Teria escrito mil vezes teu nome na areia,
não fosse teu nome matéria em que meu coração se dissolve.
Mistério infinito do mar-espelho.
Amar é espelho do infinito.
Amar é mistério de areia.
Areia é matéria fluida, efêmera.
Areia é minério talvez eterno.
Este grão que penso reter nas mãos
amanhã mesmo o oceano levará.
Nunca saberei de que silício ou cecília
é feito.
Não saberei onde se quedará meu coração de areia:
em doces praias ou voragens,
rochas ou abismos.
Abismo sou agora, sem nome e sem pouso
E a matéria areia, fugaz e eterna,
dolorida e bela,
me consome.
Ana Cecília de Sousa Bastos
in Contemplação do mar
Confraria do Vento, Rio de Janeiro, 2022
imagem: pexels.com
Até morrer estarei enamorada
de coisas impossíveis:
tudo que invento, apenas,
e dura menos que eu,
que chega e passa.
Não chorarei minha triste brevidade:
unicamente a alheia,
a esperança plantada em tristes dunas,
em vento, em nuvens, n’água.
A pronta decadência,
a fuga súbita
de cada coisa amada.
O amor sozinho vagava.
Sem mais nada além de mim...
numa eternidade inútil.
Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)
Às vezes, tantas vezes, não é sobre as coisas grandes.
Às vezes, tantas vezes, é sobre as coisas simples.
Todos os dias.
Às vezes, é sobre aquele abraço mais demorado.
Às vezes, é sobre aquela mão a confortar. A abrigar.
Às vezes, é sobre aquele olhar mais fundo, a ver o que quase ninguém vê, a olhar de verdade: a olhar a alma.
Às vezes, é sobre aquele sorriso do coração, que salva aquele dia cinzento.
Às vezes, é sobre aquele gesto de ternura, que quase parece que cura.
Às vezes, é sobre aquele colo que acolhe. Que ampara. Que serena.
Às vezes, é sobre aquela palavra dita com amor.
Às vezes, é sobre aquele silêncio que escuta com amor. Que diz tudo, sem ser preciso dizer.
Às vezes, é sobre aquela companhia que está, que fica, que se importa.
Às vezes, é sobre cuidar.
Às vezes, é sobre fazer sorrir.
Às vezes, é sobre mostrar (e ser) o lado bom, a parte bonita. Do mundo. Da vida. De tudo.
Às vezes, é sobre o amor. Todas as vezes.
Em todas as vezes, é sobre o amor.
O amor que vamos deixando pelo caminho. E encontrando também.
Daniela Barreira
17.06.2024
imagem: pexels.com
A vida tem crueldades, mas também delicadezas que se
estendem além da paixão - que, sendo relâmpago e trovão,
nem sempre traz a desejada permanência. Em qualquer
relacionamento: amizade, família, trabalho, amor,
somos realidades em choques. O aprendizado não é fácil.
Aqui e ali, tiramos notas baixas, alguma vez somos
reprovados num teste importante. Aceitar essa reprovação
pode levar todo o tempo de uma longa vida. Queremos
o milagre, mais do que o milagre, queremos sempre a
salvação. Mesmo quando o chão começa a afundar,
e o tapete deslizou sob nossos pés aflitos,
teimamos em pensar que ainda há remédio:
um pobre band-aid serviu.
Ou um passe de mágica que nos tornasse
menos expostos, menos humanos.
LYA LUFT
In Secreta Mirada, 1997
ABALO SÍSMICO
O centro do mundo me abala.
Se movem dentro de mim
placas tectônicas
de contrastes turbulentos
entre a maciça certeza
e o bloco monolítico
das opiniões equivocadas.
A escala Richter do que vivo
abala minhas estruturas.
Fico me perguntando
se tremo nas bases
ou se o mundo é torto
e cospe fogo.
Minhas mãos conhecem
o abalo sísmico do que toco.
Em meio aos tremores,
amor é o meu epicentro.
Ronaldo Costa Fernandes
in A Trama do Avesso
7Letras, Rio de Janeiro, 2024
imagem: pexels.com
Vem! Amanhã começa o mundo...
A primeira luz. O primeiro alento.
O primeiro rosto. O que os outros
Vão dizer? As mil palavras de sempre
Talvez também algumas novas
Mas as palavras, meu amor, as palavras
Ainda nem se formaram: só amanhã
Começa o mundo. A primeira pele.
A primeira lua. O primeiro susto.
O homem que disse, uma vez, sabia:
Nascer é mesmo muito comprido.
Nascer, meu amor, não termina nunca.
Mariana Ianelli
in Canções Meninas
Edições Ardotempo, 2019
imagem: Zinaida Evgenievna Serebriakova, russa, Katya (1923)
NÃO CICATRIZA
para Norma Müller
Escrever como quem saca
uma faca
e fere de morte
a pessoa amada.
Escrever como quem
pronto socorre,
aninha no colo,
pensa as feridas.
Escrever o que corta,
o que cura,
o que não cicatriza.
Marcelo Sandmann
in Não Cicatriza
Kotter Editorial, Curitiba, 2021
AS MÃOS DAS MULHERES
Tão atarefadas sempre, as mãos das mulheres
ficam por vezes vazias de afagos,
quase ausentes e indecisas
no esboço de desejos sem retorno.
É então que aprendem a atear o fogo
com a benevolência debaixo da língua
e inventam um alfabeto transparente
para descreverem com detalhe
as madrugadas silenciosas.
Aquelas que colocam no olhar
um estremecimento sagrado
e permitem adivinhar a perfeita simetria de aves
a rasarem a silhueta das casas.
Por isso esperam, ansiosas, de olhos colados na janela,
o regresso dos bandos de estorninhos no fim do verão.
Graça Pires
in Antígona passou por aqui
Poética, Lisboa, 2021
Que, neste Natal, mais do que tudo, sejas. Sejas de verdade.
Que, neste Natal, sejas o abraço que refugia.
Que, neste Natal, sejas o sorriso que abraça.
Que, neste Natal, sejas a mão que segura.
Que, neste Natal, sejas o olhar que toca.
Que, neste Natal, sejas a ternura que cura.
Que, neste Natal, sejas o colo que cuida.
Que, neste Natal, sejas a palavra que fala do coração, ao coração.
Que, neste Natal, sejas a presença que conforta.
Que, neste Natal, sejas o gesto que salva.
Que, neste Natal, sejas a vida que ama.
Que, neste Natal, sejas a luz que acende todas as estrelas. A luz que acende a chama da esperança.
Que, neste Natal, sejas a paz que abraça a alma. A paz que serena o coração.
Que, neste Natal, sejas o lado bom, a parte bonita. Do dia, da vida, do mundo. Para alguém.
Que sejas o milagre de Natal de alguém. Que faças sorrir. Só por seres, por estares, por existires. Com amor.
Que, neste Natal, mais do que tudo, sejas amor.
Talvez descubras que é tudo o que importa. E talvez descubras que o verdadeiro sentido do Natal (e de tudo) é continuar a sê-lo, todos os dias. Sempre. E a encontrá-lo também.
Sê Natal. Feliz Natal.
Daniela Barreira
in: imissio.net 18.12.23
imagem: pexels.com
Página 1 de 16