aproximar-se da verdade. Trata-se da superação das visões de mundo estreitas, que impossibilitam os avanços necessários para se alcançar a paz a partir do diálogo.
É interessante pensar, como exemplo que clarifica essa análise, em um conflito de ordem familiar, baseado nas diferenças entre gerações. A velocidade das mudanças culturais e tecnológicas que afetam de modo mais intenso os jovens, localizando-os numa dinâmica muito peculiar de vida e de compreensão, não raramente colide com as visões, posturas e escolhas da geração adulta. O convívio de diferentes perspectivas requer boa administração para que o diálogo não fique comprometido e, consequentemente, falte paz às famílias. A competência para o diálogo é necessária na articulação do conhecimento, no uso das tecnologias e na compreensão das mudanças culturais.
Caminhar rumo à paz, a partir do diálogo que leva ao entendimento, exige sensibilidade social e política. O tipo de orientação que se dá à vida no exercício das próprias responsabilidades tem consequências que podem ser graves. Pode-se avaliar, entre as diversas e importantes situações, a reunião de um grupo em determinado parlamento. Se a visão de mundo desses representantes do povo for equivocada, se agirem orientados a partir de interesses cartoriais - o que indica pouco compromisso com o interesse do povo -, somente serão capazes de oferecer respostas medíocres diante das muitas necessidades sociais.
Concretamente, pode-se pensar no projeto de reforma política desenvolvido no ambiente parlamentar sem a devida escuta da sociedade civil e, também, na proposta de diminuição da maioridade penal. Iniciativas que escancaram as limitações dos que se posicionam e votam de modo favorável a essas mudanças. A consequência é desastrosa, atrasa processos e inviabiliza o desenvolvimento da sociedade. O que se passa na esfera política não é muito diferente do que ocorre no âmbito religioso. O horizonte de compreensão, muitas vezes, torna-se estreito pela rigidez, pela hegemonia do conservadorismo ou pela falta de preparo intelectual. É alto o preço pago por se “rifar” projetos e pessoas - o outro que deve estar na ponta do diálogo que salva.
A referência ao diálogo como caminho para a paz emoldura o conjunto de outros âmbitos e incursões que precisam permanentemente ser bem tratados. Do diálogo entre diferentes culturas, passando pelo respeito aos direitos humanos, a responsabilidade no cuidado ambiental - livre da ganância, em parâmetros de verdadeira sustentabilidade -, até o primordial combate à pobreza, como condição indispensável na construção e conquista da paz.
Curioso é que o instrumento contemporâneo das redes sociais e toda a tecnologia digital à disposição, eivadas de informações, podem ter sua força de serviço enfraquecida e comprometida por conta da incompetência individual de dialogar em busca da verdade. Mal maior forma-se quando desmorona o mais importante santuário de cada pessoa: a sua consciência. Esse importante lugar para o diálogo, em função de interesses, com o objetivo de elaborar justificativas e de esconder razões espúrias, torna-se ambiente em que mentiras ganham aparência de verdades. Corrompida a consciência, não haverá mesmo saída para a paz.
A incompetência para o diálogo que constrói a paz impossibilita que sejam alcançadas as muitas soluções necessárias, induz a sociedade a pensar, erroneamente, que a solução de suas crises depende apenas dos números e cifras. Perpetua uma dinâmica cultural da dependência e da mediocridade. É hora de investir na educação para o diálogo a partir da convicção incontestável de que ele é o caminho para a paz.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo de Belo Horizonte
«No último dia de janeiro de 1915, sob o signo de Aquário, num ano de uma grande guerra, na fronteira com a Espanha, à sombra dos montes franceses, vim ao mundo. Feito à imagem de Deus, e por isso livre por natureza, fui todavia escravo da violência e do egoísmo, à imagem do mundo em que nasci. Aquele mundo era o quadro do inferno, cheio de homens como eu, que amavam Deus e contudo o odiavam, e, nascidos para o amar, viviam no temor e no desespero de apetites contrários.» Assim escreveu Thomas Merton no início daquele que é, talvez, o seu trabalho mais conhecido, “A montanha dos sete patamares”, de 1948, evocando o dia do seu nascimento, em Prades, de Owen, neozelandês, e de Ruth Jenkins, norte-americana, pintores “globe-trotter”.
Um aniversário a assinalar por vários motivos que encheram uma vida de apenas 53 anos mas que foi intensa e original, como a sua espiritualidade. Escritor que evoca o visionário William Blake, Merton foi protagonista de um corajoso compromisso pela paz (fonte de diatribes com os superiores, depois valorizado por João XXIII e Paulo VI, com quem trocou correspondência), e também ponto de referência para o movimento não violento pelos direitos civis, preconizando uma paz fundada em argumentos evangélicos e confiada ao testemunho («uma parte essencial da Boa Nova é que as medidas não violentas são mais fortes do que as armas: com armas espirituais a Igreja primitiva conquistou todo o mundo romano»), que permanece hoje com toda a atualidade, como mostra o seu ensaio “Paz na era pós-cristã”.
Antes, ainda, Merton foi sobretudo um monge inquieto, mas que transformou o eremitério, com a pena, num púlpito sem fronteiras, e, com a oração, num tabernáculo onde guardava, juntamente com a Eucaristia, cada irmão; um trapista defensor da vida monástica eremítica e comunitária, convicto de «ter viva no mundo moderno a experiência contemplativa e manter aberta para o homem tecnológico dos nossos dias a possibilidade de recuperar a integridade da sua interioridade mais profunda». Até transformar a sua própria parábola numa narrativa incessante da procura de Deus, vivendo-a entre solidão e comunhão, contemplação e ação.
Além disso, Merton é recordado como homem do ecumenismo e do diálogo, respeitador das diferenças e concentrado no essencial. No diálogo inter-religioso, mais explorativo que funcional, foi pronto a abrir-se a hinduístas, budistas, judeus, islâmicos, a procurar as fontes vitais das outras religiões («se me afirmo como católico apenas negando tudo que é muçulmano, judeu, protestante, hindu, budista, no fim descobrirei que me não resta muita coisa com que me possa afirmar como católico. Certamente não terei o sopro do Espírito com o qual possa afirmá-lo»), e com uma forte atenção às expressões orientais: vejam-se as suas reflexões reunidas por William H. Shannon (“A experiência interior”), ou a recolha em que reinterpreta um dos pais do taoismo (“A via de Chuang-Tzu”).
Merton distingue-se também pelo diálogo com os não crentes, declinado na capacidade de ver sinais de «fé inconsciente» nos ateus, ou de «ateísmo inconsciente» nos crentes («o grande problema é a salvação daqueles que, sendo bons, pensam que já não têm necessidade de serem salvos e imaginam que a sua tarefa é tornar os outros bons como eles»). Uma vida contemplativa, a sua, nunca isolada da realidade. E uma vida consagrada concebida como porta aberta ao amor.
Ficando órfão ainda criança, com o irmão John Paul (perde a mãe em 1921 e o pai dez anos depois), Thomas passa parte da infância nos EUA, e da sua formação na França e na Inglaterra passa a Nova Iorque em 1934, completando os estudos na Universidade de Columbia. Chegado ao catolicismo em 1938, deixando para trás a busca de prazer («a minha conversão foi ajuda de Deus, como cada conversão, e da minha parte foi estudo e procura»), três anos depois, durante a Segunda Guerra Mundial, entra na abadia de Nossa Senhora do Getsémani, no estado do Kentucky, entre os Cistercienses de Estrita Observância. Em 1949 é ordenado padre.
Uma “meta” após um percurso marcado por estudos, viagens, desorientações, encontros, pelo contínuo interrogar-se sobre o sentido da vida, até à atração pelo claustro. Um percurso cujas etapas se refletem em muitas páginas, por vezes atormentadas, mas orientadas na direção da Graça, espalhadas entre “Nenhum homem é uma ilha” (1953), “O sinal de Jonas” (1952), “Sementes de destruição” (1966), sem esquecer “Sementes de contemplação” (1949), e outros escritos, onde a vida contemplativa nunca é fuga do mundo, mas entrada num diálogo profundo com o ser humano.
Enquanto se aguarda que um editor se disponibilize a publicar a versão integral dos seus diários, poder-se-á ler “Merton na intimidade: sua vida em seus diários”, organizado pelos irmãos Patrick Hart e Jonathan Montaldo, síntese que segue o percurso traçado pelo diário que Merton escreveu desde os 16 anos até à morte.
Desde o apartamento no n.º 35 de Perry Street, em Manhattan, e das câmaras de abrigo em Miami e Cuba, até ao “bungalow” de Banguecoque, onde um ventilador o fulminou, a 10 de dezembro de 1968 (encontrava-se lá para um congresso sobre monaquismo, e, como documenta o “Diário da Ásia”, estava bem preparado), passando pelos espaços a ele familiares na abadia do Getsémani (a enfermaria, a cripta dos livros raros, onde escrevia, o depósito escolhido como dormitório), a sequência irradia os pensamentos do monge «viandante de reinos» nascido há cem anos. Tão distante e tão próximo.
Marco Roncalli
In "Avvenire"Começou dia 20 deste mês (sexta-feira) a "Semana de Mobilização pela Reforma Política Democrática". Seu objetivo é conseguir um 1,5 milhão assinaturas para a proposição do Projeto de Lei de Iniciativa Popular pela Reforma Política e Eleições Limpas.
Esse movimento de apoio ao projeto foi lançado no final de agosto do ano passado, pela Conferên-cia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), pela Plata-forma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político e por mais 98 entidades da sociedade civil. Poucos dias depois – isto é, a 9 de setembro de 2014 –, numa entrevista que dei à Imprensa, a Arquidiocese de São Salvador da Bahia anunciou sua adesão a esse Projeto de Lei.
Para quem ainda não tomou conhecimento, a Reforma Política Democrática defendida por essas entidades pode ser resumida em quatro pontos: 1) financiamento das campanhas dos candidatos; 2) eleição em dois turnos: um para se votar em um programa e outro, para se votar em uma pessoa; 3) aumento de candidaturas de mulheres para cargos eletivos; 4) regulamentação do Artigo 14 da Constituição, com o objetivo de se melhorar a participação do povo brasileiro nas decisões mais importantes, por meio de Projetos de Lei de iniciativa popular, de plebiscitos e de referendos, mesclando a democracia representativa com a democracia participativa.
Os pontos defendidos pelas entidades e grupos que assumiram essa proposta poderiam, naturalmente, ser diferentes, em maior número ou mais amplos. No entanto, a proposta final foi a síntese a que elas chegaram, depois de inúmeras reuniões e debates. Se tais pontos não resolvem todos os problemas que nos preocupam no momento atual, servirão, no entanto, para darmos um importante passo para um novo tempo. As notícias que entram diariamente em nossas casas, a respeito do desvios de enormes quantidades de dinheiro para o financiamento de eleições, nos mostram que é melhor procurarmos o possível, já que o ideal é mais difícil. Afinal, como diziam os romanos, há 2 mil anos: "O ótimo é inimigo do bom". No futuro, outros passos poderão ser dados para o aperfeiçoamento de nossa Democracia. Não exagero ao afirmar que, nesse campo, a CNBB poderá oferecer uma preciosa contribuição, como a deu no tempo da Constituinte, com o texto "Por uma nova ordem constitucional".
É bom frisar que o Projeto de Lei que está esperando assinaturas – a sua, inclusive –, para poder ser apresentado em Brasília, não está vinculado a nenhum partido político, embora não haja restrição ao apoio de bons políticos. Os que já assinaram demonstraram estar convictos de que uma verdadeira reforma política melhorará a realidade política brasileira e possibilitará a realização de várias outras reformas necessárias ao país como, por exemplo, a tributária.
Quem quiser conhecer melhor o Projeto de Lei em questão, pode acessá-lo pela internet, onde pode ser baixado, inclusive, o Formulário de coleta de assinaturas e o endereço para onde deverá ser encaminhado. Por ele, também pode ser obtido e assinado em sua Paróquia. Em qualquer circunstância, é importante que você tenha em mãos o título de eleitor porque, além da assinatura, você deverá anotar dados como número desse documento, a zona, a seção e o nome do município onde você vota.
Enfim, como lembrou Dom Joaquim Mol, Bispo Auxiliar de Belo Horizonte e coordenador da Comissão da CNBB para o Acompanhamento da Reforma Política, "Precisamos fazer isso com alegria, com esperança, iluminados pela nossa fé em Jesus Cristo, que veio para que todos tenham vida em abundância. Por isso precisamos rezar e celebrar nesta intenção em nossas comunidades".
Mãos à obra, pois!
CNBB, 20-03-2015.
*Dom Murilo S. R. Krieger é arcebispo de São Salvador da Bahia e Primaz do Brasil.
No mês de outubro de 2015, nós comemoramos o cinquentenário da conclusão do Concílio Vaticano II; concílio que enfatizou o diálogo entre a Igreja e a sociedade e reafirmou sua missão de servir. A Igreja nasceu do projeto salvífico de Jesus que, ressuscitado, enviou os discípulos, a anunciarem a todos, tudo o que dEle aprenderam. Esse é o serviço primeiro que a Igreja deve prestar ao mundo: anunciar a Palavra e a salvação realizada por Cristo. Sua missão primordial é, portanto, de cunho religioso evangelizador; um serviço à vida humana até que esta atinja sua plenitude, na comunhão com Deus. Decorrente desse evangelho, que permeia todos os aspectos da existência humana, emergem os inúmeros serviços que a Igreja presta ao mundo, em vista da promoção do bem, da justiça, da verdade, da paz, da defesa da vida; em uma palavra, todos os compromissos decorrentes do amor a Deus e ao próximo.
A Campanha da Fraternidade deste ano, vem situada nesse horizonte, como oportunidade de aprofundar esse compromisso cristão, de despertar cada pessoa para o serviço e, frente aos desafios de nosso tempo, aperfeiçoar o próprio modo que toda Igreja tem de servir.
Estar a serviço é uma atitude decorrente do amor. Esse nos faz “sair” de nós mesmos e ir ao encontro do outro; coloca nosso centro de atenção não em nós, mas no outro e no conjunto da sociedade, visando o bem de todos.
Ao colocar-se nessa atitude de serviço em relação ao mundo, a Igreja espelha-se em seu Senhor, que não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida por todos (cf. Mt 20,28). Estar a serviço é uma atitude decorrente do amor. Esse nos faz “sair” de nós mesmos e ir ao encontro do outro; coloca nosso centro de atenção não em nós, mas no outro e no conjunto da sociedade, visando o bem de todos. A atitude do serviço é o oposto do egoísmo auto referencial, que leva o indivíduo a viver somente para si, tendo em vista os próprios interesses. O cristianismo descontrói essa lógica rasteira do egoísmo interesseiro e descortina perspectivas novas que, pela doação de si no serviço generoso, abrem os horizontes da pessoa para o verdadeiro sentido da vida e da realização humana.
Tal amor e espírito de serviço concretizaram-se na generosa doação de cristãos que, ao longo dos séculos, doaram-se e continuam oferecendo a vida a serviço dos outros em hospitais, creches, orfanatos, asilos, escolas, universidades, e numa infinidade de projetos e pastorais que atendem, sobretudo aos mais necessitados. Assim, a Igreja presta serviço formando gerações, influenciando culturas, salvando vidas, infundindo e consolidando valores em meio a sociedade onde se situa.
A Campanha da Fraternidade não pretende exaltar o que a Igreja faz; porém, é justo e oportuno que tais ações sejam conhecidas a fim de que sirvam de estímulo às pessoas e suscitem inúmeras outras generosas atitudes de serviço. Situada no tempo da Quaresma, a Campanha da Fraternidade provoca o questionamento sobre o que cada cristão tem feito pelos seus semelhantes e o que poderia ainda por eles fazer.
Dom Wilson Angotti
Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte
Nos teus invernos há sementes que germinam, sabias?: Meditação sobre o Evangelho de Domingo
Depois de João ter sido preso, Jesus partiu para a Galileia e começou a proclamar o Evangelho de Deus, dizendo: «Cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho».
Caminhando junto ao mar da Galileia, viu Simão e seu irmão André, que lançavam as redes ao mar, porque eram pescadores. Disse-lhes Jesus: «Vinde comigo e farei de vós pescadores de homens». Eles deixaram logo as redes e seguiram Jesus. Um pouco mais adiante, viu Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João, que estavam no barco a consertar as redes; e chamou-os. Eles deixaram logo seu pai Zebedeu no barco com os assalariados e seguiram Jesus. (Marcos 1, 14-20, Evangelho do 3.º Domingo do Tempo Comum)
Marcos conduz-nos ao momento primordial em que uma notícia extraordinária começa a correr pela Galileia, anunciando com a primeira palavra: o tempo cumpriu-se, o Reino de Deus está aqui.
Jesus não demonstra o Reino, mostra-o e fá-lo florir das suas mãos: liberta, cura, perdoa, derruba barreiras, volta a dar a plenitude a todos, a começar pelos últimos. O Reino é Deus que vem para curar do mal de viver, como a vida que desponta em todas as suas formas.
A segunda palavra de Jesus pede para tomar posição: convertei-vos, voltai-vos para o Reino. Há uma ideia de movimento na conversão, como no girassol que a cada manhã volta a erguer a sua corola e a orienta na direção do sol. Convertei-vos: isto é, voltai-vos para a luz porque a luz já está aqui.
A cada manhã, a cada despertar, também eu posso converter-me, dirigir pensamentos, sentimentos e escolhas para uma estrela polar do viver, para a boa notícia de que Deus está hoje mais próximo, penetrou mais profundamente no coração do mundo e no meu, com mansidão e poderosa energia para o amanhecer de novos céus e nova terra.
Também eu posso construir o meu dia sobre esta feliz certeza; deixar de ter os olhos baixos sobre os meus mil problemas, mas levantar a cabeça para a luz, para o Senhor que me assegura: Eu estou contigo, nunca te deixo, nunca serás abandonado.
Crer no Evangelho. Não basta aderir a uma doutrina; é preciso atirar-se para dentro dele, para que a nossa vida seja submersa nele e dele derivem as nossas escolhas.
Caminhando ao longo do lago, Jesus vê... Vê Simão e nele intui Pedro, a Rocha. Vê João e nele perscruta o discípulo das mais belas palavras de amor. Um dia olhará a adúltera trazida à força para diante dele e nela verá a mulher capaz de amar de novo.
O Mestre olha também para mim; nos meus invernos vê sementes que germinam, generosidade que desconhecia ter, capacidades de que não suspeitava. O olhar de Jesus alarga o coração, torna-o mais amplo. Deus tem para mim a confiança de quem contempla as estrelas ainda antes que se iluminem.
Segue-me, vem após mim. Jesus não se alonga em motivações, porque o motivo é Ele, que te coloca o Reino recém-nascido entre as mãos. E di-lo com uma palavra inédita: farei de vós pescadores de homens. Como se dissesse: farei de vós buscadores de tesouros.
Como se dissesse: o meu e o vosso tesouro são os homens. Havereis de os tirar para fora da escuridão, como peixes sob a superfície das águas, como recém-nascidos das águas maternas, como tesouro desenterrado do campo. Passá-los-eis da vida submersa à vida ao sol. Mostrareis que o Evangelho é a chave para viver melhor.
Ermes Ronchi
In "Avvenire"
Estamos empenhados em preparar a vinda do Senhor, em preparar-lhe simbolicamente um espaço, e isso torna-se uma parábola do grande acolhimento, da grande hospitalidade à qual estamos dispostos. E dizemos: «Vem, Senhor Jesus».
Abrimos as casas, encontramos um lugar no seu interior, preparamos formas diferentes para o tráfico dos nossos dons, das palavras, dos sentimentos, dos votos e desejos. Encontramos na nossa vida um modo de Deus chegar. As portas estão abertas. A contagem decrescente começou.
E então dá-se o volte-face: ao rei David, que tem um papel emblemático na expetativa messiânica, Deus diz: «Não és tu que me preparas uma casa, sou Eu que preparo uma casa para ti».
Não mergulhamos profundamente no mistério do Natal se não acolhermos esta reviravolta no nosso coração: não somos nós que preparamos um presépio para Deus nascer; é Deus que prepara o lugar, é Deus que prepara a possibilidade, as condições do renascimento de cada um de nós.
Jesus é o Deus que se torna homem para que o homem e mulher que somos se possa divinizar. Ele nasceu para potenciar os nossos nascimentos.
Como Maria, podemos perguntar: «Como será isso, se eu não vejo essa possibilidade? Que o Menino possa nascer simbolicamente em minha casa, eu acredito, mas que a minha casa toda e o que ela significa possa renascer, não vejo como. Que eu me possa preparar e abrir as portas para o Deus connosco vir, isso entendo; mas que eu, na minha rigidez, nos meus entraves, nos meus dilemas, no caminho que estou a fazer, possa verdadeiramente recomeçar e renascer, não vejo como».
A dupla palavra do anjo é uma das grandes palavras de Natal: «Não temas». Não desanimes, não penses que não é para ti. O Espírito Santo virá em teu socorro, a sombra do Altíssimo te cobrirá. E o mistério que acontece na nossa vida, humaníssima e fragilíssima, é ação do próprio Deus: é Ele que pode renovar, é Ele que pode transformar as nossas vidas; é Ele que pode fazer acontecer, dentro de cada um de nós, o Natal, essa irrupção de vida nova e cintilante, a possibilidade de uma esperança maior do que aquela de que somos capazes.
O que é este novo nascimento? S. Paulo, com uma palavra só, com uma das palavras mais importantes desse texto maior da memória cristã que é a carta aos Romanos, diz: o grande mistério, esperado desde sempre e agora revelado, é este: Deus Pai confirma-nos. Uma palavra só: «Confirma-nos».
O que é o Natal de 2014 que estamos prestes a celebrar? É sentir dentro de si que se é confirmado por Deus, confirmado como filho e filha amado, querido, em quem Deus coloca todo o seu amor. E a nossa vida passa a valer mais: porque não é só o que somos, o que conseguimos, o que trazemos - não é só isso; é o olhar de Deus pousado na fragilidade que eu sou.
É o olhar de Deus que me confirma, muitas vezes para lá das evidências e contrariando-as, contra toda a esperança. Deus confirma-nos e diz: «Tu és a minha filha, tu és o meu filho». É isso que nos faz nascer: a certeza do amor de Deus depositado, mostrado por Jesus face a face na nossa história, a certeza indefectível desse amor que não falha, desse amor em que podemos confiar. O Deus connosco é um Deus credível, em quem um homem e uma mulher podem acreditar. Nós acreditamos nesse amor, e acreditamos que ele nos é dado como fundamento, como pedra angular, como razão, como possibilidade, como manjedoura onde nascemos.
Temos de olhar para os nossos dias e sentir que não somos nós que estamos a construir uma manjedoura; é Deus que faz do tempo da nossa vida, deste tempo onde estamos, deste aqui e agora, o lugar da nossa confirmação, o lugar do nosso nascimento. Abramos, por isso, o nosso coração em alegria.
Pe. José Tolentino Mendonça
Capela do Rato, Lisboa, 21.12.2014
Publicado em 24.12.2014 no SNPC
No Natal não celebramos uma recordação, mas uma profecia. O Natal não é uma festa sentimental, mas o juízo sobre o mundo e o novo ordenamento de todas as coisas. Naquela noite, o sentido da história tomou outra direção: Deus para o homem, o grande para o pequeno, do alto para baixo, de uma cidade para uma gruta, do templo para um campo de pastores. A história recomeça dos últimos.
Enquanto que em Roma se decidem as sortes do mundo, enquanto as legiões mantêm a paz com a espada, neste mecanismo perfeitamente oleado cai um grão de areia: nasce uma criança, suficiente para mudar a direção da história. A nova capital do mundo é Belém.
Ali Maria dá à luz o seu filho primogénito, envolve-o em faixas e depõe-no numa manjedoura... no comedouro dos animais, que Maria, na sua necessidade, lê como um berço. O estábulo e a manjedoura são um "não" aos modelos mundanos, um "não" à fome de poder, um "não" ao que está estabelecido. Deus entra no mundo do ponto mais baixo, para que nenhuma criatura nunca mais esteja por baixo, para que ninguém fique de fora do seu abraço que salva.
O Natal é o maior ato de fé de Deus na humanidade: confia o filho nas mãos de uma jovem inexperiente e generosa, tem fé nela. Maria cuida do recém-nascido, alimenta-o de leite, de carícias e de sonhos. Fá-lo viver com o seu abraço.
Do mesmo modo, na encarnação nunca concluída do Verbo, Deus só viverá na nossa Terra se cuidarmos dele, como uma mãe, a cada dia.
Havia naquela região alguns pastores... uma nuvem de asas e de canto os envolve. É muito belo que Lucas anote esta visita única, um grupo de pastores a cheirar a lã e a leite. É belo para todos os pobres, os últimos, os anônimos, os esquecidos. Deus recomeça deles.
Vão e encontram uma criança. Contemplam-no: os seus olhos são os olhos de Deus, a sua fome é a fome de Deus, aquelas mãozinhas que se estendem para a mãe são as mãos de Deus estendidas para eles.
Por quê o Natal? Deus fez-se homem para que o homem se faça Deus. Cristo nasce para que eu nasça. O nascimento de Jesus requer o meu nascimento: que eu nasça diferente e novo, que nasça com o Espírito de Deus em mim.
O Natal é a "reconsagração" do corpo. A certeza de que a nossa carne que Deus assumiu, amou, fez sua, é sagrada em qualquer dos seus membros, que a nossa história é sagrada qualquer que seja a sua página.
O Criador que tinha plasmado Adão com a argila do solo faz-se Ele mesmo argila deste nosso solo. O oleiro faz-se argila de um vaso frágil e belíssimo. E ninguém pode dizer: aqui acaba o homem, aqui começa Deus, porque Criador e criatura abraçam-se a partir de agora. Para sempre.
Pe. Ermes Ronchi
In "La Chiesa"
Trad.: Rui Jorge Martins
Nos tempos recentes nenhum papa falou como o papa Francisco. Ontem disse aquilo que pensa com franqueza, passando por cima de linguagens alusivas e estilo diplomático. Este discurso ecoa aquele que S. Bernardo – monge, todavia, não papa – ousou dizer no século CI ao papa e à sua corte: palavras que poucos souberam escrever ou proclamar sobre a correção dos vícios eclesiásticos nos momentos em que se tornava urgente uma reforma da Igreja “in capite et in corpore” [na cabeça e no corpo].
Mas mais ainda, ecoa o Salmo 101, em que a cabeça, o guia do povo de Deus promete ao Senhor não só caminhar com coração íntegro, mas também afastar quem, junto dele, tem o «coração perverso», «o que, às ocultas, calunia o seu semelhante», «o arrogante e orgulhoso», o «fraudulento» e o «mentiroso». O papa Francisco conhece bem a psicologia dos «homens religiosos», presentes entre os escribas e os fariseus, hoje entre os cristãos «em cada cúria, comunidade, congregação, movimento eclesial».
Não só nos padres do deserto dos primeiros séculos era habitual a compilação de «catálogos» de vícios e pecados «capitais»: também as gerações de cristãos como a minha, formatadas antes do Vaticano II, tinham à disposição prontuários de pecados «em pensamentos, palavras, atos e omissões» para se prepararem para o sacramento da Confissão, para assim fazerem um exame de consciência pessoal sobre a sua própria inadequação relativamente às exigências colocadas pelos Dez Mandamentos e, com mais profundidade, pelo próprio Evangelho. Foi em algo de semelhante – fortalecido ainda pela análoga tradição de Loyola – que o papa Francisco pensou no seu discurso à cúria romana por ocasião do Natal. Assim expôs com franqueza um detalhado elenco de quinze «doenças da alma», da patologia do «sentir-se imortal ou indispensável» até à do «aproveitamento mundano e dos exibicionismos».
Neste catálogo das doenças dos homens religiosos emerge o consentimento a uma tentação-chave, a do poder, tentação colocada pelo demónio também a Jesus Cristo, e por Ele rejeitada e vencida. Sim, a sede insaciável de poder torna aquele que lhe cede capaz de difamar e caluniar os outros nos jornais e nos blogues, através de jornalistas complacentes, capazes até de odiar por comissão. O papa Francisco não inventa nada, simplesmente lê o dia-a-dia que deforma e desfigura a Igreja enquanto corpo do Senhor. É uma análise cortante, fruto também da experiência diária destes vinte e um meses de pontificado, um exame minucioso não tanto ao passado e aos escândalos que precederam a sua eleição, mas sobretudo a um presente que perdura.
E é significativo que o antídoto universal para todas estas patologias o papa Francisco o ofereça enquadrando o seu discurso – rico de citações bíblicas e de referências à sua exortação “A alegria do Evangelho”, confirmação do enraizamento na Palavra de Deus e no projeto da sua linguagem e ação – precisamente na compreensão da Igreja como «corpo místico de Cristo». Ora, a imagem do corpo composto por muitos membros como metáfora de uma comunidade pertence à tradição clássica, antes ainda que ao Novo Testamento, mas a conotação precisa que o papa delineia a quantos o ajudam no governo da «Igreja de Roma que preside na caridade» é a íntima comunhão deste corpo dinâmico e de cada membro singular com o Senhor: «A cúria, como a Igreja, não pode viver sem ter uma relação vital, autêntica e sólida com Cristo».
Cada cristão, mas sobretudo cada pessoa munida de autoridade ou comprometida num ministério pastoral, é convidada a perguntar-se: «Sou um homem de Deus ou sou um administrador de Satanás?». Não há alternativa: porque se é certo que todos somos tentados e todos caímos, também é verdade que a fratura existe entre quem cai e procura levantar-se, confessando ser pecador, e quem, pelo contrário, aceita cair até ser um corrupto, chegando ao ponto de se exibir a si próprio diante dos outros como pessoa justa e exemplar.
Este objetivo, bem mais árduo do que qualquer reforma funcional, é indubitavelmente inovador e, ao mesmo tempo, profundamente radicado na mais autêntica tradição cristã: remontar um aparelho burocrático eclesiástico à sua verdadeira natureza de corpo comunitário ao serviço da Igreja universal. Dir-se-á que as doenças são de tal maneira numerosas, graves e espalhadas que exigem uma cura imediata, e que o tempo da convalescença não será imune a recaídas, mas sabemos bem que uma condição preliminar para qualquer terapia é um diagnóstico preciso, e nisto as palavras do papa Francisco são extremamente apropriadas.
Sim, há na cúria romana muitas pessoas cuja vida cristã é um testemunho de fé, de qualidade evangélica, de serviço leal e amoroso ao papa e à Igreja, e podem também ser pessoas com uma vida dupla «escondida e muitas vezes dissoluta», outras «covardes» que falam mal do irmão, ainda ouras «mesquinhas, infelizes» porque perderam a memória do seu Senhor e «olham apaixonadamente para a própria imagem e não veem a imagem de Deus impressa no rosto dos outros». Todavia, o papa Francisco não perde a esperança de ver a cúria reformar-se, converter-se numa «orquestra que produz barulho» desarmónico e que provoca «autodestruição ou fogo amigo», numa autêntica comunidade de discípulos do Senhor Jesus, numa comunidade de pecadores perdoados, capazes de seguir o convite de S. Paulo aos cristãos de Éfeso para viverem «segundo a verdade na caridade, procurando crescer em cada coisa para aquele que é a cabeça, Cristo, do qual todo o Corpo, bem ajustado e unido, por meio de toda a espécie de articulações que o sustentam, segundo uma força à medida de cada uma das partes, realiza o seu crescimento como Corpo, para se construir a si próprio no amor» (Ef 4, 15-16).
Já escrevi e volto a escrever: o papa Francisco faz-se eco do Evangelho e a sua paixão pelo Evangelho condu-lo a medir a vida da Igreja e de cada membro a partir da fidelidade ao Evangelho. Mas que não haja ilusões: quanto mais o papa percorre este caminho, mais desencadeará forças demoníacas operantes na história, e o resultado para os verdadeiros crentes será o surgimento da cruz de Cristo. Não é verdade que na Igreja se estará melhor, é verdade o contrário: a Igreja, efetivamente, só pode seguir Jesus na rejeição sofrida e na perseguição, e não poderá obter sucessos mundanos se incarnar a mensagem do seu Senhor.
Enzo Bianchi
«Nas mãos do oleiro/ o universo descobre-se/ inacabado»
Uma das formas fundamentais da sabedoria é a descoberta que cada um de nós vai fazendo, a ciclo e a contraciclo, a tempo e fora de tempo, na nossa vida. E numa vida adulta avançada, muitas vezes é isto que experimentamos: descobrimo-nos inacabados porque nos descobrimos nas mãos do oleiro.
É importante associar a experiência da vida em aberto e a experiência de estarmos a viver continuamente um processo de criação.
Este dia da nossa vida, em que parece que já não há nada para acontecer, em que parece que já vivemos tudo o que havia a viver, é um dia da criação.
«O que se instala na perfeição/ desconhece aquilo/ que só a indigência revela»
Um dos maiores obstáculos na vida espiritual é a ideia ou desejo de perfeição, porque eles se configuram como o anseio de sair para fora da nossa vida, imaginar uma vida outra, viver com a culpa ou a miragem de uma vida que não é nossa.
O objetivo do trabalho espiritual não é colocar-nos fora de órbita, mas reenviar-nos para o coração da existência, para o que somos, abrindo-nos para uma arte inesperada que é a da indigência - percebermos que na nossa imperfeição há uma sabedoria que está a ser revelada.
A verdadeira sabedoria, que nos faz tocar o coração da vida, é a da indigência, da pobreza, do tosco. Tudo o resto são fórmulas, que podem até ser úteis, mas não são a experiência; podem ser um belo sentimento, uma bela paixão, mas não são aquilo que nós podemos viver.
«Diariamente repito/ escolhas e imperfeições:/ a natureza dos seres em solidão»
É importante percebermos que a nossa escolha é sempre imperfeita, e que diariamente habitamos o imperfeito de forma estável.
É importante levarmos a sério a nossa própria vida, aquilo que somos, abraçarmos a nossa solidão. Porque esse abraço àquilo que somos de forma desprevenida, despojada, é a única possibilidade de um abraço de Deus, a única possibilidade de um abraço que nos salva.
«O meu desejo na primavera:/ que mesmo as flores selvagens/ venham florir à minha porta»
Gostamos da arte da jardinagem, e por vezes a nossa vida é uma arte permanente. Olhamos para o jardim, gostamos, não gostamos, intervimos, cortamos, cerceamos; é muitas vezes um jardim à maneira francesa, com aquele gosto pelas figuras geométricas, pelas formas, pelo jogo da simetria, pelo pandã.
Por vezes, a nossa forma de arrumação torna-se uma obsessiva ilusão, porque a vida é viva, isto é, é informe, em bruto, não trabalhada. Temos de desejar os nossos canteiros muito bem ordenados e floridos, mas também desejar que as flores selvagens, de que não conhecemos o nome nem a forma, venham florir à nossa porta.
Elas dão-nos o espelho do nosso inacabamento, dão-nos a impressão não de uma vida doméstica, que é sempre uma vida domesticada, mas a impressão de uma vida outra, de uma vida na sua torrente, na sua originalidade, na sua verdade.
«A vida monástica/ é uma forma de nudez/ que não se envergonha de si»
É essencial olharmos para uma das imagens iniciais do livro do Génesis, quando Adão e Eva se descobriram nus e se esconderam de Deus. Esta metáfora é também muito da nossa existência.
A nossa vida espiritual é muitas vezes uma arte de esconder, uma arte de não revelar. E a vida que mostramos a Deus é subtraída, é uma vida que nós queremos ser digna de ser vista por Deus, mas que deixa de ser a nossa própria vida.
Os mestres da vida espiritual mostram-nos precisamente o contrário: a Deus, temos de levar a nossa nudez, isto é, a nossa radical verdade, a vida destapada, desoculta e informe.
José Tolentino Mendonça
Escritor, Poeta e padre português
Publicado em 30.11.2014
Enzo Bianchi tem uma expressão radiosa sobre a beleza de Cristo. Diz ele: «A vida de Cristo era a vida boa, bela e beata [ou seja, feliz].» Esta vida conquistou os seus discípulos. Era de tal modo bela que os discípulos disseram que um homem assim só podia ser Deus. Conquistados, os cristãos correm para a conquistar.
Boa era aquela vida que passou pelo mundo fazendo o bem, acolhendo sempre, capaz de tudo dar: nem sequer o seu corpo teve para si, nem sequer conservou o seu sangue.
Bela, porque cheia de amigos, porque luminosa, por que pulsante de liberdade, porque nova, porque intensa e sem medos. Talvez porque todos nós, uns mais outros menos, sofremos de prisões. E o fascínio de Jesus, homem livre, ateia entusiasmos em cada um de nós. Não há estereótipos que se aguentem: se te fizeres leitor atento do Evangelho, não podes fugir ao encantamento da liberdade de Jesus. Liberdade a elevado preço.
Lê o Evangelho, respira a plenos pulmões a liberdade. Não a fixidez dos códigos, mas o vento que agita os cabelos dos viajantes.
A liberdade tem um segredo: o segredo é a porção de Deus que está em ti, que os verdadeiros mestres do espírito te convidam a descobrir e a adorar. Se fores fiel a esta porção de Deus, serás livre da escravidão dos outros e das coisas, das convenções exageradas, dos códigos sem alma, das expectativas dos outros, das imagens que os outros têm de ti. Contam para ti os olhos do teu Senhor, conta a pequena porção dele em ti (A. Casati).
E a sua vida era ditosa, feliz: era um rabino que tinha a alegria de viver, que gostava dos banquetes e das flores do campo, que sabia apreciar as belas pedras do templo e o perfume vertido sobre ele, o abraço das crianças e a carícia dos cabelos imbuídos de nardo da amiga.
Que significa obter a fé? É adquirir a beleza do viver, descobrir que é belo viver; é belo amar, criar, gerar, pôr a vida nas mãos de quem põe a sua vida nas tuas. É belo pertencer a Cristo e ao Evangelho, porque tudo tem um sentido positivo, tudo se encaminha para a vida e não para a morte, para um desfecho luminoso aqui e na eternidade. Para uma vida boa, bela e venturosa.
Ter vocação é adquirir a beleza do viver e reencantar a vida, recuperando a centralidade e a relevância do transcendente e do belo. Os crentes são chamados a conferir um novo encanto à existência, no rasto de «Cristo encantador» (Santo Ambrósio).
A beleza abre para o mistério e orienta para a decisão moral de aceitar o mistério. O bem, para atrair, para conservar a sua força de atração, deve igualmente ser belo. Porque é que devo praticar o bem e evitar o mal? Porque devo? Porque o coração me diz que, ao atuar assim, encontro a felicidade. O porque, está ligado, depende de um «sentir». O porque é estético.
Nestes tempos, já não basta recordar a autoridade de Deus, a sua diversidade ou a humildade e a fraqueza de Deus. Temos de redescobrir a beleza de Deus, propor um Deus de forma atraente: que aproxime, aglutine, mova, encante.
Perante a indiferença que nos rodeia, já não basta dizer que Deus é verdadeiro e bom, importa mostrar ainda que Deus é belo. A força que atrai o homem contemporâneo já não é a da constrição lógica da verdade, já não é a da constrição ética do bem, mas é a do esplendor do verdadeiro e do bom, isto é, da sua beleza.
Ermes Ronchi
In: Tu és Beleza, ed. Paulinas (Portugal)
Imagine, caro leitor, se você pegasse uma nave espacial e viajasse pelo universo na certeza de que não existe qualquer outra vida inteligente nele?
Imagine que ninguém existisse no Universo que pudesse trocar uma única palavra com você? Agora pense, em seguida, que quando você morresse, só restaria pedra, areia e estrelas (feitas de pedra e areia), em todo o Universo, coberto pela mais fina indiferença e silêncio.
Agora pense que você representa aqui, neste pequeno experimento cósmico, a humanidade. Esta possibilidade causa em você angústia? Tristeza? Solidão? Vazio? Indiferença? Uma sensação de beleza?
Confesso que estou mais próximo da última hipótese acima: a ideia de que somos a única espécie inteligente no universo me causa uma estranha sensação de beleza. Pensar que em nenhum outro recanto do universo exista alguém semelhante a nós, inteligentes, indagadores e desgraçados, pode ser uma experiência muito arrasadora daquilo que Kant chamava de sublime. A mais vasta solidão consciente jamais imaginada. E o mais avassalador desespero por isso mesmo.
Mas, sei que, normalmente, buscamos outras inteligências no Universo. Preferivelmente, mais avançadas e capazes de dar respostas esclarecedoras para perguntas do tipo "por que estamos aqui?", "de onde viemos?", "para onde vamos?", "vale a pena fazer o bem?" (sei que o filósofo relativista perguntaria "o que é o bem?", mas hoje não vou responder essa pergunta para ele).
Muita gente espera que essa inteligência seja algo divina. Sei mesmo que alguns aceitam que esse divino pode ser um astronauta, seguindo os delírios do velho livro de Erich Von Däniken, dos anos 60, "Eram os Deuses Astronautas?".
Sei que muita gente crê mesmo que exista vida inteligente fora da Terra. Num universo deste tamanho, só haver vida na Terra, como dizia o cientista Carl Sagan (que não acreditava em nenhum relato de contato com vida extraterrestre), seria "um enorme desperdício de espaço".
Mas, ainda assim, após ler a obra de Carl Sagan, em especial, "O Mundo Assombrado pelos Demônios", tendo a crer que todos os relatos de contatos com vida extraterrestre são alguma forma de combate à solidão e à terrível insignificância que nos assola.
Da cama vazia, mergulhada na solidão de vidas fracassadas afetivamente, ao dia a dia mergulhado na banalidade da vida do dinheiro, tocando mesmo as raias do desespero por saber se existe ou não vida após a morte, suspeito que a crença em vida inteligente fora da Terra seja feita da mesma substância da crença religiosa: busca de algum significado para a banalidade de nossas vidas anônimas. Não é à toa que todo mundo que diz ter um contato deste tipo se sente um tanto profeta ou vidente.
A Nasa, recentemente, disse que deverá preparar cientistas para este tipo de contato. Eu, pessoalmente, suspeito que a Nasa esteja fazendo um reposicionamento da marca porque a agência espacial americana não dá uma dentro há muito tempo. Resolveu concorrer com a Disney. Pra minha geração, que considerava um astronauta um herói absoluto, a ideia de que a Nasa "passou a acreditar em ET", é o fim do mundo.
Entendo que grande parte da humanidade se angustie com a questão metafísica se existe vida após a morte. Eu, sobre este assunto, estou mais próximo do que Freud disse numa entrevista cujo título, se não me engano, é "A Transitoriedade". Perguntado se ele não se preocupava com o que aconteceria com ele depois da morte, ele teria respondido: "Estou tão preocupado com isso quanto com o destino do botão do meu casaco".
Sei que uma resposta dessa parece blasé diante da suposta importância da questão em jogo. Mas, para mim, é a mesma coisa. Não me importa o que vai acontecer comigo depois da morte. Acho mesmo que este tipo de angústia é algo que se tem ou não se tem. Nunca penso na morte. Não porque, como todo mundo, não tenha medo dela, mas sim porque acabo me ocupando com alguma outra coisa mais urgente.
Suspeito, enfim, como o sábio poeta português Fernando Pessoa, que a metafísica seja uma forma de indisposição.
Luiz Felipe Pondé
In: Folha de São Paulo, 10.11.2014
O mais comum é agradecer o que nos foi dado. E não nos faltam motivos de gratidão. Há, é claro, imensas coisas que dependem do nosso esforço e engenho, coisas que fomos capazes de conquistar ao longo do tempo, contrariando mesmo o que seria previsível, ou que nos surgiram ao fim de um laborioso e solitário processo. Mas isso em nada apaga o essencial: as nossas vidas são um recetáculo do dom.
Por pura dádiva recebemos o bem mais precioso, a própria existência, e do mesmo modo gratuito fizemos e fazemos a experiência de que somos protegidos, cuidados, acolhidos e amados. Se tivéssemos de fazer a listagem daquilo que recebemos dos outros (e é pena que esse exercício não nos seja mais habitual), perceberíamos o que a poetisa Adília Lopes repete como sendo a sua verdade: «sou uma obra dos outros». Todos somos.
A nossa história começou antes de nós e persistirá depois. Somos o resultado de uma cadeia inumerável de encontros, de gestos, boas vontades, sementeiras, afagos, afetos. Colhemos inspiração e sentido de vidas que não são nossas, mas que se inclinam pacientemente para nós, iluminando-nos, fundando-nos na confiança. Esse movimento, sabemo-lo bem, não tem preço, nem se compra em parte alguma: só se efetiva através do dom.
Por isso é que quando ele falta a sua ausência indelével faz-se sentir a vida inteira. O seu lugar não consegue ser preenchido, mesmo se abunda uma poderosa indústria de ficções de todo o tipo com a inútil pretensão de ser oblívio e substituição para essa espécie de fala geológica que nos morde.
Hoje, porém, dei comigo a pensar também na importância do que não nos foi dado. E a provocação chegou-me por uma amiga que confidenciou: «Gosto de agradecer a Deus tudo o que Ele me dá, e é sempre tanto que nem tenho palavras para descrever. Sinto, contudo, que lhe tenho de agradecer igualmente o que Ele não me dá, as coisas que seriam boas e que eu não tive, o que até pedi e desejei muito, mas não encontrei. O fato de não me ter sido dado obrigou-me a descobrir forças que não sabia que tinha e, de certa maneira, permitiu-se ser eu».
Isto é tão verdadeiro. Mas exige uma transformação radical da nossa atitude interior. Tornar-se adulto por dentro não é propriamente um parto imediato ou indolor. No entanto, enquanto não agradecermos a Deus, à vida ou aos outros o que não nos deram, parece que a nossa prece permanece incompleta. Podemos facilmente continuar pela vida dentro a nutrir o ressentimento pelo que não nos foi dado, a compararmo-nos e a considerarmo-nos injustiçados, a prantear a dureza daquilo que em cada estação não corresponde ao que idealizamos.
Ou podemos olhar o que não nos foi dado como a oportunidade, ainda que misteriosa, ainda que ao inverso, para entabular um caminho de aprofundamento... e de ressurreição. Foi assim que numa das horas mais sombrias do século XX; desde o interior de um campo de concentração, a escritora Etty Hillesum conseguiu, por exemplo, protagonizar uma das mais admiráveis aventuras espirituais da contemporaneidade. No seu diário deixou escrito:
«A grandeza do ser humano, a sua verdadeira riqueza, não está naquilo que se vê, mas naquilo que traz no coração. A grandeza do homem não lhe advém do lugar que ocupa na sociedade, nem no papel que nela desempenha, nem do seu êxito social. Tudo isso pode ser-lhe tirado de um dia para o outro. Tudo isso pode desaparecer num nada de tempo. A grandeza do homem está naquilo que lhe resta precisamente quando tudo o que lhe dava algum brilho exterior, se apaga. E que lhe resta? Os seus recursos interiores e nada mais.»
Pe. José Tolentino Mendonça
(In Expresso, 18.4.2014)
Foi o que afirmou, em entrevista a Giacomo Galeazzi (Vatican Insider) o Pe. Adolfo Nicolás, superior geral dos jesuítas, sobre o Sínodo da Família. Ele é um dos padres sinodais e acredita que “o Sínodo está completando o Concilio”.
O padre Adolfo Nicolás, superior geral dos jesuítas, atravessa a pé a entrada vaticano do “Petrino” com uma pasta preta na mão, onde se pode ler o lema dos jesuítas escrito em árabe: “Tudo para maior glória de Deus”.
Será atualizada a moral familiar?
A discussão, livre e franca, está se dirigindo para uma mudança, ou seja, a adequação pastoral à realidade dos tempos de hoje. É um sinal histórico, porque nestes anos tem havido forças que se empenharam em fazer a Igreja retroceder no que diz respeito à grande estação conciliar.
E, enquanto à comunhão aos divorciados que voltaram a se casar?
Não se pode impedir que o Sínodo discuta a este respeito, como queriam alguns. Os bispos não foram convocados para insistir em ideias abstratas a golpes de doutrina, mas para buscar soluções para questões concretas. É muito significativo que o Papa e muitos padres sinodais tenham feito referência, em suas intervenções, aos textos do Concílio Vaticano II. Também o cardeal Martini, até nos seus últimos dias de vida, esperava que se expressasse essa Igreja que escuta.
Os “conservadores” dizem que a doutrina está em perigo...
Não é correto absolutizar. Por exemplo, o caso das uniões de fato. Isso não quer dizer que se existe um defeito tudo está mal. Mais ainda, há algo bom onde não se causa dano ao próximo. Francisco insistiu a esse respeito: “Todos somos pecadores”. É preciso alimentar a vida em todas as instâncias. Nossa missão é fazer as pessoas se aproximarem da Graça, e não rejeitá-las com preceitos. Para nós, jesuítas, é uma prática cotidiana. A Inquisição sabe muito bem disso.
Como?
Nosso fundador, S. Inácio de Loyola, foi submetido oito vezes ao exame da Inquisição depois de ter falado de escutar o Espírito. Naquele momento, como agora, para nós conta mais o Espírito, porque vem de Deus; as regras e as normas, no entanto, vem dos homens.
O que a moral familiar e sexual precisa é doçura e fraternidade. Não se trata de dividir, mas de harmonizar. Não se pode evangelizar as pessoas a golpe de Evangelho. Somente a decisão de concentrar-se em Cristo nos salva de estéreis disputas, das controvérsias ideológicas abstratas. As lacunas e as imperfeições não invalidam a inteireza da evolução da família na sociedade das últimas décadas. Se há algo negativo, não significa necessariamente que tudo seja negativo.
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