Um dito medieval, "Deus só conta até um", dá o que pensar. Assinala, sem retoques, a extensão e a profundidade de nossa singularidade, esse território sem fim que habitamos. Singularidade que, mesmo diante de Deus, portanto, diante do que quase absolutamente nos excede, continua sendo uma experiência aguda. Surgidos do gesto criador de Deus – e toda criação é uma retirada, um recuo, a geração de um espaço -, estamos na existência a sós, de forma irreversível, sem retorno. Cada um dos lugares que ocupamos ao longo de nossas vidas, e que fazem parte da aventura humana, assenta-se sobre essa estranha abertura que nos funda e que, mesmo explorada permanecerá sempre um enigma para nós.
Singularidade que, entretanto, não se dissolve na solidão, no encerramento em si mesmo. Se na existência somos, cada um, o que mais ninguém é, somos, também, atraídos uns pelos outros, solidários na mesma origem a que pertencemos e inquietos, lado a lado, diante da vida que nos cabe, a todos, cotidianamente tecer.
Para pensar na quinzena:
“ Continuo a não conseguir encontrar o tom certo para aquele sentimento de firmeza e felicidade que há em mim, onde também se incluem todo o sofrimento e tristeza. Ainda uso um tom de filosofia livresca, exatamente como se tivesse inventado uma teoria consoladora para tornar a minha vida um pouco mais agradável. Por enquanto, é melhor aprender a calar-me e a ser” (Etty Hillesum)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Leio em Tomás Halík ( A noite do confessor, editado pelas Paulinas de Portugal) uma antiga história, mais do que apropriada para esses nossos tempos – ou quaisquer tempos – nos quais o ódio, uma vez mais, volta a ser cultivado com fervor. São, infelizmente, muitos os que acreditam que a identidade de um grupo, partido ou cultura depende da exclusão dos que pensam e sentem diversamente. Segue a história:
Rabi Pinchas perguntou aos seus discípulos como é que se reconhece o momento em que acaba a noite e começa o dia. “É o momento em que há luz suficiente para distinguir um cão de um carneiro?”, perguntou um de seus discípulos. “Não”, respondeu o rabi. “É o momento em que conseguimos distinguir uma tamareira de uma figueira?” perguntou o segundo. “Não, também não é esse momento”, replicou o rabi. “Então, quando chega a manhã?”, perguntaram os discípulos. “É no momento em que olhamos para o rosto de qualquer pessoa e a reconhecemos como nosso irmão o nossa irmã”, replicou o rabi Pinchas. E concluiu: “Enquanto não o conseguirmos, continua a ser noite”.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Ideias são quase tudo o que temos para lidar com a realidade. Diferentemente de outras espécies, sempre socorridas pelos instintos, nós, os humanos, fomos expatriados, despossuídos dessa cola com a existência que parece tão abundantemente distribuída pelas outras espécies. Sem o amparo dos instintos, as ideias, esse acervo simbólico que não cessa de crescer, são nossas tentativas de aproximação da realidade. Indicam a esperança de atravessar a opacidade das coisas, de saciar nossa sede de compreensão, de abrandar o enigma que pesa sobre nós. Toda a cultura – das ciências às artes, da filosofia à tecnologia, da religião aos costumes, das múltiplas faces do trabalho aos rituais do lazer – são outras tantas tentativas de interpretar o nosso entorno de modo a que o deserto diminua e que a hostilidade seja abrandada.
Mas não é tarefa fácil essa nossa. Daí que, compreensivelmente, encantados com nossas ideias, nos esqueçamos de que são ideias e passamos a tomá-las por aquilo que elas não são, a realidade. Essa é sempre mais rica, mais arguta, mais cheia de reentrâncias do que gostaríamos. Ora, tomar nossas ideias pela realidade, tomar nossas representações pelo real, tem, por princípio, a amarga conseqüência de ver as ideias alheias, naturalmente distintas das nossas, como erros imperdoáveis, interesses inconfessados ou coisa ainda pior. Do fato de nenhuma ideia esgotar o que ela visa, a realidade, não devemos deduzir sejam todas equivalente. Pelo contrário, nem todas têm o mesmo valor.. Não cabe aqui nenhum relativismo, que, aliás, rapidamente se degenera em desinteresse pela diferença.
Não dá para ser assim. Ideias são provisórias, tentativas humanas de compreender o que há de compreensível no mundo. Portanto, devíamos esperar de nós, os que se interessam pelas ideias, uma conduta mais modesta, mais capaz de aprender com quem pensa diversamente. Deveríamos apreciar um pouco mais o dissenso. Dissentir significa que, mesmo discordando, respeitamos o nosso oponente e nos sentamos à mesa com ele. Preferir, ao invés do dissenso ativo, a indiferença disfarçada de tolerância ou a beligerância furiosa revela, quase sempre, nossas dificuldades com a finitude que, inevitavelmente, nos habita.
Talvez seja proveitoso pensar um pouco sobre isso nesses dias que nos separam de mais uma eleição presidencial.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola de BH
A propósito de uma eleição presidencial, como a que teremos no próximo mês, não seria de se esperar a proliferação de debates, a contraposição de ideias, o exame animado das propostas apresentadas, o teste dos programas partidários junto à situação que o País atravessa? Haveria ocasião mais propícia para a controvérsia e o posicionamento? Não estaremos cada um de nós, e o Brasil como um todo, concernidos pelo resultado do pleito?
Se as coisas são assim, por que assistimos, quase sempre, a uma mera troca de acusações, à boataria generalizada, à veiculação de um ódio que parece desconhecer qualquer limite? Os partidos não são distintos, não é diverso o que propõem, a singularidade de sua filiação ideológica não é marcante? Então porque o debate é tão decepcionante? São, certamente, muitas as razões, arrisco, entretanto, a hipótese de parte da causa se deve ao crescente empobrecimento da discussão de ideias. Desconfiamos das ideias, da sua capacidade de decifrar a realidade, preferimos o calor de nossa opinião. Ideias constituem o lugar onde, longe da nossa particularidade, encontramos as outras pessoas. Ideias pertencem ao espaço público, lugar da tolerância trabalhosa e da disposição de cotejarmos junto aos outros o que defendemos. Privados de ideias, esquecidos de que apenas somos juntos uns aos outros – animais políticos – só nos restará, como reação ao esvaziamento, esbravejar o nosso ódio. O que é uma tolice, porque as ideias seguirão o seu curso cheio de conseqüências.
Para pensar na quinzena:
“Narciso acha feio o que não é espelho” (Caetano Veloso)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Estou às voltas com a leitura do Diário de Etty Hillesum, na edição da portuguesa Assírio & Alvim, que cobre os anos de 1941 a 1943. Etty Hillesum é uma mística holandesa, de origem judaica, morta no campo de concentração antes de completar 30 anos, da qual, além do Diário, foram publicadas, pela mesma editora, inúmeras cartas, datadas do mesmo período. O Diário é a história da estonteante presença de Deus numa vida, e numa época, vitimadas por uma perversidade que não conheceu limites. Não é, mesmo, uma leitura que se possa deixar de fazer.
Longe de recorrer a Deus como uma explicação sempre à mão, em Etty Hillesum Deus é uma provocação, uma interrogação que é incessantemente dirigida a nós e que nos cabe, se desejarmos permanecer humanos, escutar, perscrutar. Mas é preciso saber se merecemos Deus, um merecimento que não é da ordem da moral, da servidão a um conjunto específico de regras, ou da nossa argúcia conceitual.
Deus é, a todo tempo, um excesso, do qual só nos aproximamos na medida em que formos capazes de aceitar o que em nós também é excesso, o que é desconhecido, o que é, como o mistério, terrível e fascinante. Que Deus, para Etty Hillesum, brote no improvável, no inesperado, no quase impossível, indica a Sua desmedida e a extensão do abandono, tantas vezes doloroso, que de nós é esperado. Sem essa acolhida, nos faltaria o merecimento.
Para pensar na quinzena:
“E assim é a vida: um caminhar de um momento de redenção para o outro... às vezes uma pessoa brada pela redenção, sem que interesse a forma”. (Etty Hillesum)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola de BH
O próprio de uma conversa, de uma conversa efetiva, é que ela não se encerra. Contínua, cheia de curvas, incessantemente recomeçada, sempre renovada, a conversa é fiel à complexidade e diversidade do mundo da vida. Se a conversa cotidiana decorre da busca, tão humana, de auto-expressão, não é menos verdade que constitui um exercício tão necessário quanto impossível de decifração do mundo. Assim, a conversa é, em igual medida, uma prova de confiança e de humildade. Sabemos alguma coisa, mas sabemos pouco, sabemos pouco, mas sabemos alguma coisa.
A atividade chamada conhecimento, à qual de dedicam instituições como universidades, é o prolongamento, muitas vezes refinado, da conversa milenar da humanidade. E mais: garantida pela liberdade, distanciada das urgências da vida, geradora de uma riqueza cultural sempre em expansão, o conhecimento remove muitas das barreiras que cercam e limitam a leitura habitual do mundo, essa de que vivem as conversas. Desse modo, parecem ter razão os que, na esteira do iluminismo, associam conhecimento e liberdade pessoal, maioridade e cultivo da razão.
Entretanto, se, de um lado, a atividade chamada conhecimento confirma o acerto da audácia de conhecer, por outro lado, costuma, com freqüência, perder de vista um traço inseparável da conversação, o reconhecimento da inevitável incerteza que cerca tudo o que sabemos. Quando instalada em supostas verdades incontroversas, imunizadas contra qualquer discussão, a atividade do conhecimento perde o que mais a identifica, a fidelidade à riqueza do mundo, o acolhimento da finitude a que pertencemos. Certezas incontroversas, apesar de ilusórias, são outras tantas fontes de opressão e desmentem o que torna o conhecimento uma atividade humanizadora, a saber, o acolhimento do mistério que, vindo da vida, nos interroga sempre.
Diante disso, talvez seja uma tarefa de nosso tempo a recuperação do sentimento da infinitude do mundo, traço precioso que a conversação, a conversação efetiva, sempre preservou.
Para pensar na quinzena:
“ O teu desejo deve ser como um navio lento e majestoso, navegando no oceano infinito e não à procura de um local onde largar a âncora. E de súbito, inesperadamente, dar de cara com um local onde ancorar por um momento.” (Etty Hillesum)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Na coluna passada, falamos da tese de que a educação é a fronteira por onde o País pode avançar. O que é correto, mas que, ao mesmo tempo, deve abrir um debate que concerne a todos nós. É preciso esclarecer o que entendemos por educação, senão estaremos correndo o risco de nos contentarmos com um clichê, o que é sempre empobrecedor e destituído de conseqüências. Boas escolas, professores bem formados e corretamente remunerados, escolas de tempo integral, políticas de Estado e não de governo, isso, como sabemos todos, é o alicerce sobre o qual há pouca ou nenhuma discordância. Vivemos, e viveremos cada vez mais, nas chamadas sociedades do conhecimento. Dada, então, a onipresença do conhecimento, uma educação qualificada é condição de cidadania e deve ser entendida como um dos direitos de última geração. Privados do conhecimento, estaremos privados dos benefícios disponibilizados pelo desenvolvimento. Carreiras profissionais, para citar um exemplo, exigem cada vez mais o domínio de tecnologias decorrentes do conhecimento, sempre com algum grau de sofisticação. Até aqui parece claro o que deve ser feito: estender a faixas cada vez mais amplas da população o acesso á educação continuada e de nível satisfatório.
Embora esse desafio seja, por si só, gigantesco, outro desafio, de proporções ainda maiores, o acompanha. Para além da educação voltada para áreas de aplicação mais imediata, nas quais o consenso é bem possível, outra dimensão da educação se impõe. A que se refere a valores, ideais ou normas, capazes de dar origem a pactos que viabilizem a uma convivência menos violenta do que do que a habitual. Se restringirmos os nossos acordos aos campos onde o consenso é mais fácil, capitulando diante da ideia de que nas questões mais propriamente humanas o relativismo se impõe necessariamente, será inevitável um crescente e cada vez mais insuportável rompimento do tecido social.
Talvez a demanda por mais educação se refira, mesmo que involuntariamente, a esse receio de que, na ausência de um compartilhamento mais espalhado de valores, estaremos condenados a uma vida humanamente miserável, mesmo que materialmente próspera. Não há, por ora, solução à vista, mas a percepção do problema já é um passo significativo.
Para pensar na quinzena:
“Os homens nasceram uns para os outros: educa-os e padece-os” (Marco Aurélio)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Conferir ou descobrir sentidos é parte constitutiva da condição humana, despossuída do conforto propiciado pela intensidade da pressão instintiva que caracteriza as outras espécies. Para nós, a dimensão instintiva, mesmo que a expressão soe inadequada, está presente, mas aguarda uma leitura de nossa parte, espera de nós uma interpretação. Práticas alimentares, afetividade, vida espiritual, trabalho e linguagem ocorrem num horizonte desenhado por nós e ganham o colorido do tempo e do espaço a que pertencem. Tudo isso, e muito mais, constitui o âmbito da cultura, esse meio em que vivemos e que nos apresenta o mundo. É a partir dos recursos disponibilizados pela cultura que podemos viver, de modo pessoal e significativo, a aventura da existência. Rompida a relação entre o que singulariza cada um de nós e o que a cultura oferece, é inevitável uma dose suplementar de sofrimento, acompanhada da percepção, sempre dolorida, do estreitamento da vida.
Falamos sem cessar, com razão, em mais cidadania, mas quase sempre nos atemos às suas dimensões mais materiais. O que é importante, sem dúvida, mas não deve nos distrair de que a indigência simbólica é tão cerceadora e restritiva quanto qualquer outra. Privados dos recursos simbólicos, dos instrumentos com os quais podemos nos aproximar do que a vida humana tem de mais permanente, o mundo aparecerá como um lugar hostil, marcado apenas pelo que a vida tem de mais brutal.
Talvez os que insistem na importância da educação e na tese de que essa é, agora, a fronteira por onde o País pode avançar tenham razão. Mas certamente é preciso discutir o que entendemos e o que esperamos da educação. Mas isso é assunto para a próxima coluna.
Para pensar na quinzena:
“Cultura é o que nos salva do naufrágio vital, o que permite ao homem viver sem que sua vida seja uma tragédia sem sentido ou um aviltamento radical. (Ortega y Gasset)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Em cada circunstância histórica, não importa a singularidade do enredo, nos vemos sempre diante do drama que nos constitui, a exigência da decifração do que somos. Essa é uma obra que foi sempre vista como inacabada e, em última instância, a ser realizada na solidão de cada um de nós. O seu percurso é incerto, sujeito a reviravoltas e, muitas vezes, opaco.
Ora, nossas sociedades oferecem, ao que parece, uma contrapartida para tudo isso. A nós, a cada um de nós, é proposta uma regra para uma tal decifração, o estabelecimento de uma meta clara de chegada, uma corrida de acumulação, suscetível de sucesso. Nossas carências são entendidas como objetiváveis e sua satisfação é sempre vista como possível. Podemos ser medidos, compreendidos e classificados – hierarquizados seria uma palavra melhor – de modo que uma espécie de plena transparência funciona como um imenso regulador social.
Outras épocas sempre tiveram em conta o sentimento do limite, a impossibilidade de circunscrever inteiramente a experiência humana, a percepção de uma insuficiência estrutural. Traços para os quais a cultura, na variedade de suas formas, se voltava. E, curiosamente, é desse reconhecimento dos limites que brota, e sempre brotou, a profusão das obras que constitui esse acervo simbólico que chamamos Ocidente, o lar mental a que pertencemos.
Talvez valha a pena investigar, no nosso dia a dia, as repercussões disso que a nossa época parece propor, as vantagens e desvantagens dessa tentativa do completo delineamento da experiência humana.
Para pensar:
Rostos particulares em lugares púbicos
É coisa mais gentil e sensata
Do que, em lugares particulares, rostos públicos. ( W.H. Auden)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Retomo a conversa da quinzena passada.
Itinerários, os que aqui nos interessam, são formas de chegar até nós mesmos, esse território sempre por explorar. E se nossa disposição, como vimos, for de lançar mão do que ainda não está pronto, acolhendo e respeitando a singularidade que nos constitui, é hora de partir. Sem receio de nos escutarmos, mas, também, sem dispensar a boa companhia dos que já percorreram regiões mais remotas ou caminhos muito inusitados. Não os físicos, mais os existenciais. De nós, sabemos um pouco, mas que boa companhia é essa? Onde está o que, sem fazer o que apenas a nós cabe fazer, pode ser de valia? Sugiro a poesia, mas pode ser a literatura ou a arte de uma forma geral. Se a poesia é um bom mapa, é porque aponta caminhos que a todos dizem respeito, ao poeta e aos leitores, a todos, enfim. Sem nos uniformizar, nos aproxima. Sem usurpar a nossa solidão, nos deixa a todos próximos uns dos outros. A poesia sempre nos põe em cena de uma forma sempre nova porque originária e lembra que somos melhores quando não nos escondemos. Portanto, se estamos de partida, e sempre estaremos, saibamos ou não, o melhor é se valer da poesia, esse mapa que enriquece o território.
Um mapa para a quinzena:
Kant (relido)
Duas coisas admiro: a dura lei
cobrindo-me
e o estrelado céu
dentro de mim.
(Orides Fontela)
Itinerários brotam da percepção de que os caminhos disponíveis já não nos satisfazem ou já não nos parecem suficientes. Havendo um bom caminho, trilhado, percorrido, demarcado, quem pensaria em itinerários? Temos, aqui e ali, é certo, estratégias bem sucedidas e boa parte do nosso esforço consiste em continuar respondendo aos desafios que o mundo, na diversidade de seus aspectos, não cessa de nos apresentar. Multiplicamos assim os caminhos e afastamos, na medida do possível, as dificuldades. Mas se devemos lidar com o mundo que nos rodeia, não é menos verdade que somos, também, uma oficina debruçada sobre nós mesmos. E, nesse caso, a incerteza é maior, a inconstância é mais premente, o trabalho é mais alargado. Intérpretes do real que somos, quando a existência é a nossa a paisagem não é tão clara, o enredo é intrincado e o sentido parece, sempre, nos ultrapassar.
Estará sempre disponível a sedução de delegar a outros esse ofício. Aos que nos rodeiam, às instituições a que nos vinculamos, aos valores do tempo ou da sociedade a que pertencemos ou, enfim, ao mais fácil de nós mesmos. Mas, assim procedendo, não estaremos nos distanciando do que é o mais real, a experiência de nossa singularidade, daquilo que diz respeito apenas a nós?
Diante de nós mesmos, sem indicações que nos sejam entregues, que mais podemos fazer senão redobrar a atenção e, aos poucos, reconhecer o desejo de que somos feitos? É isso que se chama um itinerário?
Para pensar na quinzena:
“É preciso salvar a qualquer preço tua alma de peregrino” (D. Hélder Câmara)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola de BH.
Uma antiga expressão, “Roma locuta, causa finita”, indicava com clareza a autoridade do papado e sua função como tribunal inapelável da resolução das contendas e da instrução doutrinária. São conhecidos os inúmeros processos que, chegados a Roma, tinham o aí seu desfecho final. Pois bem, parece que, com o papa Francisco, alguma inversão começa a se induzida. Ao invés constituir um ponto de chegada habitual, Roma, com Francisco, se assemelha agora, como foi em outras ocasiões, a uma origem, a uma fonte. As atitudes e os comentários do papa Francisco e sua insistência serena e firme na necessidade de mudanças agudas e conseqüentes na Igreja constituem efetivas propostas de transformação.
Para além da simplicidade, da alegria e da sensibilidade que o caracterizam, o que, de fato, está em jogo é a coragem de expor as debilidades que cercam o cristianismo e a confiança nos recursos de que ele dispõe para enfrentar os desafios postos pela contemporaneidade. A agenda proposta pelo papa Francisco é ampla e fecunda, resta saber se será acompanhada da disposição da Igreja, sobretudo disposição da hierarquia eclesial, para levá-la adiante. Por ora, a celebridade do papa, que não conhece fronteiras, não parece estar marcada de uma certa solidão? Ele avança e desconcerta, é certo e é o que se espera de uma liderança, mas vem sendo acompanhada pelo restante da Igreja? Ele tem aberto espaços, mas tem havido ocupação desses novos espaços? Se há um ideário proposto pelo Papa, e há, é preciso que ele encontre eco na Igreja e que permita a revisão de muito do que está sendo feito. O que se espera é que temas como a formação de sacerdotes, a organização das paróquias, a função dos leigos, a ocupação de espaços públicos, a dinâmica das instituições confessionais, a intervenção nos debates no campo da cultura, o enfrentamento das polêmicas, entre tantos outros, passem a fazer parte do cotidiano da hierarquia eclesial e da conversa dos fiéis.
É de Roma, que até bem pouco as fechava, que brotam as questões. Não devemos ser nós a ignorá-las.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Do Pe. Libânio, que acaba de partir, muitas coisas podem ser ditas e ainda assim restará sempre o que dizer. Ao contrário de muitos de nós, apegados a uma rotina tão confortável quanto empobrecedora, Pe. Libânio transbordava sempre. Sacerdote, formador, professor, teólogo, escritor, conferencista, vigário, orientador espiritual, animador e acompanhante de muitos grupos e pessoas, tudo isso, e muito mais, fez, e continuará fazendo, do Pe. Libânio uma figura singular.
Capaz como poucos de aproximar vida intelectual e experiência humana, junção tão rara quanto necessária, Pe. Libânio era leitor e ouvinte incansável dos que a ele se opunham. Nada lhe era estranho, nenhum diálogo parecia-lhe impossível. A sala de aula, os encontros nacionais e internacionais, o serviço na paróquia, a escuta pessoal, entre tantas outras atividades, eram por ele vistos como oportunidades diversas de um mesmo empenho, o de mostrar a infinita capacidade do cristianismo para dialogar com a miséria e a grandeza do nosso tempo. Longe do remetimento apressado ao dogma e longe da capitulação supostamente modernizante, a sua disposição combativa e sua alegria serena permanecem como exemplos para todos nós. Muitas vezes, quando a mera reafirmação da doutrina parecia se impor, Pe. Libânio mostrava, com firmeza e abundância de conhecimento, que a vida nascida da liberdade, essa sim, devia ser o critério decisivo. Onde o recurso ao amedrontamento, freqüente nas versões excessivamente moralistas do cristianismo, se oferecia como estratégia catequética, Pe. Libânio, escorado nas fontes mais clássicas da antropologia cristã, nos lembrava que o medo não converte ninguém.
Agora que está em meio ao Amor sem limites, Pe. Libânio permanece entre nós como sinal da perenidade de um cristianismo fascinado pela dignidade e pelo mistério da condição humana.
Ricardo Fenati
Volta e meia aparece, nas redes sociais, a defesa de uma vida sem filhos. Filhos, e inumeráveis são os motivos apresentados, embaraçariam e/ou dificultariam, financeira e emocionalmente, a vida. Mais gastos, menos viagens, mais privações, menos liberdade, mais compromissos de longo prazo, menores chances de reviravoltas na vida. Parece fazer sentido. Foi Schopenhauer, se não me engano, quem disse que “a vida é um negócio que não cobre seus gastos”. Com filhos, estaríamos ainda mais endividados. Portanto, filhos, por que tê-los?
Mas, um pouco de reflexão, e essa tese esbarra numa contradição. Se a vida é melhor sem filhos, se essa é uma idéia a ser propalada e um ideal ético, dentro em pouco não haveria quem pudesse encampá-los, não é mesmo? Interrompida a procriação, quem iria se beneficiar doravante das delícias e da qualidade de uma vida sem filhos? Simples assim? Nem tanto. Os que abominam filhos podem estar defendendo a vontade de ser a última geração humana sobre a terra, o que o seria o mais acabado exemplo de auto-suficiência. Libertos de todas as amarras e de todos os deveres, inclusive o último e mais decisivo, aquele que o futuro põe diante de nós. Será isso mesmo?
Sabemos, com a força que vem da pressão da espécie, que isso não ocorrerá. Não temos conhecimento de espécies suicidas, a vida continua clamando por mais vida, sempre. Assim sendo, os defensores de uma vida sem filhos, é o que a contradição acima apontada parece deixar claro, estão apenas legislando em causa própria. Preferem, à vista daquilo que consideram como vantagens, não ter filhos. O que lhes é evidentemente possível. Perdem eles, entretanto, qualquer autoridade argumentativa, já que aquilo que é apresentado como um ideal desejoso de universalização é, de fato, a mera racionalização de uma escolha estritamente pessoal. Que deve ser suportada sem um suposto amparo vindo do campo das ideias.
Ps. Para quem se interessa por esse tema, vale a pena consultar o livro de Rémi Brague, Âncoras no Céu, recentemente editado pela Loyola.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Sabedoria é uma dessas palavras incertas, sobre as quais cabe o que Sto. Agostinho dizia do tempo: se não me perguntam o significado, sei bem do que se trata, mas, se me perguntam, já não sei. E, por isso mesmo, vale uma conversa. Sabedoria parece coisa antiga, ligada à simplicidade, distante das formas contemporâneas de conhecimento. De alguma forma, esperávamos que a ciência, na variedade de suas formas, desempenhasse melhor as funções antes atribuídas à sabedoria. E continuamos esperando. Entretanto, já que a palavra persiste, e dado que nenhuma cultura conhecida prescindiu da experiência que chamamos sabedoria, talvez a sua remoção seja mais difícil do que sem pensa. Sem a intenção de ir muito longe, o que se pode entender, entre outras coisas, como sabedoria? Sabedoria decorre, acredito, do fato de que entre nós e a existência o vínculo não é imediato e nem natural. Decorre igualmente da percepção de que nem todos os caminhos são equivalentes e que a salvação e a perdição – termos aqui usados numa dimensão puramente humana – são destinos em quase tudo desiguais.
A vida é opaca, a compreensão é um ofício trabalhoso e a nós cabe um esforço permanente de decifração. Podemos, é claro, prescindir desse horizonte e nos atermos à sedução do aqui e do agora, até mesmo porque a demanda pela sobrevivência é aguda. Mas em meio às atribulações permanecem as grandes questões – o amor, a coragem, a alegria, a justiça, a beleza, a verdade, a dor, a morte – e a elas também pertencemos. Sabedoria é, nesse cenário, o esforço, sempre retomado, de construir um espaço simbólico que torne a vida uma experiência da qual o Sentido nunca se ausente inteiramente. Longe da sabedoria, devorados pelo que é mais imediato, estaremos condenad
os à inanição simbólica, tão devastadora quanto a inanição física. Longe da busca de Sabedoria estaremos exilados de nós mesmos.
Para pensar na quinzena:
Aventurar-se causa ansiedade, mas deixar de arriscar é perder-se a si mesmo. Aventurar-se é tomar consciência de si próprio. (Kierkegaard)
Ricardo Fenati
02.01.2014
Talvez seja o Natal que se aproxima, talvez seja apenas dezembro, quem sabe o fim de ano. Não importa a correria desses dias, que só tende a aumentar com o avanço do mês, alguma coisa permanece no ar. Mais um ano se passou, cumprimos parte das promessas feitas no já distante janeiro, desistimos de outras e de algumas nos esquecemos. Um tempo transcorreu e foi, bem ou mal, vivido. Resta, entretanto, alguma coisa de inconcluso, um gosto indefinível na boca, um sentimento de estranheza no coração. Vasculhamos aqui e ali, refazemos as contas, percorremos os caminhos uma vez mais e, mesmo assim, há uma sobra que não tem como ser removida.
O fim de ano, Natal à vista, é uma interrupção, uma suspensão das atividades, um espaço que se abre, um silêncio que se impõe. E aí talvez descubramos, perplexos, que não somos prisioneiros das nossas ocupações habituais, que o tempo não deve ser preenchido com tanta ansiedade e que precisamos dar mais lugar ao que vem desse país distante que somos nós mesmos. Mas é, então, compreensível nosso susto: estaremos às voltas com o enigma de que somos feitos, com os pedaços que nenhuma habilidade é capaz de juntar. Não encontraremos nenhuma identidade definitiva na qual repousar, nenhuma resposta confortadora, apenas, aqui e ali, o que parece ser, isso sim, um rastro, o sinal de uma passagem, a indicação de uma presença possível. Sem qualquer certeza. Não obstante, cabe a nós suportar. Ao invés de nos diluirmos no que nos cerca mais imediatamente, talvez fosse melhor acolher a penumbra a que, enfim, pertencemos. Assim, a estranheza que dezembro costuma trazer, mais do que algo a recear, talvez possa vir a ser uma experiência de rememoração do peregrino que nos habita e que, desde sempre, todos somos.
Para pensar na quinzena:
“ ... a intimidade humana vai tão longe que seus últimos passos já se confundem com os primeiros passos do que chamamos de Deus”. (Clarice Lispector, A descoberta do mundo)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
16.12.2013
Palavras são tentativas de despertar o mundo, de trazer à tona o que, até então, jazia escondido, à maneira de um tesouro. Nomeando, somos um pouco mais capazes de compreender, mesmo sabendo que toda nomeação envolve uma exclusão, assim como toda luz lança sombras. Se, inconformados com as limitações da linguagem, desistíssemos das palavras, até a experiência do silêncio, perdendo o contraste, ficaria prejudicada. Entretanto, nenhuma palavra esgota o que ela procura significar, toda palavra deixa um resto, um espaço, que serão ocupados por novas palavras que, por sua vez, gerarão novos restos. Com isso em vista, é sempre um desafio identificar aqui e ali os restos deixados pelas nossas palavras, que permanecem à espera de novas nomeações. A título de um exercício, que você, cara leitora, caro leitor, pode continuar, vamos apontar um e outro exemplos. Que nome dar a essa melancolia que, sem deixar de ser triste, é quase alegre? E à solidão quando, ao invés de nos isolar, é concorrida? E a esses silêncios eloqüentes que, uma e outra vez, surpreendemos num olhar? E a essa insuficiência feliz que se segue ao amor consumado?
Camões já falava desse excesso que relativiza nossas palavras, dessa nascente de onde brota a linguagem. Com ele aprendemos que, à espera de um nome, há uma ferida que dói e não se sente, uma dor que desatina sem doer, um contentamento descontente e uma lealdade com quem nos mata.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
30.11.20
Guimarães Rosa, no Grande Sertão, escreveu que “se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma”. Já Dostoievski, nos Irmãos Karamazov, disse que “se Deus não existe, tudo é permitido”. Disseram a mesma coisa? Ou não?
Começando por Guimarães Rosa: não existindo Deus, talvez isso queira dizer que não vale a pena dar início a nada e que, ao invés de inventar a vida e o mundo, deveríamos, isso sim, aderir a um mormaço paralisante que a tudo banalizaria. Dostoievski parece dizer o contrário: Deus não existindo, estaríamos desobrigados de tudo, nada nos coagiria e tudo passaria a estar ao nosso alcance.
Sem licença num caso e sem restrições no outro. Então, só nos resta atestar a oposição. Mas é isso mesmo? Não há uma aproximação possível entre os dois autores? É possível. Se Guimarães insiste que não teríamos licença para coisa nenhuma não é porque, inexistindo Deus, o chão nos faltaria, tudo estando, então, fadado à insignificância? E, com Dostoievski, sendo tudo permitido, isso não quer dizer que tudo se equivaleria, tanto fazendo ir ou vir, criar ou desistir, norte ou sul, alto ou baixo?
Um e outro talvez estejam dizendo que a autocriação da humanidade depende do acolhimento de uma transcendência. Do acolhimento de Deus, no caso dos nossos autores. Há quem diga que, aceitando Deus, é dos humanos que retiramos alguma coisa e há quem diga, contrariamente, que o afastamento de Deus é, ao mesmo tempo, um apagamento da experiência humana. Não custa pensar um pouco sobre isso. Ou talvez, cara leitora, caro leitor, você prefira ver uma divergência onde sugeri uma aproximação entre Guimarães Rosa e Dostoievski. Também sobre isso vale pensar.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
19.11.2013
A experiência do silêncio é parte integrante das mais variadas tradições místicas, ocidentais e orientais, mais antigas ou mais próximas de nós. Assinala, como sabemos, os limites da linguagem verbal quando caminhamos para além das áreas mais habituais ou corriqueiras da vida humana. Se muito do que nos rodeia chega até nós através da linguagem, instrumento indispensável de revelação e descoberta, outro tanto permanece à espera da nossa capacidade de acolher, por meios distintos, o que, sem que nos excluir, nos excede. Seja no espaço mais diretamente religioso, seja no espaço laico, o silêncio é uma pausa que, recusando a gula da palavra, busca a compreensão.
Nosso tempo, entretanto, resiste ao silêncio e, entre nós, a palavra, ao invés de se constituir como um esforço, mesmo que limitado, de aproximação do real, apresenta-se como uma tentativa, tão freqüente quanto estéril, de escapar do duro trabalho da significação. Falamos em demasia, falamos sem cessar. Imaginamos, ilusoriamente, que a palavra, sem qualquer trabalho, recobre o real e que aquilo que vivemos cabe, sem mais, no campo do discurso. Não importa a experiência, sua estranheza, sua singularidade, sua opacidade. Estamos sempre dispostos a recobri-la com a pressa da palavra, como se significados estivessem à mão, disponíveis para nós. Não estão, a busca do significado é uma luta, a luta com as palavras de que fala o poeta. Mesmo a rara palavra acertada não afasta o sentimento de que o acesso à realidade depende, não poucas vezes, do reconhecimento do que escapa de qualquer palavra, a silenciosa corrente da vida.
Para pensar na quinzena:
“A poesia procura manter na palavra a intangível presença do incógnito” (Santiago Kovadloff)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
31.10.2013
A coluna da quinzena passada abordou o tema da secularização, definida, sem preocupação de um rigor maior, como a rejeição, no domínio público, de normas provenientes dos campos religiosos e/ou seu endereçamento ao domínio privado. Tendo como referência o catolicismo, o texto assinalava que as demandas em favor da secularização ocupam-se, exclusivamente ou quase, de questões de natureza moral. Na medida em que o catolicismo, enquanto leitura ampla da condição humana, ultrapassa de muito o âmbito da moralidade, é todo um patrimônio cultural que permanece submerso no debate sobre a secularização.
O catolicismo, e essa observação pode se estender, com algum cuidado, ao cristianismo como um todo, é, antes de tudo, uma antropologia generalizada, uma aproximação corajosa da condição humana, respeitada sua complexidade e seu caráter paradoxal. Com o cristianismo, aprendemos que a fidelidade à humanidade obriga a que reconheçamos os dilemas que a constituem. A fragilidade que acompanha nossas vidas, a finitude que nos envolve, o inescapável sofrimento existencial que nos espreita se ajuntam à nossa disposição para amar, à nossa coragem para criar e ao heroísmo cotidiano que muito justamente se espera de cada um de nós. Somos, é o cristianismo que o diz, esse amálgama de trevas e luz, que, reconhece, à maneira de uma música de fundo, os sinais de uma Alteridade que nos excede e que, longe da certeza, ressoa em nosso desejo mais profundo.
Como os esforços em favor da secularização concentram-se no campo da moralidade, os debates que se ocupam do cristianismo ficam bastante prejudicados. Seria interessante verificar, tendo como referência a riqueza da antropologia associada ao cristianismo, o que pode significar, aqui, secularização. Se é verdade que, no campo da moralidade, não poucas vezes, a secularização pode ser vista como uma defesa da singularidade humana, aqui, no âmbito da antropologia, ela se assemelha, com a mesma freqüência, a um desesperado, e inócuo, esforço para dissolver o enigma de que nós, os humanos, somos feitos e que nos cabe, como tarefa maior, enfrentar.
Dessa forma, estamos diante de um cenário intrigante. Se no campo da moral o catolicismo deve responder ao desafio posto pela modernidade, é essa mesma modernidade que, marcada pelo receio diante da dramaticidade do dilema humano, deve suportar a interrogação proveniente da antropologia cristã.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
15.10.2013
É amplamente compartilhada a ideia de que vivemos numa sociedade mais e mais secularizada. Secularização, e é assim que, por vezes, ela é exemplificada, quer dizer rejeição no domínio público de normas provenientes de campos religiosos e/ou seu endereçamento ao domínio privado . O problema é amplo, mas vou me ater, sem qualquer pretensão de um rigor maior, ao que ocorre quando o campo religioso em questão é o catolicismo. Se prestarmos atenção, não será difícil ver que a demanda da secularização diz respeito, quase sempre, a questões de natureza moral. O direito ao aborto, a admissão da legitimidade das relações homoafetivas, o recurso aos preservativos são vistos como exigências da modernidade, incompreensivelmente ignoradas pela igreja católica. Entram nessa conta, de forma um pouco distinta, o sacerdócio feminino e o celibato sacerdotal. E há, de fato, muito a discutir aí e, quem sabe, a rever. Que as questões relativas à moralidade ganhem essa expressão não é de se espantar, já que faz parte do itinerário da modernidade a progressiva submissão ao julgamento do sujeito das normas que recaem e incidem diretamente sobre sua vida. E, na medida em que essas normas se originavam da religião, a resistência à religião se configura como defesa da liberdade. E, é fato, não poucas vezes, algumas normas são injusticadamente restritivas da liberdade. Daí que apareçam os que defendem ser o cristianismo solidário de um tempo que já não é o nosso. Apesar do quadro se apresentar muito mais complexo do que aqui é possível sequer esboçar, há quem se dê por satisfeito com a descrição acima.
Entretanto, o curioso é que há um outro patrimônio cultural integrante do catolicismo que não vem à tona no debate sobre a secularização. Associado ao cristianismo, que aqui se estende para além do catolicismo, há toda uma dimensão antropológica, toda uma leitura da experiência humana, de sua complexidade e dos dilemas que a envolvem. Insisto, a questão é complexa, e é tratada aqui com a brevidade que as circunstâncias permitem. O cristianismo sempre foi muito sensível, sem que isso signifique a adesão a um pessimismo de base, ao sofrimento humano, sofrimento material e existencial. A mortalidade que nos acompanha, a fragilidade de nossas vidas, a pressão do nosso egoísmo, os paradoxos da sociabilidade e a resistência diante de nossa finitude são traços que o cristianismo nunca perdeu de vista. Por outro lado, a nossa disposição para amar, a nossa coragem para criar, a propensão para a vida comunitária, o sentimento de que de nós se espera um heroísmo cotidiano, a possibilidade de decifrar, ainda que de forma sempre inacabada o mundo à nossa volta e a confiança na presença de uma Alteridade que nos excede, são outros tantos traços do cristianismo, considerados com seriedade ainda maior.
Quando são questões de natureza moral que estão em pauta, temos mais clareza quanto à secularização. Mas quando o nosso olhar recai sobre essa dimensão mais existencial, como se coloca o tema da secularização? A direção é mesma de quando as temáticas eram de natureza moral? Continuaremos a conversa na próxima coluna.
(continua...)
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola-BH
01.10.2013
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