Assim como Machado de Assis, conforme vimos na coluna anterior, Guimarães Rosa tem um conto com o título O Espelho. A temática de fundo é a mesma, o espelho enquanto metáfora da interioridade, enquanto lugar de exploração de nós mesmos. Entretanto, essa proximidade de temática não impede que o tratamento seja de ordem inteiramente diversa. Embora parta de uma advertência, “Tudo aliás é a ponta de um mistério”, o personagem se dispõe a investigar, de maneira empírica e rigorosa, os espelhos. Depois de apontar os limites de todo espelho, pois a cada ângulo escolhido outros tantos são perdidos, sendo, assim impossível a desejada objetividade, são arroladas as histórias populares em torno dos espelhos. Entretanto, uma experiência involuntária altera o rumo do conto: é sua imagem no espelho que agora o perturba. Investiga a si mesmo, empreende determinado a busca de si mesmo. Principia por retirar todo o acrescentado ao rosto, a semelhança com bichos, o que vinha de hereditário, o resultado de interesses efêmeros. Assim esvazia-se de modo a achar o essencial, porém tal exercício, imprudente, acaba por cansá-lo, sendo assim abandonado.

Passado um tempo, nosso personagem, esquecido do tempo da investigação, passa diante de um espelho e para sua absoluta surpresa não vê sua imagem refletida: “Aturdi-me a ponto de me deixar cair numa poltrona.” É como se, enfim, destituído de tudo o que lhe fora acrescentado ao longo do tempo, o rosto não apresentasse uma existência pessoal, autônoma. Sem uma identidade maior, seríamos presa da mera passagem das coisas? Mas não é bem assim, o aprendizado é lento, e depois de muito sofrimento, diante do espelho, até então mudo, alguma coisa se refletia, alguma luzinha crescia, alguma coisa existia.  O conto vai mais adiante, mas antes indica o que parece estar em jogo: “Será este nosso desengonço mundo o plano – intersecção de planos – onde se completam de fazer as almas?’

Comparem  os dois contos,  verifiquem se está mesmo presente a ideia da existência humana como um lugar de iniciação, de uma busca continuada de quem somos.

Ricardo Fenati

05.02.2021

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