Handel, em sua obra Messiah (HWV56), já depois de entoar um Aleluia, capaz de fazer ressuscitar os mortos de tanta alegria, parece divertir-se pondo logicamente a morte e o túmulo nos lugares que lhes pertencem: a irrelevância. Diz o texto cantado, repetidamente cantado: «Oh death, where is thy sting? / Oh grave, where is thy victory? (Oh morte, onde está o teu aguilhão? / Oh túmulo, onde está a tua vitória?)».
Parece temeridade ou bravata alguém arriscar-se a relativizar «morte» e «túmulo» deste modo. Parece. E assim seria, não fora o significado do que é proclamado, gritado ao mundo, no momento, no acontecimento, do Aleluia.
É que a Ressurreição que tal grito sagrado comemora inaugura um campo lógico que subverte toda a racionalidade humana anterior, subjugada à pura imanência finitista de uma vida sem futuro possível, que tudo, absolutamente, relativiza à morte e ao túmulo, morte que é o operador da impossibilidade da continuidade da vida, túmulo que é o destino, único, inexorável, da mesma vida, seja ela qual for.
Com a ressurreição de Cristo, é o «logos» da vida que surge não apenas a uma nova luz perante a inteligência humana, é todo o sentido possível, consequentemente realizável, de tudo, de precisamente tudo, que surge substancial e essencialmente modificado: a morte já não é isso que destina o túmulo como fim único e inexorável da vida humana.
O anseio fundamental que marca o específico próprio da humanidade – o seu desejo de nunca morrer ou de para sempre viver –, que se expressou de tantos e belos modos ao longo da história das muitas culturas humanas que formam a humanidade como coisa cultural, por oposição a mera coisa natural, recebe concretamente com a ressurreição de Cristo a concretização que manifesta não apenas a possibilidade – coisa metafísica, mundanamente irreal – da perenidade infinita da vida, mas a sua realidade posta mundanamente: é no mundo e para o mundo que Cristo primeiro ressuscita. A sua subida ao Céu é posterior à sua subida à Terra, pois de uma subida se trata, também.
A ressurreição é o momento-chave absolutamente significativo que opera a metamorfose mundana de uma substância condenada a si própria – símbolo do túmulo e da sua vitória – a uma substância liberta de si própria enquanto coisa meramente mundana, doravante aberta, em absoluto, à autotranscendência no modo da vida que não tem fim, algo de impossível num mundo submetido ao movimento, ao tempo, à necessária entropia.
O grande escândalo da ressurreição reside no seu caráter absolutamente antientrópico, que subverte tudo o que se considera ser lei do universo, leis de necessária morte, universo que, deixado a si próprio, ou é um frio túmulo ou é um anedótico pulsar sem outro sentido que não o próprio pulsar, ainda outra forma, esta dinâmica, de túmulo.
Sem que se possa compreender o que a ressurreição seja no seu pormenor, se se quiser, qual o seu «algoritmo», mundanamente entendido – embora todo o domínio matemático seja, em si mesmo, metafísico –, a vida pré-morte do Ressuscitado é comparável a um especial “algoritmo”: o do amor, da caridade, em seu sentido propriamente cristão, que é, precisamente, esse em que Cristo a exerceu.
A vida de Cristo é, até morrer, um “algoritmo” mundano de amor, quer isto dizer que é um contínuo ato, uma contínua fórmula de ato de amor, de agência de bem para com tudo. Tudo. Assim como ao Deus-Pai criador nada “escapou” enquanto objeto de ereção do nada relativo de si próprio, assim ao Deus-Filho-Homem recriador nada “escapou” enquanto alvo de uma amorosa atenção: das Marias Madalenas, aos lírios do campo; dos paralíticos, às águas dos mares; dos pães e peixes escassos, aos Samaritanos vários; da água feita bom vinho, ao decoro do Templo; da matéria da madeira de carpinteiro, ao olhar da Maria cuja matéria mais íntima metamorfoseou o amor de Deus pelos seres humanos em humano infante.
Tudo Cristo divinamente amou no mundo. E como Deus só pode amar infinitamente, tudo amou infinitamente.
Ora, nós, por mais pobres ontologicamente que sejamos – eu – sabemos o que é amar alguém ao ponto de desejar infinitamente que esse alguém viva: ainda vivo ou já morto para nós, que viva! Se este nosso infinito fosse não ao modo da sucessão, mas ao modo de um ato absoluto, não seria este nosso desejo capaz de conseguir isso a que se propõe?
A ressurreição é este infinito desejo de vida transformado em vontade, isto é, a sua concretização. Nunca está em nosso poder realizá-lo plenamente. Mas, a Deus, basta querer.
Como?
Também sabemos, pois tudo o que o nosso em ato finito amor quer – e só pode querer podendo ontologicamente – realiza: do mudar a fralda ao Jesus bebé, ao acompanhá-lo junto da cruz. Pegue-se no simbolismo destes dois atos e realize-se a sua expansão simbólica sobre todos os atos de amor: o que é que, neste sentido, não podemos criar? Apenas o que não queremos.
A ressurreição é, então, apenas, o resultado de um ato de amor que é capaz de transformar em vida o desejo de vida que se tem, na forma do ato pleno de outorga de bem. Por analogia percebe-se: se eu, finito, posso dar vida finitamente através dos meus atos de amor, assim Deus também, infinitamente.
A ressurreição é o ato – o resultado – da plenitude do ato de amor de Deus-Pai por Deus-Filho.
É o mesmo ato que há entre mim e esse a quem amo, só que imperfeitamente. Em Deus, é perfeito. É esta a única diferença.
Note-se, no entanto, que estamos a falar de amor, não de emoções ou de sentimentos, que, ao contrário do amor, têm, ainda, no túmulo o seu destino.
É o amor que vence a morte e o túmulo. Não apenas o especial amor de Deus-Pai por Deus-Filho, mas cada ato de amor, por mais consideravelmente ínfimo que pareça, pois ínfimo é algo que o amor nunca é.
Como corolário, e é a mensagem a retirar em termos antropológicos da ressurreição, temos que cada ato de amor é um ato de ressurreição: se todos os atos de todos os seres humanos fossem atos de amor, não haveria aguilhão da morte ou triunfo do túmulo, pois o reino do amor é indiferenciável do Reino de Deus no seio da humanidade, que foi onde Jesus o veio anunciar como coisa possível e realizável.
A cada momento, ressuscitemos, isto é, mesmo contra toda a morte e túmulos omnipresentes, amemos. Em cada ato de amor, não apenas ressuscitamos como começamos a saborear o absoluto do que é viver, coisa espiritual, não biológica.
Américo Pereira
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Publicado em 17.04.2017