«Havia bom senso; mas estava oculto, por medo do senso comum»: esta é uma famosa frase do romance "Os noivos", de Alessandro Manzoni, que distingue os dois «sensos», colocando-os em contraste.
O primeiro, com efeito, poderia ser reconduzido à ideia de "sabedoria". Ele traduz a capacidade de examinar pessoas, coisas e acontecimentos com critério e juízo. É o dom do discernimento e da sensatez, é o evitar os extremos passionais, é o esquivar-se ao facciosismo, é o equilíbrio no saber julgar, e assim por diante.
Trata-se de um dom precioso que o cristão deve implorar ao Espírito Santo, fonte, precisamente, dos dons da sabedoria e do conselho.
Emboscado, todavia, há uma espécie de momice do bom senso, o «senso comum», que se disfarça com as características do critério, equilíbrio e sensatez acima evocadas, mas que na realidade é lugar comum, banalidade, tacanhez, conformidade, mesquinhez, hipocrisia.
François de La Rochefoucauld, moralista francês do século XVII, descrevia assim, nas suas "Máximas", um aspeto deste falso bom senso: «Raramente atribuímos o bom senso aos outros, a não ser àqueles que estão de acordo connosco».
Sim, porque o senso comum é muitas vezes usado para vantagem própria, é colocar ao próprio serviço a verdade de tal modo que se deixa a aparência mas corrói-se a substância.
Como Salomão no dia da sua entronização, peçamos a Deus «um coração que saiba sempre distinguir o bem do mal» (1 Reis 3, 9). É este o verdadeiro «bom senso».
P. (Card.) Gianfranco Ravasi
Madre Teresa: A misericórdia como prática, a defesa da fé, o papel da mulher na Igreja
A santidade de Madre Teresa de Calcutá é a principal razão para ser declarada santa, no próximo domingo, mas esta canonização também tem algo a dizer a outros níveis: a misericórdia tornada prática, a defesa da fé face aos críticos e o papel da mulher na Igreja católica.
Quando Madre Teresa se tornar Santa Teresa de Calcutá, a 4 de setembro, 19 anos menos um dia após a sua morte (5 de setembro de 1997, aos 87 anos), espera-se que a celebração, no Vaticano, presidida pelo papa Francisco, seja o maior evento do Ano da Misericórdia. A sua beatificação, em 2003, atraiu cerca de 300 mil pessoas à praça de S. Pedro e imediações, e os organizadores antecipam que a afluência deste domingo seja maior.
Nos últimos dias é provável que tenhamos ouvido, mais do que uma vez, que Francisco está "a fazer" de Madre Teresa uma santa. Os teólogos dirão, porém, que nada está mais longe da verdade. A crença católica sustenta que se alguém é verdadeiramente santo, então já está no céu. Uma canonização é entendida como um reconhecimento do que já aconteceu.
Por outras palavras, a canonização não é para o santo, é para nós, que erguemos um novo modelo de santidade e uma nova amizade no céu, a quem toda a Igreja pode rezar. Vale também a pena relembrar que a santidade, pelo menos em teoria, é um dos processos mais democráticos na vida católica. É suposto começar com o que é tradicionalmente conhecido como "culto", ou seja, a devoção popular a uma dada figura que teve reputação de santidade. A declaração oficial ocorre só depois da investigação do candidato e, por fim, se todos os critérios estiverem preenchidos, for aplicado o selo de aprovação.
Com toda a honestidade, houve alguns poucos casos ao longo dos anos onde essa vontade popular é algo difícil de encontrar, mas não é definitivamente este o caso. Como João Paulo II, de quem a multidão gritava "Santo subito!" na missa do funeral, Madre Teresa foi uma santa nos corações da maior parte dos católicos muito antes de o seu nome ter entrado no cânone oficial.
Contudo, há três outros aspetos que se combinam para fazer da celebração um dos mais fascinantes e potencialmente influentes acontecimentos na vida católica recente.
Manual de como fazer misericórdia
A misericórdia é, no seu núcleo, uma virtude espiritual, mas o papa Francisco tem insistido ao longo deste Ano que, para ela ser sincera, deve ter uma expressão tangível em ações concretas de serviço. Na tradição cristã, os exemplos tornam-se presentes nas obras corporais de misericórdia, que incluem alimentar os esfomeados, dar abrigo aos sem-teto, visitar os doentes, e assim por diante.
Poucas figuras católicas alguma vez, e provavelmente nenhuma no seu tempo, ilustraram melhor esse impulso para a misericórdia concreta do que Madre Teresa, desde os centros para doentes com SIDA às casas de acolhimento para crianças perdidas e refugiados. Não houve virtualmente qualquer espécie de sofrimento humano a que ela não tivesse dado uma resposta prática.
Nesse sentido, Santa Teresa de Calcutá ficará para sempre como um "manual de como fazer misericórdia" em carne e sangue, uma espécie de guia do utilizador para o que a misericórdia é na prática. Daqui por diante Francisco não tem de oferecer qualquer explicação detalhada do que deseja que as pessoas façam; tudo o que tem de fazer é apontar para Madre Teresa e dizer: «Tenta ser como ela». Por outras palavras, é possível sustentar que o Ano da Misericórdia alcança o seu auge espiritual no próximo domingo.
Como veículo para a aplicação prática da misericórdia, Francisco apelou a todas as dioceses do mundo para lançarem uma nova iniciativa durante este Ano Santo, como uma clínica, escola ou hospital, para assegurar que o seu espírito continua após o encerramento formal do Jubileu, a 20 de novembro. Se os responsáveis diocesanos estão tentados a murmurar sobre a falta de tempo ou recursos, Madre Teresa também oferece outro valioso exemplo. Não é realmente necessário ter grandes bolsos para infraestruturas gigantes que respondam ao apelo, só a inabalável vontade de o tornar real.
Defesa da fé em ação
O bispo auxiliar de Los Angeles, Robert Barron, uma das figuras mais entendidas na paisagem católica americana no que diz respeito à fé na cultura secular, disse-me recentemente que acredita que um dos "evangelistas" mais efetivos das últimas décadas foi Christopher Hitchens, cuja agressiva argumentação a favor do ateísmo inspirou uma geração de novos e determinados discípulos.
Quando Hitchens começou a aparecer em debates públicos com líderes religiosos, referiu Barron, normalmente limpava-os todos: «Era como dá-los aos leões... ficavam completamente destruídos».
Porém Hitchens perdeu claramente pelo menos um dos seus principais argumentos, que foi a sua famosa tentativa, em 1995, de roubar a Madre Teresa a sua auréola com o polémico livro "A posição missionária".
Hitchens acusou Madre Teresa de uma variedade de duvidosas práticas morais, desde levar dinheiro de ditadores a gerir instalações médicas abaixo dos padrões. A sua objeção geral era de que Madre Teresa não estava realmente interessada em servir os pobres, mas em fazer propaganda das suas obscurantistas crenças católicas.
Foi um ataque devastador, talvez o melhor murro que uma crítica secular tenha acertado numa proeminente figura católica além do papa, e certamente voltará a estar em debate nestes dias que antecedem a canonização.
Contudo, no tribunal da opinião popular, Hitchens foi um fiasco. Em dezembro de 1999, no fim do século XX, a empresa de sondagens Gallup perguntou a norte-americanos qual a pessoa que mais admiravam nos últimos 100 anos. Madre Teresa surgiu destacadamente em primeiro lugar, com 49 por cento, seguindo-se Martin Luther King Jr., com 34 por cento.
Ironicamente, Madre Teresa prevaleceu sem que alguma vez tenha pronunciado uma palavra de refutação - o máximo que alguma vez falou sobre Hitchens foi «eu rezarei por ele». Na verdade, claro, ela não precisava de dizer nada, porque as pessoas viram toda a sua vida como uma refutação da crítica de Hitchens.
Mulheres na Igreja
Se alguém quisesse compor uma pequena lista das mais icónicas figuras católicas da segunda metade do século XX, em termos de personalidades mais faladas, celebradas, fotografadas, ímanes de multidões, capas de revistas, prémios, altas taxas de aprovação e assim por diante, há provavelmente três que se destacam: papa João XXIII, papa João Paulo II e Madre Teresa.
Os dois primeiros foram significativamente ajudados pelo facto de se terem tornado papas. Se Angelo Roncalli tivesse permanecido como patriarca de Veneza ou Karol Wojtyla como arcebispo de Cracóvia, é improvável que tivessem subido ao palco mundial como veio a suceder.
Madre Teresa, porém, fez tudo sem mais. O único cargo que alguma vez ocupou foi o de superiora das Missionárias da Caridade, congregação por ela fundada, dado que estava demasiado ocupada a servir os pobres.
O papa Francisco criou recentemente uma comissão para ponderar a ordenação diaconal de mulheres, levantando um tabu de longa data na discussão oficial de tal ideia. Ainda que ele tenha afastado a possibilidade da ordenação sacerdotal de mulheres, isso não afastou o debate sobre o assunto nos círculos católicos.
Os pronunciamentos oficiais podem dizer o que quiserem sobre a «complementaridade» e o sacerdócio como serviço, mas há algumas pessoas, incluindo dentro da Igreja, que nunca acreditarão que as mulheres no catolicismo sejam mais do que cidadãs de segunda classe enquanto estiverem excluídas da ordenação.
O que a Madre Teresa claramente ilustra, todavia, é que não é preciso um cabeção ou uma cruz peitoral para exercer influência na Igreja católica.
Ela foi uma mulher, afinal de contas, que não teve hesitações em dizer a bispos e padres o que fazer, e ao longo dos anos a maior parte deles fê-lo - não por causa da cadeia de comando, mas porque foram inspirados, e frequentemente até impressionados, pelo poder espiritual que ela libertava.
Quaisquer que forem os argumentos a favor das diaconisas que a nova comissão vier a considerar, há pelo menos um que podem afastar da mesa, que é o de que sem se tornarem parte do clero, as mulheres (ou os leigos em geral) não têm acesso à liderança.
Se alguém foi um modelo de líder católico de sucesso foi Madre Teresa. Como mais nova santa da Igreja, ela continuará sem dúvida a liderar num modo completamente novo.
John L. Allen Jr.
In "Crux"
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
Publicado em 29.08.2016 no XNPC
«O sapato que fica bem a uma pessoa é pequeno para outra: não há uma receita de vida que vá bem para todos.» Esta consideração é de um dos pais da psicanálise, Carl Gustav Jung, no seu ensaio "O homem moderno à procura de uma alma". Encontro-a citada num semanário alemão que realiza um inquérito sobre modelos de vida na sociedade contemporânea.
Parte-se precisamente daquela observação para chegar a uma conclusão antitética: a homologação, favorecida pela comunicação de massa, impôs "receitas de vida" comuns. Não havia seguramente necessidade de um inquérito para saber que se avança em rebanho: basta examinar certa modas dos jovens e a sua linguagem (mas isto, mais ou menos, vale também para os adultos).
É também fácil compreender que Jung está errado e tem razão ao mesmo tempo. Está errado porque existe um tecido comum de humanidade, porque há valores permanentes universais, porque o bem e o mal nunca se devem anular segundo as situações e as conveniências. Mas tem fortemente razão porque nos remete para a singularidade da pessoa, melhor, de cada pessoa, para a identidade do indivíduo, para a multiplicidade das experiências.
É por isso que uma moral genuína deve ser firme nos princípios e apoiada em valores objetivos, mas deve ser respeitosa das consciências e capaz de incarnar com rigor, mas também com compreensão e misericórdia, esses princípios e valores na concretude da vida de cada um. Em suma, como dizia o escritor americano Oliver W. Holmes (1809-1894), «a vida é como pintar um quadro, não como fazer uma soma».
P. (Card.) Gianfranco Ravasi
As festas de Olímpia no Peloponeso eram as mais antigas e celebradas da Grécia clássica, ao ponto de se tornarem, na sua cadência quadrienal a medida de rferência da própria cronologia. As várias competições desportivam tinham como base uma visão geral da pessoa, da sociedade e da própria cultura. A "paideia", isto é, a formação grega da pessoa, associava-se à "euritmia", ou seja, a harmonia física (pense-se nas imagens das pinturas vasculares ou no "Discóbolo" do escultor "Míron). As mesmas Olimpíadas ligavam-se à poesia, como atestam as "Olímpicas", célebres odes de Píndaro (séc. V a.C.) e as dos poetas Simónides e Baquilides.
Por ocasião do acontecimento olímpico do Rio de Janeiro, tentaremos um esboço sobre a relação entre desporto e espiritualidade no cristianismo. O judaísmo, a esse respeito, foi mais reticente, por causa do risco de contaminação idolátrica, como aconteceu em alguns judeus "traidores" durante a grande epopeia dos macabeus. Eles, com efeito, entravam nus nos "ginásios", as sedes educativas e desportivas helenistas, e chegavam ao ponto de se submeter a uma intervenção cirúrgica, dita em grego "epispasmós", para eliminar o sinal da circuncisão.
A reserva anti-idolátrica estava presente também em alguns Padres da Igreja - reserva que se alargava aos espetáculos teatrais -, que se opuseram aos Jogos Olímpicos, como Ambrósio, que impede o imperador romano Teodósio de os repropor em 393. Na raiz, além do risco de contaminação com a idolatria e o paganismo, havia a crítica ao exibicionismo dos atletas que, através do exercício físico, pareciam contradizer ou deformar a obra do Criador em relação ao corpo humano.
Todavia, diferente foi a atitude nas origens cristãs primordiais. O próprio Jesus, efetivamente, tinha partido do jogo das crianças para definir a geração que o estava a ouvir, incapaz de uma opção como aqueles jovens que, «estando sentados na praça gritam aos companheiros: tocámos a flauta e não dançastes, entoámos lamentações e não batestes no peito» (Mateus 11, 16-17). Dito por outras palavras, àquelas crianças tinham sido propostos os jogos mais díspares, como imitar uma festa de casamento ou um funeral, mas elas tinham sempre oposto uma recusa pouco amigável.
É, contudo, sobretudo S. Paulo que, por diversas vezes, recorre a metáforas desportivas para delinear o compromisso apostólico e do cristão. Em particular, ele faz referência à corrida no estádio e ao pugilismo, dois desportos muito praticados na sociedade greco-romana.
Interessante é um parágrafo da Primeira Carta aos Coríntios onde é usado o léxico técnico desportivo: «Não sabeis que nas corridas no estádio todos correm, mas só um conquista o prémio? Correi também vós de modo a conquistá-lo. Mas cada atleta ("agonizómenos", "que compete lutando") submete-se em tudo à disciplina. Fazem-no para onter uma coroa corruptível, nós, ao contrário, incorruptível. Eu, portanto, corro mas não como quem está sem meta. Faço pugilato ("pyktéuô", "faço com murros"), mas não como alguém que bate no ar. Na realidade, atinjo duramente ("hypopiàzô", literalmente "atinjo sob os olhos", isto é, no ponto mais fraco do adversário) o meu corpo e reduzo-o à escravidão, para que não suceda que, depois de ter pregado aos outros, eu próprio seja desqualificado» (9, 24-27).
Também naquela espécie de testamento que ele endereça ao seu fiel colaborador Timóteo, o apóstolo, depois de ter usado imagens rituais (o ser «entregue em libação»), náuticas ou nómadas («desfazer as velas» ou «as tendas») e militares («combati a boa batalha»), recorre à cena desportiva da corrida no estádio para exprimir o seu compromisso total em conservar alta a chama da fé. A frase em grego é até ritmada, "ton drómon tetélexa, ten pístin tetéreka", «levei ao termo a corrida, conservei a fé» (2 Tomóteo 4, 7). E continua, referindo-se sempre à simbologia desportiva: «Resta-me a coroa de justiça que o Senhor, justo juiz, me entregará nesse dia, não só a mim mas a todos aqueles que esperaram com amor a sua epifania» (4, 8).
Chegados aqui não podemos, contudo, ignorar um capítulo que é dramaticamente verdadeiro também para o desporto. Em termos religiosos é o exercício da liberdade no pecado que atinge também este âmbito. Assim, o jogo-desporto torna-se lucro económico, e já não é mais livre exercício; o espetáculo transforma-se em doença violenta (a palavra italiana "tifosi", "adeptos", baseia-se no grego "typhos", "febre"); a beleza e a força física são devastadas pelo "doping", falsificando o exercício desportivo que nas Olimpíadas gregas era dito "àskesis", isto é, "ascese". Ela amplia ao máximo a potencialidade do organismo, tornando o ato físico natural e espontâneo, como acontece à dançarina clássica ou ao atleta autêntico. Além disso, o jogo, de instrumento até de cura ("ludoterapia"), degenera em formas maníacas ("ludopatia"). As sublevações mais ameaçadoras e obscuras do ser humano revelam-se através da brutalidade, a vulgaridade e o racismo nos estádios.
Uma nota particular de partilha e de apoio merecem, ao contrário, os atletas dos Jogos Paralímpicos que não se deixam vencer pela sua deficiência, empenhando-se em superá-lo num desafio contínuo a ir mais longe, em direção a uma meta mais prestigiosa. Assim, além de representarem um verdadeiro e próprio exemplo no desafiar os limites das possibilidades físicas - alma de toda a competição desportiva -, são chamados a superar também a fasquia da sua deficiência. São, por isso, pessoas que podemos legitimamente considerar "duplamente atletas".
As Paralimpíadas nasceram oficialmente nos anos 60 do século passado, contribuindo para contar e representar inúmeras histórias de feitos atléticos, acompanhadas de emoções, sentimentos, lágrimas e sorrisos, alegrias e sofrimentos. Permitiram descrever autênticos feitos heróicos, ajudando-nos a superar preconceitos ancestrais, lugares-comuns destituídos de qualquer fundamento. Comovemo-nos com estas mulheres e estes homens, vendo demolidos os muros da indiferença e do ceticismo, da suficiência coberta de comiseração, admirando-os pela coragem e pela orgulhosa dignidade dos seus gestos atléticos, convictos de que as medalhas por eles conquistadas não valem menos do que as olímpicas.
Concluímos regressando à relação entre jogo e religião, fazendo-o, em espírito ecumênico, com uma bela representação que Lutero delineia da meta paradisíaca precisamente na base da analogia do jogo: «Então o homem com o Céu e com a Terra, jogará com o Sol e com todas as criaturas. E todas as criaturas experimentarão um prazer imenso e uma felicidade lírica e rirão contigo, Senhor». Também o monge Notker, da abadia de S. Galo, falecido em 912, poeta, músico e bibliotecário, descreveu assim a Igreja que joga em paz sob a videira fecunda, símbolo de Cristo, no jardim celeste: «Eis, ó Cristo, a tua Igreja que joga serena e em paz á sombra de uma videira luxuriante».
Card. Gianfranco Ravasi
Presidente do Conselho Pontifício da Cultura
In "Italpress"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 31.07.2016 no SNPC
Para contemplar essa cena é preciso voltar no tempo e viajar no espaço. Quase 500 anos atrás, estamos num castelo da Espanha onde vamos encontrar um homem deitado num leito.
Ele chama-se Inácio e pertence à família de Loyola. Criado na corte, é um homem cheio de sonhos e vaidades. Mas agora, ali, naquela cama, tudo nele é a humilhação e o sofrimento de um soldado derrotado na guerra.
Mas, vamos observá-lo, contemplar seu rosto e ouvir o que nos diz o seu coração.
De repente o guerreiro acorda de um longo, doloroso e sobressaltado sono. O corpo dói horrivelmente. Qualquer movimento na cama, por menor que fosse, era como se mil punhais se cravassem em suas pernas, com a dor subindo como fogo até o cérebro.
Inácio tenta lembrar. As imagens eram confusas. A febre ainda lhe queima a fronte. Aos poucos, entre mil dores, cena de batalha vem à sua mente.
O bombardeio intenso. O ataque à muralha. A resistência teimosa, heróica, mas inútil, impossível. Pamplona em chamas. A explosão, o vazio, o nada. Lembranças truncadas pela ferida aberta, o sofrimento, a dor.
Acorda mais uma vez sem noção de tempo e espaço. Apenas as paredes em volta, a cama, as pernas imobilizadas por ataduras sob as quais parece haver ferrões em brasa. Então, aos poucos, vai tomando consciência de tudo.
Há meses esta cena se repete.
Inácio se recupera lentamente dos terríveis ferimentos da batalha. É uma surpresa o fato de estar vivo, apesar de ainda haver riscos.
Ao lado, na cabeceira, os dois únicos livros que havia para ler. Ele estende a mão e toma “A vida dos santos”. Folheia o texto que quase decorara, tantas vezes o lera, mas seus olhos estão longe, atravessam as páginas do livro como se fossem transparentes e fixam-se na lembranças de outros tempos. O ambiente da corte, as festas, o luxo e a riqueza. Belas mulheres e belos sonhos. Conquistas e vitórias.
Feitos heróicos a serviço do rei, títulos de nobreza...
Tais recordações enchiam o seu coração de entusiasmo. Mas logo uma fisgada na perna traz outra lembrança... a derrota, o fracasso. Aquela batalha perdida não havia destroçado apenas sua carne e seus ossos. Muitos sonhos foram também dilacerados...
Inácio, então, vê-se tomado por uma grande melancolia. Seu coração se aperta e um nó na garganta anuncia mais uma madrugada de insônia.
Se vivesse em nosso tempo, Inácio talvez se espantasse com a letra de uma canção de Guilherme Arantes que retrata bem o seu momento...
Quando eu fui ferido, vi tudo mudar, das verdades que eu sabia.
Só sobraram restos que eu não esqueci. Toda aquela paz que eu tinha.
Eu que tinha tudo hoje estou mudo, estou mudado à meia-noite, à meia luz
Pensando!
Daria tudo, por um modo de esquecer...
Eu queria tanto estar no escuro do meu quarto, à meia-noite, à meia luz
Sonhando!
Daria tudo, por meu mundo e nada mais...
Não estou bem certo se ainda vou sorrir sem um travo de amargura.
Como ser mais livre, como ser capaz, de enxergar um novo dia...
Eu queria tanto estar no escuro do meu quarto
À meia-noite, à meia luz
Sonhando!
Daria tudo, por meu mundo e nada mais...
Sem um rádio ou uma canção a que recorrer, os olhos de Inácio abrem-se para o livro em suas mãos. Lê, a princípio, para ocupar o tempo, mas, aos poucos, as histórias ali narradas fazem brotar em seu espírito outros sonhos, um entusiasmo novo, diferente...
Naquele leito, reduzido ao repouso absoluto, Inácio de Loyola, o guerreiro orgulhoso, não tinha outra coisa a fazer a não ser sonhar, pensar e repensar a vida.Contemplando seus sentimentos, a partir das lembranças que lhe vinham ao coração, iniciou um processo de redescoberta de si mesmo, do sentido da própria vida. Inácio sai daquela cama para começar de novo. Mais que isso; para começar DO novo.
Uma novidade que vinha do gênesis dos milênios.
Aos poucos ele irá descobrir que foi amado primeiro, e que a única forma de responder a este amor é com uma vida de amor. Uma vida em que, em tudo, ele se sentirá chamado a amar e servir...
Retomando a caminhada do ano, após a pausa de Julho, rezemos como Inácio de Loyola rezou.
Senhor, nosso Deus, dá-nos a Tua força, para que cada um de nós,
assim como teu filho, Inácio de Loyola,
possa RECOMEÇAR a vida, a cada dia com o coração cheio de entusiasmo, alegria, disposição.
Que a tua graça esteja em nós,
recriando sempre o desejo de “em tudo, amar e servir” aos que estão ao nosso lado,
companheiros de caminhada pela vida.
Toma em tuas mãos os dons que Tu mesmo nos deste
e faz com que tudo em nós e à nossa volta possa acontecer para a maior glória do teu Reino.
Fica conosco, Senhor, agora e sempre,
Amém!
Eduardo Machado
Educador
Ainda que um homem misture a massa, é sempre Deus o construtor. O destino mistura as cartas, mas somos nós a jogá-las.
Juntamos duas frases distantes entre elas quase três milênios, mas tematicamente complementares. A primeira provém da antiga cultura egípcia: trata-se de um dito da Sabedoria de Amen-em-ope, escrito do século IX-VIII a.C., que deixou um importante traço também na Bíblia (no livro dos Provérbios 22,17 - 24,22). A segunda citação está presente nos Aforismos da Sabedoria do Viver, do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860).
São duas as perspetivas com que se examina o destino ou, para o crente, a Providência. De um lado, exalta-se a eficácia da ação humana, com a sua liberdade; do outro, reconhece-se que existe qualquer coisa, ou Alguém, que nos ultrapassa e que intervém no projeto da história humana.
Esta duplicidade deve conservar-se, segundo um equilíbrio que não é nem garantido nem simples. É preciso continuar a misturar a cal necessária para a construção do edifício da nossa existência, trabalhando com empenho e responsabilidade.
Mas deve ter-se também a consciência de que não somos os únicos árbitros do resultado: não só porque nos apoia a graça divina, mas também porque há um mistério no projeto global do ser e da história.
Temos, portanto, nas mãos cartas que não valem uma sequência lógica e definida, mas somos nós que as devemos jogar com inteligência e habilidade para que obtenham um resultado positivo.
Os extremos da resignação desencorajada, convencida de que os jogos já estão todos decididos, e da eficácia orgulhosa, certa de que tudo depende de nós, devem por isso ser evitados. A vida é dom e compromisso, é surpresa e certeza, é aceitação e reação ao mesmo tempo.
P. [Card.] Gianfranco Ravasi
In "Avvenire"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 10.05.2016 no SNPC em Portugal.
O sinal revelador de que já se deixou de amar torna-se manifesto quando os sacrifícios começam a custar; o sinal de que se ama pouco acende-se quando te dás conta de que os estás a fazer.
É verdade que há outros sinais: por exemplo, um escritor afirmava que quando dois namorados começam a explicar-se e a justificar-se, é porque estão prestes a deixarem-se.
Mas não há dúvida de que é o egoísmo, quando aflora de maneira prepotente, o indício de que o amor está a regredir. Sente-se o peso daquilo que se faz pelo outro, começa a calcular-se quanto se dá e quanto se recebe.
Quando alguém se dá conta de que está em crédito de bem em relação a outra pessoa, então está aí o sinal claro de que começou o declínio do amor.
Uma mãe ou a um pai, se são verdadeiramente tais, não são esmagados pelo cansaço de um trabalho stressante, de vigílias e de sacrifícios vários quando o fazem pelo seu filho.
A característica fundamental do amor é a gratuidade, não se admite o interesse ou o cálculo; não se espera recompensa nem gratidão, porque para a pessoa amada tu só queres o seu bem e a sua felicidade.
A sociedade contemporânea, que é decididamente mais egoísta, desabituou-nos ao gratuito puro, ao dar sem pedir em troca, ao sacrifício de si por amor. É por isso que não conhece a verdade daquela frase de Jesus, referida por Paulo: «Há mais alegria no dar do que no receber» (Atos dos Apóstolos, 20, 35).
P. [Card.] Gianfranco Ravasi
O maior e mais grave desafio da sociedade brasileira é recompor o tecido da cultura, cheio de buracos. Aí está um dos mais relevantes desarranjos a serem enfrentados para encontrar saídas diante dos muitos problemas que afligem o país. A cultura sustenta as dinâmicas da sociedade e, por isso, os muitos buracos em seu tecido são preocupantes. Não se pode deixar de constatar que a extrema fragilidade no mundo da política deve-se a este horrendo fenômeno: o esgarçamento da cultura. No conjunto de tudo o que precisa ser corrigido está a política partidária, atualmente uma das mais potentes ameaças ao tecido cultural. Fragilizado, esse tecido não contribui suficientemente para o surgimento de líderes capazes de apontar novos rumos e promover a união.
Pensar o Brasil, neste momento, não é apenas uma questão de intervenção no mundo da política. Incontestavelmente, isso se configura em necessidade urgente em razão do lamaçal que se permitiu formar. Contudo, é preciso ir além e considerar o seríssimo problema de ordem antropológica, que é mais abrangente. A cultura brasileira precisa de reparos, seu tecido carece de remendos para que não aumentem os rasgões. Necessita de investimento para recompô-la, permitindo-a sustentar dinâmicas exigidas pela complexidade da vida moderna. No palco das discussões e preocupações não podem estar simplesmente mudanças de poder partidário, nem mesmo o considerável e relevante cumprimento da Constituição. A sociedade brasileira precisa de algo mais: uma correção de relevância antropológica que qualifique a cultura, sustentáculo indispensável para o funcionamento social, configuração com capacidade para fazer surgir ações inspiradas no bem e na justiça.
Essa urgente necessidade precisa estar na pauta de todos os segmentos da sociedade. Não se pode ficar somente, e o tempo todo, vendo “o circo pegar fogo” na política. Desconsiderar a importância de reformular a cultura é assistir passivamente o suicídio de uma sociedade, com tristes consequências. Todos estão ameaçados diante dos graves desarranjos culturais, como a generalizada indiferença relativista, apontada pelo Papa Francisco na sua Exortação Apostólica Alegria do Evangelho, relacionada com a desilusão e a crise de ideologias. Por um lado, há uma reação a tudo o que parece totalitário. Por outro, recrudescem-se os fundamentalismos, inclusive religiosos, que alavancam terrorismos de todo o tipo. A vida social está prejudicada, portanto, não apenas pelos números da economia, mas, dentre outros fatores, por uma cultura em que cada um pretende ser portador da verdade. Isso compromete a cidadania, pois inviabiliza a união de cidadãos em busca de projetos comuns, necessários ao bem de todos, que estão além de simplesmente contemplar ambições pessoais.
Os desgastes da cultura que a incapacitam na tarefa de sustentar o bem e a justiça têm uma lista enorme de razões. Consequentemente, para corrigi-la, várias atitudes precisam ser assumidas, a cada dia, e por todos. Uma exigência que pede, de todos os segmentos, urgente inovação para que possam contribuir na busca da solução dos problemas da contemporaneidade. É triste constatar que instituições - religiosas, governamentais, educacionais e tantas outras - continuem a funcionar como há trinta, quarenta anos, sem se atualizar. Gastam muito, inclusive tempo e a paciência alheia, e não trazem novas respostas. Não conseguem ser força para refazer o tecido da cultura e alavancar mudanças. As consequências são muitas e graves, a exemplo da crescente violência, claro reflexo do desgaste da cultura. O número de homicídios na capital mineira ultrapassa índices de guerra. No entanto, parece algo normal. Há lugares na região metropolitana que, em apenas uma noite, já se alcança o patamar de tolerância indicado pela ONU. Imagine se essa realidade for ainda mais temperada por fundamentalismos, pela cultura das facções e pelo ódio. A cultura brasileira não pode, inclusive, viver mais da ilusão de se considerar como pacata, de índole fortemente solidária e outros adjetivos que não correspondem aos cenários de desafeição, desrespeito e massacre, sobretudo dos indefesos e mais pobres. A situação é grave. Há de se incluir diariamente na pauta, e envolver, a partir de programas e ações, as instituições e segmentos todos da sociedade brasileira na recomposição do tecido de nossa cultura.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
A página A9 da Folha de SP da última segunda feira, (28/03/2016), traz um retrato do momento que vivemos, dentro e além das nossas fronteiras, retratando momentos dramático que trazem um alerta e um desafio.
Desde os ataques terroristas do 11 de setembro de 2001 que o mundo vem quase se habituando a notícias como as que estão estampadas na referida página (fac-símile ao lado).
O terror ataca de um lado, o terror responde de outro. No terror, os extremos se tocam. Pior que isso, se igualam.
Com já disse em outros artigos e crônicas, gosto de observar a História e ver o que ele tem a nos ensinar.
Nos dois primeiros séculos do cristianismo houve uma grande e orquestrada perseguição à nascente comunidade dos chamados cristãos, nome dado aos seguidores do profeta galileu executado em Jerusalém.
Atacados, primeiro, pelos chefes dos judeus, de cuja religião o Cristianismo era visto como uma seita ou ramificação, e depois pelos imperadores romanos, que controlavam grande parte das terras onde o cristianismo primitivo se distribuía, os cristãos foram caçados como criminosos e tinham que praticar clandestinamente a sua fé.
Os identificados eram presos, torturados, e martirizados, muitas vezes em espetáculos públicos no Coliseu Romano.
É desta época a frase: “o sangue dos mártires é semente de cristãos”.
Dois mil anos depois não é esse o discurso dos líderes das correntes radicais do Islã? Seus líderes não apelam para a guerra santa, criando os mártires de Alá que se explodem em troca da promessa de uma vida no paraíso?
Cada atentado brutal reforça, do outro lado, a ideia de que “o preço da liberdade é a eterna vigilância”. E aí tropeçamos numa dúvida: há vigilância possível e eficaz quando se trata de conter alguém que está disposto a morrer? Nem o alvo é possível prever. Não será um quartel, um palácio governamental, um político, um general. O ataque pode acontecer numa fila do check in do aeroporto, na arquibancada de um campo de futebol, numa maratona, numa boate onde rola um show de rock, numa praça onde brincam crianças, num mercado onde as pessoas fazem compras, numa Olimpíada...
Como prevenir, combater, evitar esse inimigo invisível e cruel? Praticando ainda mais crueldade?
Na mesma página A9 há uma pista que aponta uma saída. Ela está quase invisível, no alto, à direita, onde uma pequena manchete diz: “Pela paz: Papa pede o uso de ‘armas do amor’ contra o terror”.
Não, meus amigos, o Papa Francisco não é ingênuo ou alienado. É corajoso e realista, além de coerente com quem o inspira, Jesus de Nazaré.
Entre a loucura suicida dos homens bomba e o extremismo racista dos neofascistas e neonazistas, o Papa propõe o radicalismo cristão: “amai os vossos inimigos, respondei ao mal com o bem, perdoai àqueles que te fazem o mal...”.
Não se trata de simples retórica. É um caminho. Nele haverá, com certeza, dor e sofrimento. Mas já não há dor e sofrimento nesta guerra que ninguém pode ganhar? Ao escolher o caminho da paz, pelo menos damos uma chance às gerações que virão.
O apelo do Papa não propõe confrontar os que, hoje, estão em guerra. Essa batalha já está perdida. Para os dois lados. Ele nos desafia e convida a pensar na criança que, hoje, está nascendo num campo de refugiados sírios e naquela que vêm à luz num moderno hospital belga. No adolescente que cresce na periferia de Bagdá e naquele que vai à escola num bairro de Nova York. No jovem que busca trabalho no Iraque e naquele que entra para uma Universidade na Inglaterra.
Para esses, a Paz não será a ausência da guerra, mas a presença do Amor.
Eduardo Machado
30/03/2016
“A terra estava deserta e vazia, as trevas cobriam o abismo...”. Assim começa a narração do Livro do Gênesis, permitindo uma analogia com o atual momento político do Brasil. A política partidária instalou incontestavelmente o caos na sociedade. Está perdida a capacidade para o diálogo que gera consensos e entendimentos. Não paira, absolutamente, o Espírito de Deus no mundo da política. É uma escuridão que fomenta o caos - um “salve-se quem puder” que passa por cima do bem comum como um trator. Não há esperança de que a política partidária consiga, rapidamente, oferecer contribuições para os rumos da nação. A lista de desmandos, escolhas absurdas, interesseiras e manipulações é interminável. Comenta-se, em muitas esferas da sociedade, sobre a expectativa do surgimento de um líder político capaz de gerar agregação e apontar novas direções. Isso parece ser difícil de ocorrer, justamente pelo atual cenário vivido pela política partidária. Quem seria capaz, agora, de reverter essa difícil situação? O mundo da política partidária no Brasil configura-se como um devastador desastre humano à semelhança das incidências horrendas que ferem o meio ambiente.
A deterioração da esfera política e o tratamento inadequado das questões ambientais se desenvolvem a partir da mesma raiz. Aqui vale relembrar as palavras do Papa Francisco, na sua Exortação Apostólica Alegria do Evangelho, quando se refere à nova idolatria do dinheiro. O caos vem dessa idolatria. É inexistente a nobreza de fazer política pelo bem comum, com o objetivo de ajudar a nação a alcançar patamares de civilidade e de funcionamentos que promovam, sem populismos, os seus cidadãos. A falta dessa nobreza é resultado de carência na formação humanística que ilumina intuições, capacita para o bem, muito acima do interesse de enriquecimentos ilícitos. O Papa Francisco afirma que “uma das causas desta situação está na relação estabelecida com o dinheiro porque aceitamos pacificamente o seu domínio sobre nós e nossas sociedades”. Essa verdade explica os desajustes no tecido da cultura, que delineia a identidade da sociedade e influencia suas direções.
O Papa Francisco oferece a chave de interpretação desse caos instalado que produz, por exemplo, a crise financeira que pesa sobre os ombros de todos. A base da desordem é a negação da primazia do ser humano. Esse colapso antropológico tem muitas feições. Descompassa relações, articulações de grupos e segmentos na sustentação de uma sociedade que deve se mover no horizonte da justiça e da solidariedade. É triste constatar o que ocorre na política partidária. O desejo de ocupar cargos públicos não vem acompanhado do sentido cidadão mais profundo de ajudar decisivamente na construção de uma sociedade solidária e justa. Trata-se de interesse doentio pelo dinheiro, para alimentar ilusórias sensações de poder e segurança. Uma ambição que produz essa economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano.
Ora, a idolatria do dinheiro é perigosa, gera ilusões e desgasta o mais nobre sentido da política, que é promover o bem comum. Essa idolatria é tão terrível que faz crescer, de modo generalizado, a sensação de que não há mais tempo para fazer o que é necessário. Isto fica explícito nas muitas lamentações e ladainhas exaustivamente propaladas. O interesse mesmo é ganhar sempre mais, produzir menos. Nada de sacrifícios e esforços para alcançar o bem de todos. Uma luz precisa brilhar para iluminar essas trevas. E de onde ela pode vir? Em primeiro lugar, da corresponsabilidade e seriedade cidadã de cada indivíduo. Sistemicamente, essa luz pode e precisa brilhar com o fortalecimento, em seriedade e audácia, dos diferentes segmentos da sociedade - empresarial, religioso, judiciário, acadêmico e intelectual, artístico e outros mais. Cada setor, pela seriedade e honestidade, tem o dever de dissipar as trevas que preenchem o abismo onde está inserida a sociedade brasileira. Que venha de todas as pessoas e grupos, pelo compromisso com o bem, a justiça e a verdade, essa a luz que tem a força para resgatar o país do caos.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
In: Opinião e notícias
18/03/2016
Assim se chama o livro de Christiane Singerque que nos desafia a encontrar um ângulo, primeiro cultural e depois civilizacional, para olharmos para as crises que todos atravessamos, quer se conjuguem no plural, quer simplesmente se declinem no singular. A autora propõe essencialmente três coisas.
1. Que num tempo em que escasseiam os mestres, e todos estamos mais ou menos entregues a uma autogestão (para não dizer a um isolamento) devorante da própria vida, as crises «são realmente os grandes mestres que têm alguma coisa a ensinar-nos». Não escutar, a fundo, o que as crises nos dizem é desperdiçar a ocasião para aceder àquela profundidade que pode devolver sentido à vida. Mesmo sabendo que uma crise é sempre um austero mestre para o qual raramente nos consideramos preparados.
2. Numa sociedade que tantas vezes concorre para afastar-nos daquilo que é importante e vital, as crises funcionam quase como um rito secularizado de iniciação à liberdade e à verdade de Ser. Christiane Singer relata o que um seu amigo antropólogo lhe disse ter escutado a um aborígene: «Não senhor, nós não temos crises, nós temos iniciações». As nossas sociedades modernas e democráticas têm um elevado ideário para a realização humana: basta pensar nessa tricolor herança da liberdade, igualdade e fraternidade. O problema, porventura, não é o das metas, mas o dos caminhos. Como é que se faz a aprendizagem dos valores que melhor nos podem expressar a nós próprios, nesta dinâmica construção do que é viver e viver com os outros? Aí é que surgem os hiatos, os bloqueios, as incertezas, as demissões. Só os ritos de passagem, desenvolvam-se eles em que quadro for, é que nos colocam realmente em contato com a vida e com a morte, isto é, com a inteireza do destino humano.
3. Por fim, talvez precisemos compreender que no curso do nosso caminho, coletivo e pessoal, as crises «nos acontecem para que seja evitado o pior». E o que é o pior? Singer escreve: «O pior é ter tido a infelicidade de atravessar a vida sem naufrágios, é ter ficado apenas à superfície das coisas, ter dançado um baile de sombras, ter ficado a chapinhar no pântano do diz que diz, das aparências» e nunca ter habitado uma vida que lhe pertencesse.
Pe. José Tolentino Mendonça
Você já se sentiu infinitamente pequeno diante de algo imenso e infinito? Já percebeu o quão frágil é tudo à sua volta, inclusive, e principalmente, você? Já pensou que um dia o sol se apagará e tudo que você conhece deixará de existir?
Já pensou que em meio a tantas pessoas que transaram desde a mais distante ancestralidade humana, a “cadeia de orgasmos” entre elas é a causa eficiente da sua existência hoje? Já imaginou quanta coisa podia ter dado errado e você não existir? Aqui não estamos muito distantes do silêncio que muitas vezes se impõe quando testemunhamos uma criança vir ao mundo. Esse silêncio é nossa consciência ancestral de que devemos nossas vidas a todos os que viveram, lutaram e morreram antes de nós. A primeira palavra que devíamos aprender a falar é “obrigado”. Uma cultura que não cultiva o respeito pelos ancestrais é uma cultura de ingratos. Deveríamos assistir ao parto de joelhos.
Bastava uma dorzinha de cabeça numa das fêmeas ancestrais ou uma brochada num dos machos ancestrais ou um dos dois ser comido por algum predador, e você não estaria hoje aqui lendo a Folha.
Logo, é quase um milagre esse instante em que nos encontramos. Assim como toda a cadeia de eventos que envolve a sua vida e a de cada um de nós.
Diante de tantas variáveis infinitas, muita gente sente um certo agradecimento por ter nascido e pelas coisas que giram à nossa volta, tornando possíveis nossas vidas.
Nossa atitude deveria ser uma de completa reverência diante de tudo isso. Esse tipo de reverência desapareceu do nosso repertório porque somos uns mimados que acham que o universo é “um direito” cósmico. E que todos que transaram em nossa longa cadeia de ancestrais o fizeram “por nossa causa”.
Essa humildade diante da simples existência não é muito distante da ideia de graça no cristianismo (e também no judaísmo e islamismo). Dai que qualquer teólogo competente sabe que toda boa teologia começa agradecendo. Coisa pouco comum hoje em dia. Uma sociedade dominada pela ideia de “direitos” é necessariamente uma sociedade que cultiva a ingratidão. Nada mais distante da espiritualidade semita (das três religiões abraâmicas citadas acima) do que uma teologia que “pede”. A teologia começa agradecendo o fato de respirarmos. Ou, como diria Santo Agostinho (354-430), devemos agradecer pela língua que temos para falar.
Toda espiritualidade séria começa com a consciência do quão improvável é a nossa existência e a de todas as demais coisas à nossa volta. A fina relação entre essa enorme improbabilidade e nossa ínfima existência é que produz o sentimento de milagre, agradecimento e graça.
Que nenhum ateu inteligentinho queira me dar uma lição de estatística ou de acaso cego. Guarde-as para ateus inseguros e de alma tosca. A cegueira do acaso apenas torna a beleza do mundo ainda maior.
O que vem a ser a religião? Essa pergunta não é fácil de responder. Muitos tentam buscar uma resposta que sirva pra todas as religiões, mas isso não é evidente.
Entretanto, existem algumas ideias interessantes sobre essa busca de um “denominador comum” para as religiões que funcionam razoavelmente bem. E algumas delas passam justamente por esse sentimento de agradecimento pelo simples fato de sermos capazes de testemunhar toda essa beleza, ao mesmo tempo frágil e imensa. E de nos sentirmos de alguma forma dependentes dela.
O teólogo alemão Friedrich Schleiermacher (1768-1834), fundador da hermenêutica, disciplina que estuda os modos de interpretação de culturas e textos, é considerado o pai fundador dos estudos não religiosos das religiões. A história desses estudos é longa e não vou me ater a todas as controvérsias que a matéria exige.
O que me interessa aqui é o “denominador comum” que Schleiermacher pensava estar presente em todas as religiões. Para ele, as religiões são o fruto dessa percepção profunda de nossa dependência para com esse infinito que nos sustenta e, ao mesmo tempo, nos lembra o quão efêmero isso tudo é. Como o pó que se vai com o vento, mas que é capaz de ver o rosto de Deus.
Luiz Felipe Pondé
Folha de São Paulo – 29/2/2016
Estava na casa dos meus pais e ouvi do quarto a apresentadora Sônia Abrão falar que “quem tem 5 amigos pode se considerar um milionário”. Eu já não gosto do trabalho dela – principalmente depois do modo com que tratou a morte de uma ex-aluna minha, explorando o assassinato e a miséria humana com fins de audiência – e ouvir tal sentença me deixou incomodado. Como é próprio de programas medíocres que são produzidos com a intenção de atingir as camadas empobrecidas da população e aliená-las, cria-se sempre um clima de desesperação e desesperança. Será que a amizade é algo tão raro?
O problema de postulados e sentenças como estas me parece duplo. Uma face se dá na dificuldade de comprovação. Falta pesquisa consistente que avalie a qualidade e a quantidade das amizades. A segunda diz respeito à origem dessas falácias. Geralmente elas brotam de experiências ruins, carecendo de objetividade. Um coração machucado pode muito bem turvar a visão. O fato de um grande amigo ter se mostrado mau não quer dizer que todos os outros o serão.
Eis uma das frases de pessoas feridas: “Quando a gente precisa de ajuda, não aparece ninguém”. Julgo infeliz, na maioria das vezes, tais percepções. Geralmente estou disposto a ajudar amigos e desconhecidos. Contudo, não tenho condições humanas de ligar para todo mundo que gosto e perguntar com regularidade se está bem e se eu posso ajudar com alguma coisa. A coisa mais fácil é que aquele que precisa vá buscar ajuda e não quem pode ajudar fique buscando alguém necessitado entre seus amigos. Aliás, a melhor maneira de se viver a segunda opção é se inscrevendo como voluntário de algum trabalho social ou sendo um sócio colaborador que deposita frequentemente uma parte de sua renda para tais ações. Agora, quem diz que não encontrou ninguém numa hora de necessidade, por acaso, procurou todos os seus amigos um a um?
Imagino alguém que tenha 5000 pessoas nos círculos sociais dos quais faz parte. São eles pessoas da faculdade, do trabalho, do bairro, da Igreja, do clube etc. Em cada um desses lugares, suponhamos, que esse alguém tenha 3 pessoas mais próximas, totalizando umas 21. Não obstante, sua presença pode ter criado antipatias que, somadas, resultem em 70 pessoas. Ou seja, há 4909 pessoas com as quais esse alguém tem uma relação amistosa, ainda que pouco profunda, e que lhe nutrem algum afeto positivo. O grau de amizade pode até não ser alto, mas a maioria pode estar numa disposição boa em relação a ela. De algum modo, essa massa é considerada como neutra, e as 21 amizades passam a significar 5. Ora, porque 21 vira 5? Como todo mundo tem família, trabalho, questões de saúde e cuidado pessoal etc., não dá para se fazer presente na vida de todo mundo com a intensidade que o afeto manda, mas só na daqueles que a rotina facilita a presença.
Somemos aqui o olhar ferido. Há pessoas para quem uma fala dura roube a alegria do dia. Basta um olhar atravessado para mudar a cor do dia de alguém. Daí os 70 inimigos ocuparem mais espaço na mente de quem se sente odiado ou perseguido. Para olhares pessimistas, os amigos próximos são menos do que realmente são e os inimigos maiores. O problema aumenta com a paranoia. Imagine alguém que se isola por medo de se relacionar. A solidão somada ao medo pode adoecer as pessoas.
Talvez algumas pessoas saibam construir relações melhores que outras. Quem sabe eu não tive a sorte de conhecê-las e por isso considere ter muitíssimo mais que 5 amigos? Tudo bem que há uma gradação no nível de amizade e que não pode ser medida só pela profundidade da partilha de vida, de favores trocados ou de afetos demonstrados. Há muita variação nisso. Há pessoas a quem o carinho não se mostra em palavras ternas e afagos, mas em presença efetiva. Julgar que uma pessoa assim é menos amiga é um tanto temerário. A ausência também pode não significar muita coisa. Afinal, quem nunca reencontrou alguém que não via por muito tempo e atou uma conversa que deixou o sentimento de nunca terem se apartado?
Melhor que a lamúria de não ter amigos é parar para pensar nas relações que se tem e atentar para uma simples realidade: quem eu quero e quem me quer bem? Lembrar-se dos rostos e das histórias vividas juntos pode trazer o conforto para a alma de que não se está sozinho. O segundo passo é ir ao encontro de quem se ama e celebrar a amizade. Aliás, tem mais amigo quem amigo se faz.
Gilmar P. da Silva sj
(texto originalmente publicado no site www.domtotal.com
A Bíblia proíbe imagens esculpidas e fundidas que representem Deus sob formas humanas ou animalescas, por causa dos falsos cultos dos povos que Israel devia expulsar da “terra santa”. A Bíblia nunca proibiu outras imagens, só aquelas que representassem Deus e fossem adoradas como se fossem divindades. E também não quer privar-nos de uma imagem de Deus, já que a Deus não se pode “ver” (ter experiência imediata) nesta vida. Mas nossa “imaginação” precisa ter uma imagem dele.
Quando dizemos “Deus” pensamos na primeira e última instância de nossa vida, o alfa e ômega do alfabeto com o qual escrevemos as linhas de nosso viver. Daí colocarmos Deus no início (Criação) e no fim (Juízo) de nossa História. Mas isso também é imagem, metáfora. Não se trata de afirmar cientificamente que Deus criou o mundo em seis dias e depois descansou (a melhor coisa dessa história!) – para em nome disso negar, estupidamente, aquilo que Darwin cuidadosamente pesquisou! Tampouco se trata de calcular a data do fim do mundo. Nem Jesus pretendia conhecer essa data (Marcos 13,32). Não são tais os objetivos das expressões a respeito de Deus. As metáforas com as quais balbuciamos a respeito de Deus servem para orientar o nosso viver e para nós mesmos realizarmos o projeto de nossa vida: sermos imagem e semelhança d’Ele! (Gênesis 1,26). O ser humana não precisa inventar imagens esculpidas ou fundidas de Deus. Deus forneceu sua imagem no próprio ser humano.
Ser humano é realizar na vida a imagem de Deus, já que Deus não é uma entidade separada de nós e fora de tudo aquilo que existe, mas antes, “nele vivemos, nos movemos, e somos” (segundo a citação de Paulo em Atos 17,28). Ora, precisamos de um modelo, de um protótipo para realizar essa nossa vocação. Esse modelo é Jesus de Nazaré, “primogênito da criação” (Colossenses 1,15). Conforme a visão do autor de Colossenses, Deus tinha Jesus diante dos olhos quando criou Adão e Eva “à sua imagem e semelhança”. Imagem e semelhança de quem? De Deus ou de Jesus? Encontrei a resposta na catedral de Chartres. No portal norte da catedral aparece, como coluna angular, uma escultura emocionante: Deus criando Adão, na estatura de um adolescente, olhando para o rosto de seu Criador. Os traços de seu rosto são os de Jesus, que, por sua vez são os traços do próprio Criador. O rosto do Pai e Criador se espelha no rosto de Adão-Jesus. Jesus nos veio mostrar como é Deus, para que nós sejamos como Ele... Jesus... Deus. Somos deiformes. Jesus como modelo perfeito, nós como fracas imitações, mas no caminho de nossa vida Deus completa sua escultura em nós pela sua graça.
O evangelista João, como já a literatura sapiencial de Israel, busca sua metáfora não na escultura, mas na literatura, na linguagem. Antes de encetar o trabalho, Deus fala uma palavra para si mesmo, concebe um projeto para orientar seu afazer: a Memra (em aramaico), o Logos (em grego). “No princípio era a Palavra”. A Deus mesmo, ninguém o pode ver, mas sua palavra é o que ele mesmo é, exprime perfeitamente o que ele é para nós. “A Palavra estava junto de Deus... era deus”. E ela nos dá a conhecer tudo o que nos cabe conhecer a respeito de Deus. “A Deus, ninguém jamais viu; o Unigênito que é deus, aquele que está virado para o seio do Pai, ele no-lo deu a conhecer” (João 1,18). Assim como é esse “Unigênito”, esse único entre os muitos “gerados de Deus” (pois é assim que João, diversas vezes, chama os que creem em Jesus), assim é Deus. E na hora de dar sua vida por amor, ele diz; “Quem me viu, viu o Pai” (João 14,9). Assim é Deus: amor até o fim (1 João 4,8). E quem ama como Jesus amou, conhece Deus, porque participa na prática dele (1João 4,11).
Não me interessa provar que Deus existe no sentido como entendem aqueles que O negam... Interessa-me saber como Ele é, para saber como eu devo ser.
Johan Konings
(texto publicado na sua coluna no site Dom Total 23/12/2015)
Creio que nas próximas décadas, e nas que se lhes seguirão, e ainda naquelas que virão, por muitos milênios, a humanidade saberá o que pensar. Não faço parte do exclusivo clube dos pessimistas históricos; os discursos sobre a decadência aborrecem-me; assim como, confesso, os otimismos me desconcertam. Os fios com que se coze a história não são descendentes nem ascendentes: são apenas fios; aqueles que se encontram na vida de cada tempo e cada geração. E a coisa mais importante é que os fios resistem de modos infinitos, tanto nas catástrofes como nos sucessos (e sabe Deus quanto é difícil renascer depois de uns e de outros!). Por isso creio que a humanidade do futuro saberá certamente o que pensar. Não é difícil imaginar que os saberes, mesmo em novos contextos, se desenvolverão e que em muitos casos representarão para nós uma surpresa total, mais não seja por os termos tido durante tanto tempo debaixo do nariz e não os termos aproveitado. Talvez não tivesse chegado ainda o seu momento. Ou talvez tivesse e nós o tenhamos clamorosamente falhado, facto que deveremos admitir. Não é difícil conjeturar que surgirão novas gramáticas para compreender o mundo e intervir nele, e que algumas nos confirmarão no que fomos, enquanto outras se oporão, reinventando radicalmente métodos e propósitos.
Mas no fundo, que importa? Serve pouco agarrarmo-nos aos nossos pontos de chegada, como se fossem os únicos legítimos, quando deveremos começar antes de tudo com a bênção ao futuro que nos declara superados. Bendito o futuro que rirá de nós porque confundimos tudo: uma mudança com a viagem, uma aproximação com o encontro, a posse das coisas com o seu uso, a acumulação de bens com o seu saudável usufruto. Bendito o futuro que nos criticará por termos produzido tanto e distribuído tão mal, por termos andado na Lua e depois resistir tanto, mas tanto, a chegar ao conhecimento do nosso próprio coração. Bendito o futuro em que as tecnologias deixarão de ser um fetiche nas mãos do mercado, como já acontece em larga medida, e se tornarão um instrumento melhor para a vida de todos, como aconteceu, por exemplo, com o arado ou a roda. Bendito o futuro que nos inspirará estilos de vida mais essenciais, mais atentos aos outros seres humanos, mas também a todas as outras criaturas que conosco partilham esta misteriosa aventura, e das quais sabemos tão pouco. O futuro saberá encontrar o espaço e a expressão do seu pensar.
Há uma coisa, porém, que supera todo outro desejo: que a humanidade que virá habitar aquele que para nós é o futuro se dê conta, muitas vezes, de não saber o que pensar. Que se deixe desconcertar pelo inexplicável esplendor de cada aurora; que permaneça sem palavras diante do mar, como aqueles que o viram pela primeira vez; que se sinta irresistivelmente atraída pelas variações das cores, dos volumes e dos odores da paisagem diurna e noturna; que se sinta atravessada por um frémito ao primeiro contato com a água; que mantenha a capacidade de se espantar diante do modo como o vento leva para longe as nossas vozes felizes; que olhe do mesmo modo indefeso a chuva, os campos alagados em silêncio, as coisas mais pequenas e vastas, o tráfego das nuvens, a disseminação das papoilas que nos campos se assemelham a palavras que sonham. Desejo ardentemente que a humanidade do futuro saboreie o embaraço por aquilo que permanece inacabado, não por insuficiência mas por excesso, e não se apresse a catalogar, a descrever ou aprisionar. Que o seu modo de compreensão seja uma outra maneira de manter intacto (ou até de o amplificar) o espanto.
José Tolentino Mendonça
In "Avvenire"
Trad.: Rui Jorge Martins - Publicado em 14.11.2015 pelo SNPC
Há quase trinta anos (1987), com o refrão “Que país é esse?”, o Legião Urbana, sintomaticamente gestado em Brasília, cantava a perplexidade de uma geração que, nascendo sob o regime militar, experimentava os primeiros passos da nossa até hoje frágil democracia.
A modo de denúncia, a música explodia sua indignação já nos primeiros versos proféticos:
“Nas favelas, no Senado, sujeira pra todo lado.
Ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da nação.
Que país é esse no qual ‘mar de lama’ deixou de ser metáfora, transformou-se em realidade, e volta, todos os dias, a ser metáfora da realidade, desta vez política, que se vê no país?
Que país é esse no qual um deputado investigado no Supremo por peculato, formação de quadrilha, crimes de responsabilidade e homicídio “simples”, continua deputado e simplesmente faz parte do Conselho de Ética da Câmara Federal?
Que país é esse em que o presidente da mesma Câmara Legislativa usa as prerrogativas e privilégios do cargo para impedir que seja apeado do mesmo cargo, sob uma coleção de acusações e constatações que não deixam a ele outro adjetivo senão “bandido”?
Que país é esse em que, um degrau acima na escala do poder, a presidência do Senado é ocupada por um sujeito que tem mais folha corrida que biografia? Sua excelência, há exatos oito anos, em dezembro de 2007, teve que renunciar para não ser cassado, numa manobra usada por muitos parlamentares que, flagrados no ato, apostam na ignorância de uns e no oportunismo de muitos, para voltar ao poder de onde, na verdade, nunca saíram.
Subindo mais um pouco, que país é esse em que uma presidente eleita se submete a proclamar as mentiras preparadas pelo marqueteiro de plantão, para ganhar uma reeleição e garantir um projeto de poder?
Que país é esse em que um partido eleito para ser diferente e fazer diferença, acolhe em seu meio bandidos que só estão lá para fazer o que sempre fizeram, roubar dinheiro e esperanças?
Que país é esse em que um amigo paga as passagens da lua de mel de um dos expoentes dessa mesma política, além da hospedagem numa suíte no luxuoso Waldorf Astoria, em Nova York? Pensou no amigo do Lula? Não, estou falando do banqueiro André Esteves, atualmente dando expediente numa cela de Bangu 8, de pijama vermelho e cabeça raspada. Quem foi o noivo feliz que recebeu o mimo? Aécio Neves.
Que país é esse em que bandido de alto escalão, não conseguindo explicar cada milhão, na Suiça ou não, diz que vendeu carne moída ou, da vaca, o embrião?
Que país é esse?
Que continua acordando, todo dia, de madrugada, enfrentando ônibus, metrô, trem de subúrbio, patrão (quando há), desemprego, subemprego, inflação, custo de vida nas alturas, salário no bueiro?
Que país é esse em que o pequeno empresário, o empreendedor, o agricultor, tem que dar piruetas, pra pagar os salários dos funcionários e mais os impostos dos seus sócios, federal, estadual e municipal? E se não pagar, vai pru pau!
Que país é esse, moçada?
É o nosso, e, ao contrário do que pregou o Tiririca, pior ele fica se a gente ficar só na reclamação, no espanto, no desencanto.
Já vivi um tiquinho a mais. E vi demais, e coisa pior. Na ditadura, da qual alguns idiotas dizem ter saudades, havia tudo isso e mais a mordaça. O pau, era de arara, e cada um que se opunha, virava inimigo, preso, torturado, banido, desaparecido.
Confesso que estou vendo coisas que não imaginava ver. Só meus netos, talvez. Em Brasília, ‘barata voa’ só de ver um japonês. O Judiciário, com seus muitos e graves pecados, está fazendo valer a lei. Só precisa fazer valer o pau que dá em Chico, pra pegar também o Francisco.
Que país é esse? É o país que está aprendendo a diferenciar o que é favor do que é direito, o que é promessa do que é conquista. O País que está aprendendo que democracia precisa ser participativa. Não basta eleger e esquecer.
O país só aprende se a gente aprender. Porque esse país, somos nós.
Eduardo Machado
é educador e escritor
16/12/2015
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