“Tomai cuidado com os mestres da Lei!
Eles gostam de andar com roupas vistosas...” (Mc 12,38)
No evangelho deste domingo, os mestres da Lei (escribas) e a viúva constituem dois símbolos que encarnam maneiras de viver diametralmente opostos. Os primeiros se movem sob o impulso do poder e da vaidade, querendo oferecer uma imagem ostentosa e buscando reconhecimento, privilégios e dinheiro através de qualquer meio, inclusive usando da religião. Jesus denuncia as “largas túnicas” que costumam utilizar, nos ambientes mais diferentes, como sinal distintivo de superioridade.
No nível mais profundo, podemos considerar os “mestres da Lei” como símbolos do ego (religioso) que, carentes de interioridade, vivem em função de suas próprias necessidades e interesses narcisistas.
Por outro lado, a imagem da viúva representa a pessoa capaz de doar e de entregar-se (“tudo o que possuía para viver”), de maneira generosa e desapegada.
O contraste que o relato realça deixa transparecer o que cada um de nós vive em nosso interior. Em nós convivem o melhor e o pior, e em diferentes “doses”, tanto o “escriba” (o ego que gira constantemente em tono a si mesmo), como a “viúva” (a dimensão profunda que vive na compreensão e se expressa no amor que se entrega).
O evangelista Marcos só precisou de sete versículos para mostrar duas realidades de alto contraste e que põem em evidência duas formas de situar-se na vida e na religiosidade. O relato deste domingo começa situando Jesus em seu ministério pedagógico. Como verdadeiro Mestre, ensinava às pessoas, ensinava com transparência e a partir da liberdade que o caracterizava. Nesta ocasião, seu ensinamento se converte em um conselho imperativo: “tomai cuidado com os mestres da Lei”. E dá razões pelas quais é preciso proteger-se das atitudes deles.
Certamente os escribas eram os “experts” e intérpretes oficiais e lícitos da Escritura. Gozavam de grande autoridade; buscavam sempre serem vistos e admirados; vestiam de forma especial; Jesus os denuncia porque eles gostavam de andar pelas praças com vestes exuberantes. Não é casualidade que também os denuncie como aqueles que “devoravam os bens das viúvas”, pois costumavam persuadi-las demonstrando serem muito devotos para administrar seus bens e aproveitar-se delas.
Eles são justamente o contrário daquilo que Jesus vem pregando; o conflito está armado. Estes líderes religiosos revelam a superficialidade na vivência e no compromisso de sua fé. Uma religiosidade baseada na aparência, na conservação de uma posição sociocultural, em manter um lugar visível e hierárquico, em alimentar um ego inflado e enaltecido que os conduz a viver de modo egocêntrico e egoísta.
O seguimento de Jesus, no entanto, é um modo de viver descentrado, um compromisso existencial, onde não prevalece a ambição do ego, mas o esvaziamento e a saída de si mesmo para centrar-se no cuidado e no serviço aos demais.
A ambição e a atitude dos “mestres da Lei” não se extinguirão nunca, nem sequer nas comunidades cristãs. Ainda hoje, a figura do “mestre da lei” continua atuante, sobretudo quando os “ministros” (ordenados e não-ordenados) insistem no uso exagerado de vestimentas exóticas que tem sua origem no modo de vestir dos poderosos do império romano. Tal insistência parece indicar a necessidade, consciente ou inconsciente, de manifestar posição de poder ou uma carência de interioridade. A “cultura da exterioridade” e da busca do reconhecimento revelam o “complexo de pavão”, quando predomina a preocupação com as aparências, o espetáculo visual, a insistência em ser o centro das atenções nas celebrações, em buscar o elogio e serem admirados por todos.
Diante do espetáculo visual dos “mestres da lei”, o evangelista Marcos apresenta uma nova situação: a viúva que colocou duas moedinhas no cesto das ofertas e que servirá de contraste para compreender a mensagem de Jesus. Esta mulher é muito mais que uma viúva que depositou uma insignificância no cesto. Jesus realça esta figura simbólica que rompeu os esquemas patriarcais e religiosos dos poderosos judeus e, neste caso, dos escribas. Um simples gesto recuperou a dignidade de uma mulher que, por ser mulher, não tinha nenhuma visibilidade e, por ser viúva, estava numa posição de indigência absoluta, segundo a visão judaica.
O gesto dela desvela a essência do coração da nova comunidade de Jesus: um abandono e confiança em Deus, uma gratuidade plena, um amor solidário, generosidade. Ela não tem poder algum, nem cargos, nem possui “dignidade eclesiástica” alguma; a única coisa que possui é um coração generoso, mas isso conta pouco nas instituições de poder. Para Jesus, o centro da comunidade cristã não é o poder e nem são os poderosos, mas as pessoas simples, a fé e o bom coração dos humildes e misericordiosos.
Jesus admira a pobre viúva. Eles não se conheciam; ela não é discípula, nem cristã..., ela é uma mulher, dos pés à cabeça, que fiel à sua consciência, deposita tudo no Templo, cujo “deus”, manipulado pelas autoridades religiosas, a exclui de quase tudo por ser mulher; no entanto, ela sabe, no fundo de suas entranhas, que Deus não é como propagam aqueles que a oprimem e alimentam uma vaidade vazia, mas é Aquele revelado pelos profetas e salmos, e a Ele se entrega e confia totalmente.
A generosidade desta mulher não está baseada numa obrigação moral, nem em um gesto público para ser aplaudido, mas se apoia na consciência de sua dignidade que a mobiliza a entregar tudo o que ela considera que deve doar.
Jesus já tinha estado no Templo, purificando-o e expulsando aqueles que ocupavam o lugar de Deus. No relato de hoje tudo é diferente; Ele não está irado e tenso, mas se admira da viúva despojada; isso lhe dá força e convoca os seus discípulos para clarear as ideias deles e dizer-lhes onde está o verdadeiro amor e a autenticidade de vida cristã; e que não se enganem, porque o discípulo e a discípula devem ter em Deus seu tesouro.
Ao contemplar a pobre viúva, talvez Jesus pensasse em sua mãe, em todas as mulheres pobres que, ao longo da história, mantém os lares, as comunidades cristãs, visitam os doentes, partilham o pão com famintos e, sempre com um detalhe nobre: com ternura, com dignidade, com compaixão. Esta viúva, contemplada por Jesus, continua caminhando por nossas ruas e paróquias, anônimas, mas com um coração generoso. Porque é essa capacidade de entregar tudo sem medida que converte uma pessoa em discípula de Jesus.
Jesus nos convida a olhar este exemplo vivo para ilustrar o modo de nos situar no seu seguimento, em contraste com os escribas e fariseus. Critica estes personagens, certamente, mas propõe uma alternativa: a de uma vida conectada à dignidade e que tem como consequência gestos de entrega, de simplicidade e liberdade. O modo de viver a vida e a fé não é questão de quantidade, das vezes que repetimos os ritos, das vezes que fazemos gestos generosos, do dinheiro que doamos ou outros atos repetitivos que vão se esvaziando de sentido. É muito mais uma questão de qualidade, de uma autoconsciência de nos percebermos enraizados numa Presença Providente que nos mobiliza a colocar toda a nossa realidade humana sob a influência da sua energia criadora.
Texto bíblico: Mc 12,38-44
Na oração: O Evangelho desvela dois personagens que habitam nosso interior; o doutor da lei, centrado em si mesmo, vive da aparência, usa da religião para se projetar, para brilhar... É a cultura da vaidade, da exterioridade... Por outro lado, a pobre viúva representa aquilo que em nosso interior não valorizamos ou rejeitamos, mas que, na sua pobreza e humildade, desvela-se diante de Deus com um coração generoso. Não pensa em si, mas nos outros; partilha tudo o que tem. Não busca a glória e o elogio.
- Qual dos dois personagens eu alimento? Vivo da aparência e da vaidade ou do descentramento e serviço?
- O que em mim é “doutor da lei”? O que em mim é “pobre viúva”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
09.11.2024
“Quem quiser entre vós ser grande, que se faça vosso servidor” (Mc 10,43)
Enquanto fazem o caminho de subida a Jerusalém, Jesus vai anunciando aos seus discípulos o desenlace trágico de sua missão na capital. Mas os discípulos não o compreendem, pois estão disputando entre eles os primeiros lugares. Tiago e João, discípulos de primeira hora, se aproximam d’Ele para pedir diretamente que, no Reino, pudessem sentar-se “um à sua direita e outro à sua esquerda”.
Tiago e João pedem privilégios a Jesus e, diante deste pedido atrevido, os outros dez discípulos ficam indignados contra eles. O grupo está mais agitado que nunca. A ambição está dividindo o grupo. Ninguém no grupo dos discípulos entende que seguir Jesus de perto, colaborando em seu projeto de vida, nunca será um caminho de poder, de grandezas e ambição, mas de doação e compromisso fiel. Por isso, Jesus reúne a todos para deixar claro seu modo de ser e pensar. Recorda-os que aqueles que são reconhecidos como chefes utilizam seu poder para “tiranizar” os povos, e os grandes “oprimem” seus súditos. Jesus é taxativo: “entre vós, não deve ser assim”.
Jesus dá tanta importância ao que está dizendo que se apresenta a si mesmo como exemplo, pois não veio ao mundo para exigir que lhe sirvam, mas “para servir e dar sua vida em resgate de muitos”. Ele não ensina ninguém a triunfar em sua nova comunidade, nem alimentar uma ambição que acaba envenenando as relações entre seus seguidores. A atitude essencial no seu Reino é o serviço, desgastando-se em favor dos mais fracos e necessitados.
O ensinamento de Jesus não é só para os dirigentes religiosos. A partir das funções e responsabilidades diferentes, todos devemos nos comprometer a viver com mais entrega no serviço de seu projeto. Na Igreja, não precisamos de imitadores de Tiago e João, mas de seguidores(as) de Jesus. Quem quiser ser importante, que desça do pedestal do poder e se coloque no lugar mais baixo, para trabalhar e colaborar com o Reino.
É muito próprio do ser humano o impulso egóico por sobressair sobre os outros, ter privilégios, conquistar fama. Esta é uma das grandes tentações que afloram, sobretudo em muitos membros das comunidades cristãs, ou seja, o avassalador desejo de serem protagonistas, de se imporem sobre os outros, de subirem o pedestal para serem o centro das atenções; essa é a desejada posição onde possam ser vistos, serem obedecidos e receberem algum tipo de bajulação. Todos estamos expostos à tentação de nos sentirmos indispensáveis, insubstituíveis e únicos.
E grande parte das tensões nos relacionamentos nas comunidades cristãs surge da confusão que fazemos entre “poder” e “autoridade”. Poder: é a faculdade de forçar, coagir ou pressionar alguém a fazer sua vontade, por causa de sua posição ou força; exige submissão ou obediência cega.
Autoridade: é a capacidade de convencer, atrair, seduzir..., pelo seu modo de ser e viver, pelos seus valores, pela sua causa mobilizadora. Desperta “seguimento”.
O poder é definido como uma “faculdade”, enquanto autoridade é definida como uma “habilidade”. Uma pessoa pode estar num cargo de poder e não ter autoridade sobre as pessoas. Ou, ao contrário, uma pessoa pode ter autoridade sobre os outros sem estar numa posição de poder.
Outro modo de diferenciar “poder” e “autoridade” é lembrar que o poder pode ser vendido e comprado, dado e tomado. A autoridade, por sua vez, não pode ser comprada nem vendida, nem dada ou tomada.
A autoridade diz respeito àquilo que a pessoa é em sua essência, em sua identidade original; diz respeito ao seu caráter, à sua interioridade nobre e à sua presença inspiradora junto aos outros.
Acontece que, muitas vezes, aqueles que não vivem a autoridade descentrada, se apoiam no poder. Deixam de convencer e passam a se impor; perdem o apreço pelos outros e se mantém à base de força e opressão.
O poder é uma tentação permanente, inclusive nas comunidades cristãs; isso se manifesta pela quantidade de vezes que encontramos no NT advertências às lideranças eclesiásticas para que não corrompam sua autoridade, convertendo-a em poder (1Ped 5,1-4).
O poder encontra sua expressão visível e sua força numa instituição de estrutura piramidal, hierárquica. Neste paradigma “de cima para baixo”, todos estão olhando para cima, tentando agradar aqueles que ocupam cargos, e não dirigem o olhar para os lados, onde a verdadeira realidade de uma instituição está acontecendo.
A estrutura hierárquica-piramidal fortalece a estrutura de poder, controle, vigilância, supervisão...; tal estrutura acaba por afetar e asfixiar a liberdade interna, a motivação e o compromisso dos membros da instituição; além disso, ela suprime iniciativas, criatividade e incentivos, em relação aos novos projetos.
O poder religioso é o mais tóxico, pois manipula consciências, alimenta culpa e medo de Deus, centraliza as decisões, é incapaz de escuta e de discernimento... Quão distante está da “sinodalidade”, modo original de ser e proceder das primitivas comunidades cristãs! Na Igreja não há poderes, e sim funções diferentes. Nela, a autoridade é exercida como um serviço fraterno.
Assim sendo, Jesus não se situou, diante de seus discípulos como o superior que exige “obediência” de seus súditos, mas como o amigo exemplar que desperta “seguimento” de seus fiéis “amigos” (Jo. 15.15). Jamais se disse dos discípulos ou de qualquer outro ser humano que se relacionasse com Jesus mediante a obediência ou a sujeição, que é a resposta obediente a uma ordem. Portanto, os Evangelhos não falam de “obediência” a um poder que se impõe, submete e manda. A relação que se estabelece entre os discípulos e Jesus é a do “seguimento”.
De fato, nos evangelhos o verbo “obedecer” nunca é aplicado a indivíduos ou grupos que se submetem a um superior. Com efeito, o verbo “obedecer” aparece nos Evangelhos apenas três vezes: quando se diz que “o vento e o mar obedecem” a Jesus (Mc. 4,41); quando o próprio Jesus diz aos discípulos que, se tiverem fé, até uma amoreira silvestre lhes obedeceria (Lc. 17,6); e, quando as pessoas ficam espantadas ao verem que Jesus “manda até nos espíritos impuros e eles lhe obedecem” (Mc. 1,27).
No entanto, o verbo “seguir” aparece 67 vezes para expressar a relação entre Jesus e aqueles(as) que creem e confiam n’Ele.
A autoridade de Jesus, portanto, não se fundamenta na submissão e nem se sustenta no poder que manda, que controla e que dá ordens, mas suscita seguimento, pois Ele se apresenta numa atitude exemplar que atrai e dá sentido à vida das pessoas que o circundam.
A partir deste pano de fundo, o evangelho deste domingo aparece como um manual de uma Igreja de servidores (as), onde a vida adquire seu mais profundo sentido, onde surgem relações novas, fundadas na gratuidade, na compaixão, na acolhida...
Já é tempo de uma revolução. Há de ser uma revolução original e não violenta que brota do evangelho. Uma revolução de gente boa, simples, inteligente, sábia, que pratica a empatia, a ética e o sentido comum, que valoriza o silêncio e a palavra, que acolhe a todos, brancos ou negros, homens ou mulheres...
Falamos da revolução do serviço. Jesus não atua por meio do poder, mas do serviço. Por isso, seus seguidores devem renunciar o poder (isto é, a imposição sobre os outros). Aqui se expressa a Nova Comunidade que nasce do coração do Compassivo e Servidor, invertendo o desejo de poder dos “filhos de Zebedeu” e dos outros dez que queriam organizá-la a partir de cima. Por isso, frente à manipulação messiânica dos “filhos de Zebedeu”, Jesus estabeleceu as bases de uma fraternidade onde não existe poder, senão serviço, exercido pelo “diakonos” (servidor libre).
Texto bíblico: Mc 10,35-45
Na oração: Diante de Jesus servidor deixe que Ele desvele sinais de “zebedeus” presentes em sua vida, quando busca poder, alimenta vaidade, tem desejos de imposição e controle sobre os outros, manipula consciências...
- Na sua comunidade (paroquial, religiosa, familiar...) predomina o poder que cria subservientes ou a autoridade que alimenta subsidiariedade (partilha, confia serviços e ministérios...).
Pe Adroaldo Palaoro sj
17.10.2004
“Bom Mestre, o que devo fazer para herdar a vida eterna?”
Uma pergunta fundamental que brota de nossa interioridade: como chegar a viver uma vida que tenha o sabor de “eternidade”, ou seja, para além das limitações do tempo, da fragilidade e da caducidade das relações humanas; em outras palavras, uma vida plena, livre, profunda, transbordante... Todos desejamos dar um sentido à nossa vida, vivê-la com intensidade e com inspiração. Não nos satisfaz a explicação de que viveremos essa vida “na eternidade”: não poderemos começar a vivê-la já agora, em meio às carências, desafios, perdas, fracassos, crises... que vão se fazendo presentes em nossa existência cotidiana?
Aqui não se trata uma aspiração a mais; é o desejo de toda pessoa conseguir uma existência digna e feliz. Quem deseja uma vida vazia? Preenchê-la parece ser a meta, mas a questão é: de quê. Alguns mais, outros menos, mas todos aspiram uma vida plena, intensa, completa...
O “quê” da questão surge quando alguém descobre sua mochila vital transbordante de objetos, riquezas, ansiedades, pressas e vivências que, enganosamente, se mostram valiosos, mas que na realidade não o são. E quão cheia parece estar essa vida! E quão vazia a pessoa podem se sentir! Essa é a “síndrome existencial” onde o acumular embota os sentidos, atrofia o interior e não deixa lugar para o que é verdadeiramente importante. Uma vida cheia? Cheia de quê? De Vida!
Aqueles que seguiram Jesus de perto fizeram a experiência de estar junto de alguém que vivia intensamente, sem colocar sua segurança na posse de bens ou no apego às pessoas, títulos, prestígio, poder... Seu único tesouro era a confiança em seu Pai, e seu projeto, como Mestre, era ensinar as pessoas a viverem a partir da liberdade e da alegria de servir, sem se deixar determinar pelo apego e preocupação em possuir e acumular.
É nesse contexto que alguém, de maneira inesperada, interrompe o caminho de Jesus, ajoelha-se diante d’Ele, chama-o de “Bom Mestre” e manifesta uma pergunta existencial, presente em todo ser humano: “que devo fazer para herdar a vida eterna? Chamou Jesus de “Bom Mestre”, não tanto como um reconhecimento de sua bondade, mas porque intuía nele uma autoridade capaz de orientar-lhe à hora de conseguir essa vida que tanto buscava. Mas Jesus, sem maiores explicações, remeteu-o à vivência dos mandamentos. Quando o homem lhe respondeu que os havia guardado desde sua juventude, Jesus fixou nele seu olhar com amor, acentuando a comunicação pessoal com alguém que andava buscando a Deus.
Jesus intui que o homem que está prostrado diante de si é bom, religioso e pratica os mandamentos; ele tem uma consistência humana; por isso, Jesus quer ajudá-lo a ir mais além da simples observância dos preceitos. A vivência dos mandamentos é necessária, mas não basta. Realizar o que está previsto pode ser até fácil e cômodo, mas não há muito mérito nisso; é preciso ser criativo e descobrir caminhos novos, e não apenas cumprir leis e preceitos. Para Jesus, não basta ser apenas cumpridores de normas, por mais recomendáveis e santas que sejam. A cada um Ele diz o que ainda “falta”.
Jesus não se fixa na situação atual daquele homem, preocupado em acumular riquezas, mas vislumbra nele uma outra possibilidade de vida e que estaria esperando em seu interior para nascer, para iluminá-lo nesse novo percurso existencial ao qual o “Bom Mestre” o convida a empreender. Para “herdar a vida eterna” é preciso investir os próprios recursos internos numa vida descentrada, oblativa, comprometida e que se expressa na partilha dos bens com os mais necessitados.
Jesus revela um olhar profundo capaz de vislumbrar o melhor que está presente naquele homem que veio correndo ao seu encontro, esperando uma ocasião para se expressar. Seu olhar contemplativo não permanece na superficialidade da pessoa, nas suas limitações e apegos.
Jesus viu, em profundidade, que o rico corria o risco de sufocar os desejos de liberdade, justiça e fraternidade presentes no mais íntimo do seu ser.
No diálogo com ele, Jesus o ajuda a discernir. Propõe-lhe que olhe o seu interior, à luz do amor com o qual Ele mesmo, olhando-o, o ama; é com esta luz do amor que o homem deve verificar a que seu coração está apegado verdadeiramente. Ele deve descobrir que seu bem maior não é acrescentar outros atos religiosos, talvez mais difíceis, mas, pelo contrário, esvaziar-se de si mesmo, vender o que ocupa sou coração para ampliar espaço para Deus. Esta é a chave que o abre à vida e que se encontra justamente na atitude de deixar, soltar, abandonar, desapegar-se, descentrar-se, partilhar... Viver esta vida com sabor de eternidade está longe de acumular, reter, colocar a segurança nos bens...
É uma indicação preciosa também para todos nós. Onde investimos o melhor de nós mesmos? Qual é o “tesouro” que nos seduz? Para onde estão orientados nossos “afetos”?
A “pressa” do homem do relato deste domingo, que veio correndo ao encontro de Jesus, parece que expressa uma falsa inquietude, uma má consciência, a necessidade de perfeição, de ser maior ou o melhor que os outros. Em todo caso, ele não está preocupado com a situação dos outros, mas com sua própria situação, com sua vida futura. Que importa a ele a situação dos camponeses, dos sem-teto, dos doentes... ou dos excluídos com os quais Jesus mais se preocupa?
Jesus o desafia a romper com seu mundo fechado, com seu modo legalista de viver... O desafio consiste em ir além da prática dos mandamentos, radicalizando-a. Como? Vivendo a solidariedade com os pobres e o desapego, numa experiência real da centralidade de Deus em sua vida, sem resquícios de idolatria. E, além disso, dar o passo do discipulado do Reino, no seguimento de Jesus.
Tal desafio deixa o homem contristado. O apego aos bens torna árido o seu coração, fecha-o no egoísmo, impede que ele se abra na direção de Deus e dos irmãos.
O “homem rico” do evangelho de hoje é o nosso espelho: nele nos vemos; nele Jesus nos desafia a sair de nossa acomodação, a romper nossa prática rotineira das leis, do apego aos bens, prestígio, poder... (falsos ídolos que nos desumanizam).
Jesus “olhou aquele homem com amor” e viu em seu interior ricas possibilidades, impulsos para algo maior, o desejo do “mais” ... Ele também dirige o seu “olhar” para cada um de nós e capta a grandeza e a nobreza presentes no nosso coração. Somos seres de travessia, de largos horizontes... Somos, por natureza, expansivos, em contínuos deslocamentos nos projetos, nos relacionamentos, na maneira de viver...
Nós nos humanizamos à medida que nos deixamos mover pelos sonhos, projetos, desejos profundos...
Ao mesmo tempo, Jesus, com seu olhar, “lê”, no mais escondido de nosso interior, os mais diferentes medos e apegos que minam a força e a coragem do seguimento.
Carregamos em nosso coração um “gérmen de vida” que busca desenvolver-se e chegar à plenitude.
S. Inácio nos diz que “Deus pôs grandes desejos em nosso coração”. O desejo é desejo de vida. O desejo não é a posse, mas a expectativa. Como explica S. Agostinho, o desejo escava no nosso interior uma capacidade maior de receber.
Quem se julga saciado ou pouco interessado em aceitar um esvaziamento de si, apaga dentro dele este desejo que tem sabor de eternidade e embarca numa vida medíocre e sem criatividade.
Texto bíblico: Mc 10,17-30
Na oração: diante de Jesus, que desafia a todos a “fazer estrada com Ele”, deixar ressoar estas perguntas: “há vida na minha maneira de viver atualmente? Há algum “afeto desordenado” que atrofia as potencialidades presentes em meu interior? Quem é o “senhor” que move meu coração? A quê me dedico a investir os melhores recursos que recebi como dons? O mundo dos pobres e excluídos desperta uma sensibilidade solidária em mim, ou permaneço “indiferente” frente a esta cultura do consumismo e do esbanjamento?...”
Pe Adroaldo Palaoro sj
11.10.2024
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“Desde o início da Criação, Deus os criou homem e mulher” (Mc 10,6)
Os fariseus apresentam a Jesus uma pergunta para pô-lo à prova. Desta vez não é uma questão sem importância, mas uma situação que alimenta muito sofrimento às mulheres da Galileia e é motivo de acaloradas discussões entre os seguidores de diferentes escolas rabínicas: “É lícito o marido separar-se de sua mulher?”.
Não se trata do divórcio moderno que conhecemos hoje, mas da situação em que vivia a mulher judia dentro do casamento, controlado absolutamente pelo homem. Segundo a Lei de Moisés, o marido podia romper o contrato matrimonial e expulsar sua esposa de casa. A mulher, pelo contrário, submetida em tudo ao homem, não podia fazer o mesmo.
A resposta de Jesus surpreende a todos. Não entra nas discussões dos rabinos. Convida a descobrir o projeto original de Deus, que está acima de leis e normas. Esta lei “machista”, em concreto, se impôs no povo judeu pela dureza do coração dos homens, que controlavam as mulheres e as submetiam à sua vontade.
Jesus aprofunda no mistério do ser humano a partir de sua origem, quando Deus “os criou homem e mulher”. Os dois foram criados em igualdade. Deus não criou o homem com poder sobre a mulher. Não criou a mulher submetida ao homem. Entre homens e mulheres não deve haver dominação por parte de ninguém.
A partir desta visão do ser humano, já presente na origem, Jesus oferece uma visão do matrimônio que vai mais além de tudo o que foi estabelecido pela Lei. Mulheres e homens se unirão para “serem uma só carne” e iniciar uma vida compartilhada na mútua entrega, sem imposição nem submissão.
Este projeto matrimonial é para Jesus a suprema expressão do amor humano. O homem não tem direito algum para controlar a mulher como se fosse seu dono. A mulher não deve aceitar viver submetida ao homem. É Deus mesmo que os atrai a viver unidos por um amor livre e gratuito. Jesus conclui de maneira clara: “O que Deus uniu, o homem não separe”.
Com esta posição, Jesus está destruindo na raiz o fundamento do patriarcado e do machismo, sob todas as suas formas de controle, submissão e imposição do homem sobre a mulher. Não só no matrimônio, mas em qualquer instituição, civil ou religiosa.
O evangelho de hoje nos convida a retornar ao início da criação do ser humano, homem e mulher, chamados a viver a vocação da união mútua. O homem deve deixar seu pai e sua mãe, deve abandonar o sistema patriarcal e empreender um novo caminho, não já em solidão, mas na união maior imaginável: “se unirá à sua mulher e serão os dois uma só carne”. A identidade não é uma soma, mas a comunhão crescente que busca a unidade.
Esta proposta original de Deus é vivida sempre entre os casais, de ontem e dos tempos atuais?
Hoje descobrimos, talvez com mais claridade que em outros tempos, o quão difícil para muitos casais manter a unidade amorosa, que no princípio de sua relação parecia ser tão forte.
São muitos os fatores dissonantes que impedem o “concerto amoroso”, são muitos os distanciamentos, as incompatibilidades, as divisões..., que esfriam o romance entre os casais. Hoje também, mais conhecedores da biologia e da psicologia humana, somos mais sensíveis e compreensivos para com aqueles que vivem profundos conflitos na relação matrimonial e, no entanto, sentem o chamado para a unidade.
A partitura que o Criador nos oferece de comunhão entre o homem e a mulher é belíssima, é “imagem e semelhança do mesmo Deus”, mas também é difícil interpretá-la como projeto de vida e de aliança sem volta atrás.
Jesus, na sua vida oculta e pública, encontrou uma realidade de muitos casais que não correspondia àquela desejada por seu Abbá Criador: “no princípio não foi assim!”. Ele que tem palavras de vida (transmissoras de vida), afirma taxativamente: “O que Deus uniu, o homem não separe”.
Estas palavras não são uma lei fria, mas uma promessa, uma realidade possível. O ser humano pode bloquear, com sua falta de fé e seu compromisso, o dom que lhe foi concedido. É preciso deixar o protagonismo para Deus na relação de casal.
Jesus convida a deixar-se unir por Deus, a descobrir aquela pessoa, na qual cada ser humano encontra sua “ajuda semelhante”. É preciso saber discernir que é “o que Deus uniu”. Bendizer aquilo que Deus “não uniu” é uma profanação. A beleza do Sacramento do Matrimônio está precisamente em deixar transparecer a benção de Deus diante daquele casal que Ele foi unindo através da aventura e do romance amoroso.
Ou seja, “serão uma só carne” quando realizam essa união ao longo da vida; tal realidade não se revela de forma automática ou mágica no instante de dizer “sim, quero”. Demora toda uma vida em realizá-la; às vezes não se consegue, o vínculo se interrompe ou se fragiliza. Requer, em alguns casos, sanação; em outros, refazer o caminho da vida.
O Evangelho de Jesus Cristo não é um código canônico, mas a Boa Nova da misericórdia. Deus nos ama também e, sobretudo, em nossas falhas e fracassos. A Igreja não é alfândega, mas casa paterna-materna onde há lugar para cada um com sua vida, carregada de recursos e de fragilidades.
Não se trata de pôr em discussão a visão cristã do matrimônio, mas de ser fiéis a esse Jesus que, ao mesmo tempo que defende o matrimônio, se faz presente a todo homem ou mulher, oferecendo-lhes sua compreensão e sua graça. Nunca se deixa determinar pela lei que julga e condena; mas, deixa transparecer um coração compassivo e acolhedor para com aqueles(as) que fracassaram em seu projeto de amor mútuo.
O próprio Jesus, que condena o adultério, se apresenta como defensor de uma mulher surpreendida em adultério, quando se encontra com ela cara a cara, cuja vida as autoridades religiosas queriam eliminar, Jesus, com sua atitude misericordiosa, longe de destruí-la, a perdoa e lhe oferece um novo futuro: “Nem eu te condeno. Vai e de agora em diante não peques mais”. Esta é a atitude mais humana e humanizadora: crítica exigente frente a uma sociedade que chama “amor” a qualquer coisa. E toda a compreensão do mundo diante de quem tem que viver situações de dor e de sofrimento, porque seu amor se rompeu ou fracassou.
Os fracassos matrimoniais não são sempre e nem fundamentalmente um problema jurídico que se possa resolver com determinadas leis. São problemas pessoais, emocionais, psíquicos, de raízes e consequências muito profundas, que as leis não podem nunca solucionar.
Temos de redescobrir atitudes mais próximas para com os casais rompidos, independentemente de soluções jurídicas, civis ou eclesiais. Como cristãos, não podemos fechar os olhos diante de um fato profundamente doloroso. Os(as) divorciados(as), geralmente, não se sentem compreendidos pela Igreja, nem pelas comunidades cristãs. A maioria só escuta a aplicação de leis e disciplinas que não conseguem entender. Abandonados(as) em seus problemas e sem a ajuda de que necessitam, não encontram na Igreja o lugar da acolhida.
É precisamente nestas circunstâncias quando deveríamos nos perguntar o que podemos fazer, como cristãos, para ajudar tantos homens e mulheres que vivem situações de profundas dores, provocadas por conflitos e incompatibilidades na vivência matrimonial. Não basta defender teoricamente a indissolubilidade matrimonial e impor mais pesos sobre os ombros dos casais católicos que não podem carregar.
Temos de nos perguntar: que ajudas as comunidades cristãs podem oferecer a tantas pessoas que fracassaram em seu matrimônio, devido a uma opção não amadurecida, a uma falta de conhecimento mais profundo do(a) parceiro(a), a uma deterioração em sua comunicação, a incompatibilidades psicológicas, ou simplesmente por uma atitude egoísta?
É injusto que, levados por um rigorismo e legalismo excessivo, marginalizemos e esqueçamos muitos homens e mulheres que se esforçaram por salvar seu matrimônio, e que já não tem mais forças para enfrentar sozinhos(as) seu futuro.
Mais misericórdia e menos rigorismo!
Texto bíblico: Mc 10,2-16
Na oração: fazer memória de muitas pessoas que sofrem por causa do fracasso matrimonial e que não encontram apoio na comunidade cristã.
- Qual sua atitude diante delas? Rigidez na aplicação de leis ou acolhida misericordiosa?
Pe Adroaldo Palaoro sj
02.10.2024
imagem: pexels.com
“Eles ficaram calados, pois pelo caminho tinham discutido quem era o maior” (Mc 9,34)
Continuamos o percurso contemplativo, deixando-nos ensinar pelo Mestre Jesus. No evangelho deste domingo, Ele atravessa a Galileia, a caminho de Jerusalém; e faz isso de maneira reservada, sem dar publicidade. Ele deseja se dedicar inteiramente à instrução dos seus discípulos. É muito importante o que Ele quer gravar em seus corações: seu caminho não é um caminho de glória, de êxito, de poder. Pelo contrário: é o caminho da fidelidade à causa da vida, do compromisso em aliviar o sofrimento humano, da entrega radical em favor dos últimos.
Jesus frustra os planos e as expectativas de seus discípulos e lhes propõe como critério de grandeza o serviço aos outros; estabelece como critério de honra o cuidado dos pequenos. Esta é a lógica do Reino: esvaziamento de toda pretensão de poder e vaidade, que envenenam as relações entre as pessoas, para poder construir a fraternidade sobre outros fundamentos: serviço solidário, atenção compassiva, cuidado amoroso.
Ao chegarem em casa, Jesus sentou-se; quer ensinar aos discípulos algo que eles nunca deverão esquecer. Desmascara a competição entre eles para saber quem era o “maior”. Chama os “Doze”, aqueles que estão mais intimamente associados à sua missão e os convida a que se aproximem, pois os vê muito distanciados d’Ele. Para seguir seus passos e identificar-se com Ele, é preciso aprender duas atitudes fundamentais.
Primeira atitude: “se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos!”. O discípulo de Jesus deve renunciar toda pretensão de ambição, de ser importante, de honras e vaidades. Em sua comunidade ninguém deve pretender estar acima dos outros. Pelo contrário, deve ocupar o último lugar, descer ao nível daqueles que não tem poder e nem ostentam título algum. E, a partir daí, ser como o próprio Jesus: “servidor de todos”.
A segunda atitude é tão importante que Jesus ilustra com um gesto simbólico provocativo: coloca uma criança no meio dos Doze, no centro do grupo, para que, aqueles homens ambiciosos deixassem de se preocupar com honras e grandezas, e centrassem seus olhos nos pequenos, nos frágeis, nos mais necessitados de defesa e cuidado.
Deste modo, Jesus denuncia nossas tendências egóicas que estabelecem hierarquias de mando, divisão entre “superiores e inferiores”, vaidade religiosa. Para Ele, a atitude de serviço não é questão meramente ascética, mas uma proposta profética que quebra qualquer pretensão de divinizar estruturas, de justificar privilégios, de compactuar com os poderosos deste mundo.
Jesus tem plena consciência de que nenhum poder é mediação de salvação; e o pior poder é o “religioso”, pois alimenta medo e culpa, cria dependência doentia e trava toda autonomia pessoal. A cultura do poder suga o “espírito” da vida de uma comunidade, minando sua criatividade e fragilizando seus laços de convivência. O poder não constrói comunidade, pois quem tem poder se cerca de subservientes que cumprem suas ordens, dizem amém às suas ideias ou calam-se coniventes. Por seu caráter impositivo, o poder deteriora relacionamentos, resvalando-se para o terreno pantanoso da competição, da suspeita, da intriga. Quem tem “poder” o centro está em si mesmo; por isso é que toda expressão de poder é violenta, exclui, impõe-se ao outro, domina...
O poder “mata a criança” que todos carregam em sua essência, impedindo-a de se expandir.
A verdadeira grandeza consiste em servir. Para Jesus, o primeiro não é aquele que ocupa um cargo de importância, mas quem vive servindo e ajudando os outros. Os primeiros na Igreja não são os hierarcas, mas as pessoas mais simples que vivem ajudando àqueles que encontram em seu caminho.
O poder é uma das forças mais sedutoras e que sempre exerceu grande fascínio nas pessoas. Não há ser humano que não tenha sido “tentado” pelo canto desta sereia. Sabemos que o poder nos infla como balões, com desejos de subir, e estar no mais alto, longe de tudo o que é humano, onde as fragilidades e sofrimentos das pessoas não nos afetam, onde possamos vencer, distinguir-nos dos outros...
A palavra “poder” indica sempre uma relação de dependência, manifesta uma desigualdade. Aquele que exerce o poder está acima daquele que se submete a esse poder. Jamais, nem se insinua nos evangelhos, que Jesus se relacionasse com o ser humano a partir da superioridade de quem manda sobre o inferior que obedece. A relação de Jesus com os discípulos e com as pessoas se expressa sempre, nos evangelhos, mediante a experiência do “seguimento”, que nasce da “exemplaridade”, nunca da “submissão”, que é a resposta do fraco ao forte, do pequeno ao grande.
Jesus nunca teve “poder” e nunca transmitiu “poder” aos seus discípulos. Ele deu-lhes “autoridade”, o que é bem diferente. E o evangelho destaca que se trata de uma autoridade “para expulsar demônios e curar enfermos”. Não é um poder doutrinal e, menos ainda, judicial. É uma autoridade terapêutica, para aliviar sofrimentos e fazer felizes as pessoas em suas relações com os demais e sua relação com Deus.
Quem tem poder, o centro está em si mesmo; quem tem “autoridade” o centro está fora, no outro. Significa despertar a autonomia, a autoria do outro; não alimenta dependência, mas ativa o melhor que há no outro.
Jesus, que foi tão tolerante com os discípulos em outras coisas, neste ponto foi taxativo: “Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e o servidor de todos!”
Ao abraçar carinhosamente uma criança, diante de todos, Jesus indica que o centro de sua comunidade não deve estar ocupado pelos grandes e poderosos que se impõem aos demais, a partir de cima. Em sua comunidade precisa-se de homens e mulheres que “desçam” para acolher, servir, abraçar e bendizer os mais fracos e necessitados.
O Reino de Deus não se expande a partir da imposição dos grandes, mas a partir da acolhida e defesa dos pequenos. Onde estes se convertem no centro de atenção e cuidado, aí está chegando o Reino de Deus, a nova sociedade humana que o Pai quer.
Entrar no Reino significa acolher e compartilhar o Projeto de Jesus; isso torna-se impossível para quem fundamenta sua vida por critérios de poder, prestígio, ambição...
Nesse contexto, o fato de Jesus propor as crianças como paradigma das relações da comunidade do reino, supõe uma mudança radical, eliminando hierarquias. Isso implica identificar-se com os mais desfavorecidos, de considerar dignos aqueles que não são contados, a “massa sobrante”; é preciso uma mudança de mentalidade e compreender que, para os seguidores e seguidoras do Mestre, os primeiros e mais importantes lugares são para os últimos; e não é só por um gesto de compaixão, mas porque essa é a chave para abrir o sentido da conduta no seguimento de Jesus e para compreender o coração do próprio Deus.
O caminho para Deus passa pela descida em direção aos outros, pelo compromisso com os pequenos e últimos, pela compaixão para com os mais carentes... O Deus que Jesus nos revela é o Deus que se faz presente no pequeno, no simples, naqueles que não tem voz e nem vez neste mundo. Não é o Deus do poder absoluto, nem o Deus que exige obediência e submissão àqueles que se apresentam como seus representantes.
A estrutura da “nova comunidade” não é piramidal ou hierárquica, mas circular. O centro já está ocupado por uma “criança” nos braços de Jesus. Ao redor deles estamos todos, com serviços e ministérios diferentes.
Aqui não há lugar para alimentar “egos inflados”, prepotentes, autoritários...
A casa cristã é o lugar de benção, onde todos são acolhidos, começando pelas crianças, por serem as mais frágeis e necessitadas. Jesus funda a “comunidade da ternura”.
Texto bíblico: Mc 9,30-37
Na oração: A palavra-chave do evangelho deste domingo é “acolhida”: ela expressa uma atitude de descentramento e sensibilidade diante dos mais vulneráveis; ela quebra toda tendência de imposição sobre os outros e revela que é anti-evangélico alimentar competição para saber quem é mais importante ou mais poderoso.
- Seu espaço familiar, sua comunidade, seu ambiente de trabalho... se revela como lugar de acolhida e de bênção ou ambiente que alimenta competição e ativa o apetite de poder e de vaidade?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
20.09.2024
“Quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, vai salvá-la” (Mc 8,35).
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, sacerdote jesuíta, comentando o evangelho do 24° Domingo do Tempo Comum - Ciclo B que corresponde ao texto bíblico de Marcos 8,27-35.
O Seguimento é tema central em todos os evangelhos, ou seja, “fazer o caminho” com Jesus, identificando-se com Ele na entrega aos outros, sem buscar para si poder ou glória.
Ao longo de todo seu escrito, Marcos manifesta uma prevenção especial frente a qualquer ideia de um messianismo triunfalista, centrado no poder e na glória. O caminho do Messias – repetirá diversas vezes – passa pela entrega e pela cruz. Os discípulos, pelo contrário, aparecem obcecados, “surdos e cegos”, discutindo habitualmente por questões de poder, de importância e de privilégio, enquanto que Jesus lhes fala de serviço e doação.
Neste sentido, é sumamente significativo o contraste que Marcos apresenta, intencionalmente, entre o caminho de Jesus e o caminho dos discípulos: nos três anúncios da paixão, quando Jesus lhes fala de seu caminho de entrega, eles manifestam uma clara resistência. O choque é grande: Jesus e seus discípulos caminham em direções diametralmente opostas: o caminho serviço X o caminho da ambição.
Mas, para Jesus, trata-se de uma questão não negociável: seu caminho reflete o “pensamento de Deus”.
A vontade do Pai nunca passará pelo caminho do poder sobre os outros, senão pelo caminho do serviço.
No evangelho deste domingo, a divergência entre ambos caminhos fica explicitada tanto na reação de Pedro como na resposta dura de Jesus. O caminho dos discípulos reflete os mecanismos próprios do ego, que não busca outra coisa a não ser a autoafirmação a qualquer preço, apegando-se ao ter, ao poder e ao aparentar, ao mesmo tempo que foge de tudo o que soa a desapego e entrega.
Para o ego, a entrega desinteressada é uma loucura, que é preciso evitar a todo custo. Para Jesus, pelo contrário, o impulso do ego se opõe frontalmente a Deus.
A resposta de Jesus a Pedro é a mesma que Ele deu ao diabo nas tentações; nem aos fariseus, nem aos letrados, nem aos sacerdotes dirige Jesus palavras tão duras. Quer com isso indicar que a proposta de Pedro era a grande tentação, também para Jesus. A verdadeira tentação não vem de fora, mas de dentro. O difícil não é vencê-la, mas desmascará-la e tomar consciência de que ela é a que pode arruinar a Vida.
Pedro é “Satanás” na medida em que espera que Jesus siga o caminho do messianismo convencional, glorioso, vencedor dos inimigos do povo, que estabelece seu próprio reinado, e não aceita o caminho que Jesus começa a propor, o do serviço que acaba na cruz.
Mas Jesus não rejeita Pedro e nem pede a ele simplesmente que se vá ou se afaste (costuma-se traduzir por “aparta-te de mim...”). Diz-lhe “põe-te detrás de mim”; a mesma expressão que utiliza no versículo seguinte: “se alguém quiser vir atrás de mim...”. Ou seja, Jesus está repropondo a Pedro e aos discípulos o seguimento e que se ponham atrás d’Ele, agora que o caminho vai passar pela cruz.
E aqui vem a frase que fecha, como chave de ouro, toda a cena: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga”.
Uma consideração superficial destas palavras deu margem a uma apresentação do cristianismo como a religião que preconizava a dor e a negação da própria vida e da própria identidade.
Jesus vive na sabedoria de onde brota a fidelidade. Não vive para o ego, que busca sempre seu interesse e comodidade, mas está ancorado naquela identidade profunda, na qual permite que a Vida flua, numa atitude de serviço ou de entrega sábia.
Aquele que quer salvar seu ego, perde a Vida, porque se fecha numa jaula estreita e se introduz em um labirinto de inevitável sofrimento e, em último termo, de vazio e sem-sentido. Uma existência egocentrada, embora aparentemente satisfatória para o ego, não pode evitar uma sensação de profunda insatisfação.
Todos os caminhos autênticos de espiritualidade começam por um esvaziamento do ego, uma renúncia de si mesmo, não para negar-se como pessoa, mas, pelo contrário, para crescer ao recuperar sua verdadeira identidade na totalidade. Quando “eu me perco”, então me encontro; quando meu ego diminui, descubro que faço parte de algo maior, que pertenço a Deus. A “renúncia a si mesmo”, que Jesus propõe, não é um exercício de masoquismo, mas uma maneira mais profunda de realização humana.
Portanto, a expressão “renunciar a si mesmo” faz referência ao nosso falso “eu”, aquilo que, iludidos, acreditamos ser: o “eu” que busca poder, prestígio, riqueza... O desapego do falso “eu” é imprescindível para poder entrar no caminho de vida que Jesus propõe.
“Renunciar a si mesmo” é não se reduzir ao eu superficial ou ego. Só quando nos desapegamos do eu, tomamos consciência de nossa identidade mais profunda, a vida que somos.
Essa é a Vida de que fala o Evangelho, a mesma Vida que Jesus viveu, com a qual Ele estava identificado (“Eu sou a Vida”) e que buscava despertar em todos os seus seguidores(as).
O ego compara-se com os outros e compete pelos elogios e pelos privilégios, pelo amor, pelo poder e pelo dinheiro. É isso que nos torna invejosos, ciumentos e ressentidos em relação aos outros. Também é isso que nos torna hipócritas, dominados pela duplicidade e pela desonestidade.
Aquele que não é capaz de superar o “ego” e nem da centralidade em si mesmo), frustra toda sua existência; mas, aquele que, superando o egocentrismo, descobre seu verdadeiro ser “des-centrado e oblativo”, vivendo em favor dos outros, dará pleno sentido a toda sua vida e alcançará sua verdadeira plenitude humana.
Precisamos reconhecer que, aquilo que para nosso ego é “perda” e perigo, para nosso Eu verdadeiro é ganho profundo e libertação.
“Renunciar a nós mesmos” não é cair em um auto-menosprezo, nem anulação daquilo que somos, mas descobrir que há valores que estão mais além de nós mesmos. É tomar consciência que há recursos e capacidades superiores pelos quais vale a pena investir a vida, assumindo as consequências.
“Tome sua cruz e me siga”: tampouco Jesus quer apresentar-nos um cristianismo e um seguimento doloroso. A verdadeira cruz do cristão não está no sofrimento, não está na dor de privar-nos de tudo, não está nas penitências e sacrifícios... A verdadeira cruz do seguimento de Jesus é a da fidelidade ao evangelho, ao amor, ao compromisso, à própria vocação de serviço.
A cruz do cristão não pode ser outra que a Cruz do mesmo Jesus. Ele nunca amou a cruz como cruz. Mas tampouco fugiu dela por manter-se fiel ao Reino e ao Evangelho que anunciou. Ele nunca amou a dor pela dor, ao contrário, sempre buscou aliviar a dor dos outros. Mas tampouco fugiu, negando sua própria verdade, sua própria missão e sua própria identidade.
A cruz para todo(a) seguidor(a) nunca pode ser uma meta; ela é sempre uma consequência. A cruz para o cristão não é algo que se busca, mas uma realidade que chega a partir de fora, como consequência da verdade e da autenticidade evangélica.
Texto bíblico: Marcos 8,27-35
Para meditar na oração
Nosso coração se encontra diante da revelação do “eu original”, porque está en-raizado na identidade do próprio Jesus (“quem sou eu para vocês?”).
A contemplação de Jesus é também revelação do eu “escondido com Cristo em Deus” (Col. 3), ou seja, revelação da verdade do meu eu profundo, onde descubro os traços de minha própria fisionomia.
Não posso responder a essa pergunta – “Quem é Jesus para mim” – se não me pergunto ao mesmo tempo: “Quem sou eu, diante do Senhor”? Sem identificação não haverá um encontro profundo com o Senhor. O encontro comigo mesmo me aproxima do encontro com o Senhor e o encontro com o Senhor revela minha própria identidade.
Sua vida cotidiana: Descentrada? Oblativa? Aberta ao diferente?... Ou: Auto-centrada, “buscando o próprio amor, querer e interesse”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
13.09.24
“Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (Mc7,6)
O relato do evangelho deste domingo se abre com a apresentação dos personagens. Jesus aparece como ponto de referência frente a dois grupos de indivíduos (“os fariseus e alguns mestres da lei”), representantes do poder religioso oficial, ou seja, grupos de piedosos que exerciam uma pressão religiosa sobre o povo em sua pretensão de submetê-lo a uma existência marcada pelo rigorismo religioso e pelo legalismo.
Como se explica esse fenômeno do farisaísmo religioso, tão frequente também entre nós? Estamos falando da eterna tentação, de ontem e de hoje: apresentar-se em nome de Deus para impor pesados fardos sobre as pessoas, ameaçando-as e impedindo-as de viver com mais leveza. Segundo o Papa Francisco, trata-se do terrível “poder de consciência”, exercido por autoridades religiosas, e que são profundamente manipuladoras e destruidoras da verdadeira identidade das pessoas. Na verdade, percebemos nas comunidades cristãs um florescer de práticas devocionais vazias, ritos estéreis, normas inúteis..., que só alimentam medo de Deus e culpa doentia.
Quando a religião (no sentido original de “re-ligar”) se transforma em culto vazio, em palavras ocas que são levadas pelo vento, em simples rotina..., esvazia-se a vida, fragiliza-se o compromisso com o outro e se distancia do verdadeiro Deus revelado por Jesus. De fato, para o Mestre de Nazaré, “Deus é leve”, não complica a vida humana com mais cobranças e ameaças; basta ser transparência do Seu Amor.
Aqui está a chave para compreender o conflito de Jesus com os homens mais religiosos e observantes de seu tempo. Tal conflito se centrou em questões relativas à imagem de Deus, ao caráter absoluto das leis e normas religiosas, descendo inclusive até às chamadas “normas de pureza”. De um modo esquemático, o conflito poderia resumir-se nestas contraposições: a gratuidade frente ao mérito; o valor da pessoa acima da lei; o cuidado da interioridade frente à absolutização das tradições.
De um lado, encontramos o “ritual” e o “sagrado” como componentes essenciais da religião dos sacerdotes, fariseus e mestres da lei; de outro, encontramos nos evangelhos que o central na vida e na mensagem de Jesus não foi nem o “ritual”, nem o “sagrado”, mas o “humano”. O centro da mensagem e da atividade d’Ele não estava no templo, nas observâncias das normas e leis, na preservação da tradição religiosa..., mas na saúde dos enfermos (curas), na alimentação das pessoas (refeições), nas sadias relações humanas.
Jesus viu claramente que a religião dos ritos e do sagrado (com seus poderes, privilégios e dignidades) gerava exclusão, culpa, medo... Tal realidade era o impedimento mais imediato e mais forte para as pessoas entenderem e viverem o que significava o “Reinado de Deus”.
O Evangelho deste domingo nos situa, portanto, diante desta desumana realidade provocada por uma falsa compreensão da religião. Para Jesus, nada do que vem de fora contamina o ser humano. Isso significa que toda pessoa possui uma interioridade impoluta e resguardada, que nada nem ninguém de fora poderá destruir. No mais profundo de cada ser humano há um “sacrário”, dotado de recursos e beatitudes originais que não podem ser alcançados pela “mancha” externa do legalismo e do moralismo. Dessa forma, Jesus declara o valor absoluto da pessoa humana como portadora de valores que ninguém poderá atingir.
O que mancha a pessoa é o que sai de dentro dela. Ninguém pode manchá-la, mas ela pode manchar-se a si mesma, porque “é” um ser de coração do qual brota o bem, a verdade, o amor..., mas pode brotar também o mal, o ódio, a intolerância... O ser humano é um “ser interior” que pode desenvolver-se de forma criativa, mas também de maneira destruidora. Esta é a maior revelação de Jesus, que anuncia o Deus que quer salvar a todos, mas a partir do lugar da verdadeira interioridade. O que decide o ser humano é o coração; se este estiver petrificado, é preciso arrancá-lo e colocar em seu lugar um coração de carne, capaz de crer e amar.
Este “princípio da interioridade”, indicado por Jesus, é que define e marca a novidade do evangelho; por isso, como Libertador, empenha-se por livrar as pessoas de tudo aquilo que lhes podia oprimir e destruir a vida. Jesus interpreta a pureza ou impureza como realidade que brota do coração e, dessa forma, devolve ao ser humano sua autoria, sua autonomia. A missão da verdadeira religião é facilitar para que homens e mulheres sejam autônomos na linha do bem, que ativem seus recursos internos, que sejam livres no compromisso e no serviço da vida dos outros.
Nenhuma religião pode ter a pretensão de anular a consciência das pessoas. Seria um fatal erro atrofiá-la com ritualismos, preceitos e normas, impedindo a manifestação da voz de Deus, única e original, no interior de cada um. Despertar essa consciência é a tarefa de todo ser humano para chegar à plenitude de seu próprio ser. Daqui nasce a verdadeira sabedoria, unindo mente e coração. Nessa proximidade de Deus, que habita em nós e nos conecta com o universo, se forja nossa verdadeira identidade de filhos(as) d’Ele e irmãos(ãs) de todos. Quando conectamos com esta realidade interior toda nossa vida se equilibra e adquire sentido. Esbarramos na fonte não contaminada e que nos humaniza.
Nós vivemos a fé dentro da religião cristã, com raízes judaicas. A fé é nossa adesão de coração a um Deus que nos cria e nos ama, a um Pai que nos salva em seu Filho. Sem essa experiência fundante, nossa religião torna-se vazia, fica restrita a uma aparência vistosa, sujeita a manipulações de todo tipo.
Quanto “farisaísmo” há em nossos costumes cristãos! Quanto ritualismo, tradição, conservação e normas sem sentido! Quando perdemos a relação com a pessoa de Jesus Cristo tudo se converte em doutrina e ritualismo que nos conduzem a uma religião intimista e egóica. O que vem depois se enche de pré-juizos, julgamentos e sentenças. Esquecemos a medida do amor de Deus para impor a nossa medida moralista, excessivamente pobre, egoísta e insensata. Isso atenta contra nós mesmos e envenena as relações sadias que deveriam sustentar nossa vida.
O texto de Marcos nos situa, portanto, diante de duas maneiras opostas de entender e viver a religião: a estéril (ou perniciosa), que coloca a lei acima das pessoas, e a de Jesus, centrada no compromisso com os mais pobres e excluídos. Esta dicotomia na forma de entender a religião acontece em todos as épocas e culturas da história; por isso, a religião tem sido a mediação que fez emergir tanto o melhor quanto o pior da humanidade; ela tem possibilitado o surgimento de experiências sadias e profundas como também tem gerado tantas “doenças” nas pessoas, provocadas pela culpa e pelo medo.
Uma religião absolutizada, carregada de normas, leis, penitências, tradições... se faz indigesta e provoca automaticamente rejeição nas pessoas mais livres, lúcidas e abertas; estas se rebelam contra a imposição, o autoritarismo e qualquer pretensão exclusivista. E, na medida em que as pessoas crescem em espírito crítico, descobrem com facilidade que, detrás da fachada de solenidade com a qual muitas “autoridades religiosas” costumam se apresentar, se esconde uma incoerência humana que elas mesmas condenam. Jesus as chama de “hipócritas” e os desmascara porque manipulam Deus e usam da religião em proveito próprio.
Como cristãos, somos seguidores(as) de um Homem tremendamente livre diante das leis, das tradições, dos ritualismos..., pois o centro de sua missão está em despertar a vida e vida em plenitude. Suas palavras e seus gestos ousados despertam em nós uma atitude de sentinela diante deste “vírus” de aparência inofensiva, que entra em nós sob a forma de mero cumprimento de leis e sai com uma pesada carga de julgamento, de imposição, de condenação e controle sobre aqueles com quem convivemos. Um vírus antigo e contagioso, uma “covid do espírito”.
Texto bíblico: Mc 7,1-8.14-15.21-23
Na oração: Reze tuas “mãos”. Tuas mãos... sacramento de Deus, pois tornam presentes e visíveis as mãos d’Ele.
Tens no coração o Amor de Deus. A força que te leva a amar o outro como Deus o ama. Serás a mão amiga de Deus, tua mão terna e carinhosa, tua mão forte e libertadora, tua mão criadora de vida, tua mão generosa que protege e cuida a vida.
Mãos para unir, criar, curar, abençoar... como as de Jesus.
Mãos abertas para compartilhar. Mãos que não retém o que o irmão necessita. Abrir a mão, abrir o coração, abrir as entranhas de misericórdia. Caminhas tu pela vida com tuas mãos abertas?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
27.08.2024
“Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la” (Jo 6,60)
O ser humano precisou de milhares de anos para desenvolver um sistema de comunicação tão complexo como a escrita e a palavra que manejamos hoje em dia, muito provavelmente, como parte de sua busca de transcendência, de seu interesse por deixar pegadas, por sobreviver em sua memória. Essa memória falada e escrita, pessoal e coletiva, é riqueza para continuar avançando. Somos o que somos pelo que falamos e pelo que escrevemos.
As palavras, por sua natureza, são ambíguas; podem brotar das profundezas mais sadias de nosso ser (palavras de vida) ou das regiões mais petrificadas e fétidas de nosso interior (palavras de morte); com elas nos humanizamos ou nos desumanizamos; através da palavra criamos ou destruímos, nomeamos ou eliminamos. Com a palavra podemos estabelecer um diálogo construtivo ou envenenar toda possibilidade de encontro e acolhida. As palavras elevam e afundam, constroem e destroem. Com elas se movem os sentimentos, os corações, as vontades. Podem ser usadas para formar ou deformar, para informar, manipular ou coagir. As palavras reforçam e fazem o outro sentir forte ou aumentam a fragilidade e o sentimento de vulnerabilidade. As palavras aproximam as pessoas construindo pontes ou afastam construindo muros e abismos. As palavras podem ser um canto que embeleza e estimula o coração ou podem provocar consequências devastadoras nas relações.
Com as palavras acompanhamos o outro em processos de pacificação e reconstrução de si mesmo, ou alimentamos o rancor e o ressentimento. Com pouco arsenal, as palavras são uma arma com imenso poder de destruição como as “fake News”, o ódio, a intolerância e o preconceito.
Hoje as palavras estão se enfraquecendo cada vez mais, feridas de morte. Palavras como participação, ética, democracia, povo, liberdade, amor, justiça... são usadas e abusadas tanto, conferindo a elas significados tão diversos, dispares e interessados que terminam convertendo-se em meros fetiches, palavras infladas e ocas, sem nada dentro. Quê quantidade de palavras costumamos dizer para, em muitas ocasiões, não dizer nada!
Vivemos cercados por uma aluvião de palavreado crônico que tem seus efeitos colaterais, ou seja, não só a palavra do outro acaba perdendo seu valor, como também a nossa própria palavra, que passa a ser uma a mais em meio a este oceano de vozes e palavras; torna-se “palavra líquida”, pois escapa pelos dedos sem deixar marcas. Palavras que sobram, palavras que faltam, palavras que dizem, palavras que escondem
Há palavras que é melhor não dizer, porque não são necessárias, porque julgam sem tentar compreender, porque são falsas; palavras de maledicência ou de crítica injusta, de fofoca e de condenação; palavras desnecessárias, ou conversa-fiada para preencher silêncios que assustam; palavras de zombaria que ignoram a dor do mais frágil; palavras que apunhalam pelas costas.
Para que a palavra dê fruto, não podemos nos contentar só com o fato de purificar a motivação quando a usamos, pronunciá-la no momento adequado, torna-se oportuna para aliviar, lubrificar, confrontar...; mas, também é preciso também apurar os ouvidos para escutá-la, acolhê-la com respeito, abrir espaço para que desperte ressonâncias em nosso interior. A palavra deve ser acolhida com disposição para deixá-la que se faça fecunda. E escutar, princípio de toda palavra, pede tempo, paciência, ausência de protagonismo e levar a sério o outro. Como dizia Amado Nervo, “o sinal mais evidente de que se encontrou a verdade é a paz interior”, ou, como dizia Jesus, “a verdade vos libertará”. A verdade liberta das próprias falsidades e arrogância, dos medos e ataduras.
O Evangelho de hoje pode ser uma estupenda ocasião para esquecer velhas palavras desgastadas pelo uso, pronunciadas para afirmar nosso ego ou para conseguir aprovações alheias... e substitui-las por palavras essenciais, nascidas do espírito, que saem do coração e se dirigem ao coração dos outros, fazendo ressoar neles um eco da expressão proferida por Pedro: “A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna”.
Ele sente que as palavras de Jesus não são palavras vazias nem enganosas. Junto a Jesus descobriram a vida de outra maneira. Sua mensagem lhes abriu à vida eterna. Com que poderiam substituir o Evangelho de Jesus? Onde poderiam encontrar uma Notícia melhor de Deus?
Pela primeira vez Jesus experimenta que suas palavras não têm a força desejada. No entanto, não as retira senão que reafirma mais ainda: “As palavras que vos falei são espírito e vida. Mas entre vós há alguns que não creem” (Jo 6,63). Suas palavras parecem duras, mas transmitem vida, fazem viver, pois contém Espírito de Deus.
Jesus não perde a paz; o fracasso não lhe inquieta. Dirigindo-se aos Doze, faz uma pergunta decisiva: “Vós também quereis ir embora?”. Não os quer reter pela força; deixa-lhes a liberdade de decidir. Seus discípulos não devem ser servos, mas amigos. Se quiserem, podem voltar às suas casas.
Também hoje, as palavras de Jesus continuam nos provocando, nos chamando, desvelando nossas incoerências e contradições internas. Elas podem nos assustar quando nos sentimos incapazes de segui-lo com mais intensidade; elas nos inquietam quando pedem renúncia de nosso próprio ego. São palavras que falam de seguimento e radicalidade, de paixão e entrega, de morte e de Vida. Palavras inspiradoras e, ao mesmo tempo, provocativas, pois nos arrancam de uma vida estreita e petrificada. Palavras que despertam o melhor que há em nosso interior, humanizando-nos e humanizando nossas relações. Palavras que fazem brotar uma “palavra nova e original” de nosso ser profundo, revelando nossa verdadeira identidade. Por isso, as palavras nobres de Jesus não podem ser domesticadas e manipuladas segundo nossos interesses.
É preciso valentia para deixar que cada palavra d’Ele cale fundo, para vivermos com mais seriedade, para deixar que nos desnude um pouco mais, para revestir-nos do modo de proceder d’Ele.
É no encontro com as palavras de Jesus que temos a chance de recuperar a força e o sentido de nossas palavras, de torná-las oblativas, abertas e portadoras de vida. “Palavras cristificadas”, pois revelam a força da cura, do cuidado, da benção, do perdão...
É preciso unir Palavra e silêncio, para que cheguem ao mais profundo de nosso núcleo essencial, sempre insondável, buscando a Fonte que mana em abundância e sai à superfície, cantarolando e fecunda.
Assim, nossa palavra, viva em Jesus, sussurrada pelo mesmo Espírito d’Ele, torna-se como um rio caudaloso que salta qualquer obstáculo, leva vida às margens e nos impulsionam em direção ao Grande Oceano. Uma palavra que se revela como um bálsamo relaxante, remédio doce que acalma, embeleza e faz recordar sadiamente, que insufla ânimo e vida no nosso próprio corpo. Palavra que se manifesta como um grito de envio que nos lança em direção às pessoas, para partilhar, amar, curar...; uma revelação que ilumina nossas incertezas ou que nos enche de alegria. Só assim, o Evangelho se torna sempre boa notícia que fala dos outros, de nós, de Deus, de tudo...
Texto bíblico: Jo 6,60-69
Na oração: Cave palavras nas minas do seu silêncio, palavras carregadas de sentido e de ânimo.
Silêncio para poder dialogar com seu eu profundo, para ver o que há por detrás de suas palavras, de seus sentimentos, de suas intenções... Silêncio para tentar ir ao coração de sua verdade. Pois somente o silêncio poderá germinar as palavras portadoras de vida.
- Em que me inquieta, me sacode e me provoca a Palavra de Jesus?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
23.08.2024
“O Todo-Poderoso fez grandes coisas em meu favor” (Lc 1,49)
A Assunção de Maria foi, durante muitos anos, uma verdade de fé aceita pelo povo simples. Só em meados do século passado proclamou-se como dogma de fé.
É preciso levar em conta que uma coisa é a verdade que se quer definir e outra, muito diferente, a formulação em que se introduz esta verdade. A Assunção é uma “realidade” que quer balbuciar algo que se encontra mais além dos conceitos e das palavras: que Maria entra plenamente na Vida de Deus.
Certamente soaria estranha para a mentalidade bíblica a definição do dogma (“A Imaculada Mãe de Deus, a sempre Virgem Maria, terminado o curso de sua vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celeste” - 1º. nov. 1950). Simplesmente porque foi formulada a partir de conceitos filosóficos e teológicos completamente alheios à sua maneira de pensar. Para a antropologia bíblica o ser humano não é um composto de “corpo e alma”, mas uma única realidade que se pode perceber sob diversos aspectos, mas sem perder nunca sua unidade.
Não podemos entender “literalmente” o dogma da Assunção. Pensar que um ser físico, Maria, que se encontra em um lugar, a terra, é transladada localmente a outro lugar, o céu, não tem sentido. O próprio papa João Paulo II afirmou que o céu não é um lugar, mas um estado. Em linguagem bíblica, “os céus” significam o âmbito do divino; portanto, Maria está já “nos céus”; Maria “desapareceu em Deus”.
Quando o dogma fala de “corpo e alma”, não devemos entendê-lo como o material ou biológico por uma parte, e o espiritual por outra. O dogma não pretende afirmar que o corpo biológico de Maria está em alguma parte, mas que todo o ser de Maria chegou à mais alta meta. Realiza-se em Maria a situação final, já dentro da história, situação prometida a toda humanidade: “ser um dia de Deus e para Deus”; Maria o é desde o início (imaculada) até o final (assunção), através de uma fidelidade de toda a sua vida.
A Assunção de Maria é considerada, também, como antecipação da nossa ressurreição, que seremos ressuscitados em Cristo. Portanto, a glória de Maria não a separa de nós, mas se une mais intimamente a nós. Maria na glória concretiza, de modo eminente, nosso próprio destino futuro; ela vive agora em plenitude aquilo que nós, um dia, iremos viver. A Assunção é realidade compartilhada, solidária.
Ela foi “assunta” porque assumiu tudo o que é humano, porque “desceu” e se comprometeu com a história dos pequenos, dos pobres e excluídos... Maria foi glorificada porque se fez radicalmente “humana”.
Crer na Assunção de Maria implica crer na exaltação dos pequeninos e humilhados, dos pobres esquecidos, dos injustiçados sem voz, dos sofredores sem vez, dos abandonados sem proteção, dos misericordiosos descartados, dos mansos violentados...
O mistério da Assunção vem, portanto, afirmar que a biografia de Maria começa na eternidade. Maria “cheia de eternidade”, vivendo na mente e no coração de Deus. Vem de Deus e volta para Deus. Ela está situada na encruzilhada da história salvífica: AT e NT. Com seu “sim” radical, a distância entre Deus e o ser humano foi quebrada, o divino se humanizou e o humano se divinizou. Mulher nova e livre, em Maria ouvimos a resposta perfeita, o “fiat” da criatura dito ao Criador; ela é a mulher da oblação. Nela a Trindade vê sua obra levada à plenitude. Seu “sim” tornou possível a Encarnação. Nela, a ação da liberdade humana e da graça divina harmonizam-se perfeitamente.
O “Amém” de Maria, seu “Fiat”, é um Amém ao “Sim” de Deus à humanidade. Deus é para nós o “Sim” eterno, ativo e criativo.
Nosso “Abbá” é aliança fiel, permanente, definitiva. Sua oferta de Aliança de amor sempre paira sobre a humanidade. Por isso, derrama seu Espírito com abundância sobre toda a terra e sobre “todo ser vivente”.
Maria disse “fiat” (“faça-se”) a essa oferta. Nela, a humanidade, cada um de nós, é chamado a dizer “fiat”. O “sim” proferido por ela é o melhor que a humanidade apresentou a Deus e desencadeou outros inúmeros “sins oblativos” na história.
Maria é o verdadeiro Templo, é espaço de presença do Espírito, lugar sagrado onde habita a divindade para, a partir dela, expandir-se depois a todo o povo. Ela é lugar de plenitude do Espírito, “Terra” da nova criação, Templo do Mistério. Evidentemente, esta presença é dinâmica: o Espírito de Deus está em Maria para fazê-la mãe, lugar de entrada do Salvador na história. Ela não é um instrumento mudo, não é um meio inerte que Deus se limitou a utilizar para que fosse possível a Encarnação. Maria oferece ao Espírito de Deus sua vida humana para que, através dela, o mesmo Filho Eterno pudesse entrar na história.
Em Maria descobrimos aquilo que, na essência, todos somos. Não devemos nos conformar em olhar Maria para ficarmos extasiados diante de sua beleza. O que descobrimos nela, devemos também descobrir em nosso próprio ser. O que importa realmente é que em Maria e em todo ser humano há um núcleo intocável que nada nem ninguém poderá manchar. O que há de divino em nós será sempre imaculado. Tomar consciência desta realidade, seria o começo de uma nova maneira de entender a nós mesmos e de entender os outros.
Maria é grande em sua simplicidade e não temos nada que acrescentar ao que ela foi desde o princípio. Basta olhar para o seu verdadeiro ser e sua maneira original de se fazer presente junto aos outros para, então, descobrir o que há de Deus em seu interior; isso é que sempre será puríssimo, imaculado. Se descobrimos isso nela, é para tomar consciência de que também está presente em cada um de nós.
De nada nos servirá descobrir a pérola em Maria se não a descobrimos também em nós mesmos. Somos milhões de diamantes que habitamos esta terra, embora cobertos de terra e barro.
Contemplar Maria, assunta ao céu, é des-velar (tirar o véu) a nobreza humano-divina escondida em nosso interior.
Porque se fez presente a Deus, Maria se faz também presente na vida das pessoas, através da atitude de serviço, de uma maneira sempre mais criativa e atenta; presença que se faz manancial de vida para os outros, tornando-se, ao mesmo tempo, amiga, irmã e mãe de todos.
A presença silenciosa, original e mobilizadora de Maria desperta e ativa também em nós uma presença inspiradora, ou seja, descentrar-nos para estar sintonizados com a realidade e suas carências. Tal atitude nos mobiliza a encontrar outras vidas, outras histórias, outras situações; escutar relatos que trazem luz para nossa própria vida; ver a partir de um horizonte mais amplo, que ajuda a relativizar nossas pretensões absolutas e a compreender um pouco mais o valor daquilo que acontece ao nosso redor; escutar de tal maneira que aquilo que ouvimos penetre na nossa própria vida; implicar-nos afetivamente, relacionar-nos com pessoas, não com etiquetas e títulos; acolher na própria vida outras vidas; histórias que afetam nossas entranhas e permanecem na memória e no coração.
Texto bíblico: Lc 1,39-56
Na oração: Deus continua enviando mensageiros para comunicar-nos sua vontade; o que nos falta é ter o espírito desperto para discernir e reconhecê-los. As pessoas dispostas, os cristãos vigilantes, os santos e santas se encontram com muitos mensageiros que lhes comunicam mensagens do Senhor. Discernir é realizar uma limpeza de ouvidos para escutar cada vez mais fielmente os mensageiros (anjos) do Senhor.
- “Sentir Maria” é reencontrar em nós mesmos aquilo que diz sim à vida, quaisquer que sejam as formas que esta vida tomar. “Sentir Maria” é superar toda expressão de desconfiança, de dúvida, de temor diante daquilo que a vida vai nos oferecer para viver.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
17.08.2024
“Eu sou o pão da vida” (Jo 6,48)
Jesus Homem se faz “pão”, Humanidade convertida em alimento para os outros. A Vida Eterna não se revela num gesto de pura interioridade, mas no encontro e comunhão de uns com outros... Quem crê nos demais, quem compartilha com eles a vida (fazendo-se eucaristia) tem a vida eterna, porque Deus é Comunhão de Vida e porque Jesus é a revelação mais alta desse Deus entre nós.
Jesus deseja e se faz para nós um alimento substancioso. É preciso que tenhamos acesso a um alimento que possa nutrir nossa identidade essencial. É preciso nutrir em nós o que não morrerá.
Existe em nós algo que se alimenta de ternura, que se alimenta de poesia, que se alimenta da qualidade de nossas relações. O silêncio, a luz, a gratuidade, o encantamento, a simples presença... alimentam nosso ser espiritual
Portanto, não podemos transformar a Eucaristia em um rito puramente cultual, ou numa pesada obrigação que pesa sobre as pessoas, nem convertê-la em uma cerimônia rotineira, que demostra a falta absoluta de convicção e compromisso. Cada vez que participamos, devemos fazer com profunda gratidão e veneração, e, sobretudo com compaixão pelos que dela não podem participar.
Nesse contexto é preciso dizer que o verdadeiro alimento é a vida mesma do ser humano: Jesus se fez alimento para os outros, saciou a fome de justiça e amor. Ele é o alimento que gera vida nova no mundo, vida oferecida e compartilhada. Um alimento “subversivo” porque subverte a tradicional “ordem” das coisas. “Eu sou o pão da vida”. Antes de partir o pão, Jesus parte-se a si mesmo, faz-se alimento. Toda sua vida foi entrega. Sua vida inteira dá significado ao partir, compartilhar e repartir o pão da vida.
Jesus, desde pequeno, admirava o milagre do pão; sabia sua história: os minúsculos grãos de trigo semeados na terra, desaparecidos, mortos; a surpresa do pequeno broto verde, tão tímido; o prodígio da espiga, esbelta e frágil, que vai amarelando ao sol; a abundância contida, apertada, das dezenas de pequenos grãos, filhos renascidos do velho grão, enterrado e morto; o moinho implacável, que parece matar sem piedade os grãos indefesos; a farinha, a flor da farinha tão pura que podia ser apresentada como oferenda ao Senhor; o milagre do pão.
Em sua casa, certamente Jesus tinha visto, inúmeras vezes, sua mãe amassar o trigo, pôr na massa uma pitada de fermento, deixá-la em repouso. Quando criança, Jesus levava a massa já fermentada ao forno comunitário; esperava um pouco ou saía a brincar, ou ajudar José na oficina; depois, voltava à casa cantarolando, abraçado ao pão para sentir seu calor, embriagado de seu aroma, com vontade de tirar um pedacinho enquanto subia à sua casa.
O milagre do pão, nascido da morte do grão de trigo; nascido para morrer e dar a vida.
Partir o pão e reparti-lo antes de começar a refeição. Isto fazia José, bendizendo o Senhor pelo dom tão precioso. E Jesus, com seu pedaço de pão na mão, pensava, sem dúvida, no grão desaparecido meses antes na terra, multiplicado pela força sagrada em seu interior, pelo poder e sabedoria do Pai dos Céus, que agora, com a primeira mordida, iria desaparecer para sempre e transformar-se em seu próprio corpo.
Não sabemos quando nem como Jesus soube que para isso estava no mundo: para ser semeado, para morrer no inverno debaixo da terra, para ser pisado e apertado até que morresse para multiplicar a vida.
E, algumas horas antes de morrer, na ceia que Ele sabia que ia ser a última, Jesus se viu a si mesmo, em cima da mesa, em forma de pão. E disse: “meu corpo entregue é pão”. E Ele sabia que ia ao moinho para ser triturado e se tornar pão para muitos. “Fazei isto em memória de mim”. “Isto” se refere ao partir e partilhar o pão em torno à mesa; “isto” significa comungar com Jesus e com todos que O comungam, formar um só Pão para alimento do mundo.
Porque Jesus é “pão descido do céu” e porque compartilhamos sua vida, também nós podemos e devemos “descer” e sermos comunhão de vida. Neste sentido, todos somos pão de Eucaristia.
Cada ser humano é “pão vivo, descido do céu” para outro ser humano; cada homem, cada mulher é revelação de Deus, pão de vida eterna para os outros. Por viver neste nível, por entregar-se e compartilhar a vida neste plano, os homens e mulheres “não morrem”, tem vida eterna.
E é isso que, no nível mais profundo, somos todos. Todos somos Vida, todos somos “pão de vida”.
O pão da vida não se encontra fora de nós; é o que “somos” em profundidade; é nossa essência.
Somos pão quando alimentamos o outro na esperança, no perdão, na acolhida, na compaixão, no compromisso... Sim, podemos multiplicar o pão da festa, da alegria, o pão da justiça, o pão da ajuda fraterna...
Quanto pão para ser dividido! “Tornar-nos pão” significa “descer” em nossa própria condição humana para expandi-la em atitudes de serviço, partilha, solidariedade... Já estamos saturados do “pão venenoso” do ódio, da intolerância e do preconceito...
Ser “pão para a vida” é confessar que ser seguidor(a) de Jesus é ser-para-os-demais, é comprometer-se a ser fermento de unidade, de amor, de paz, é consumir-se para que outros vivam. Se nossa participação no “pão da mesa” não colocar em questão nossos egoísmos, nossos preconceitos, nossas rivalidades, nossos complexos de superioridade..., não tem nada a ver com o que Jesus quis expressar com o “discurso do Pão da Vida”.
Aproximar-nos do Pão da Vida para sermos “pão de vida” constitui-se como o momento mais “subversivo” (subverte nossa maneira petrificada de ser e viver) que podemos imaginar: fazemos memória do que Jesus foi durante sua vida (pão para os outros) e nos comprometemos a viver como Ele viveu (“fazer-se pão para os outros”). N’Ele, também nós tornamos “pão” para o mundo.
Por isso Jesus Cristo, em sua oração messiânica, nos motiva a dizer: “o pão nosso de cada dia nos dai hoje”. Este continua sendo o “pão nosso”, pão de todos, produto do trabalho de homens e mulheres, que deve ser compartilhado. Mas, ao mesmo tempo, é “pão de Deus”, dom a ser multiplicado. Enquanto houver fome no mundo, a Eucaristia não está completa.
Ao comer o pão e beber o vinho “fazendo memória”, estamos prolongando um “estilo de vida”, fundamentado no modo de viver de Jesus. Isso quer dizer que fazemos nossa Sua vida e nos comprometemos a nos identificar com o que Ele foi e fez. Tomar o pão e o vinho na Eucaristia é fazer memória de uma presença que nos devolve à realidade, faminta de sentido, de esperança, de comunhão...
Texto bíblico: Jo. 6,41-51
Na oração: Ao “amassar” a minha vida para querer ser pão... de que sou feito?
A massa de minha vida é constituída, em primeiro lugar, de farinha; é ela que dá consistência e firmeza ao pão, brindando-o com diferentes formas e aromas. A farinha é a minha verdadeira identidade, minha essência; é nela que minha vida se sustenta; ela é constituída dos meus recursos, dons, capacidades...
- A água me dá maciez e elasticidade; é também aquela que me dá unidade, que une os diferentes ingredientes, transformando a mistura numa autêntica massa. Significa o afeto que me revitaliza, me devolve a ternura, me faz terno como o pão recém-assado. E, assim, me dá um sentido na vida, um “para que”.
- O sal é o que torna saboroso o pão, aquele que lhe realça sua característica. Meu sal é meu próprio sabor, o mais original e único em mim.
- O fermento é o que faz aumentar o tamanho do pão. Meu fermento é aquilo que me faz crescer, o que me impulsiona a sair de mim mesmo, a superar meus limites, me desafia a ser mais, a ir mais além, a transcender-me. É constituído de meus sonhos e minhas esperanças, para alcançar aquilo que “quero e desejo”. É a força criadora que me habita, que potencia tudo o que sou e tenho, para que cada dimensão de meu ser se faça plena.
- Por fim, o forno. Não é exatamente um ingrediente, mas é igualmente imprescindível para eu deixar de ser massa, e revelar minha identidade de pão. Não há verdadeiro pão sem forno, assim como não há homem ou mulher sem paixão, sem amor, sem o calor daquilo que me faz vibrar, que me comove, que me transforma.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
08.08.2024
“Pois o pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo” (Jo 6,33)
Com o evangelho de hoje (18º Domingo do Tempo Comum) iniciamos a reflexão sobre o Discurso do Pão da Vida, que se prolongará durante os próximos domingos. Depois da multiplicação dos pães, o povo foi atrás de Jesus; tinha visto o milagre, comeu com fartura e queria mais! Procurou o milagroso e não buscou o sinal e o apelo de Deus que nele se escondia. Quando o povo encontrou Jesus em Cafarnaum, teve com ele uma longa conversa, chamada “Discurso do Pão da Vida”, um conjunto de sete pequenos diálogos que explicam o significado da multiplicação dos pães como símbolo do novo Êxodo e da Ceia Eucarística.
O milagre da multiplicação dos pães provocou um sério mal-entendido. O povo viu o que aconteceu, mas não chegou a entendê-lo como um sinal de algo mais alto ou mais profundo. Buscou pão e vida, mas parou na superfície: a fartura de comida. No entender do povo, Jesus fez o que Moisés tinha feito no passado: deu alimento farto para todos no deserto.
Indo atrás de Jesus, eles queriam que o passado se repetisse. Mas Jesus pede que o povo dê um passo adiante. Além do trabalho pelo pão que perece, deve trabalhar também pelo alimento não perecível. Este novo alimento será dado pelo Filho do Homem; Ele traz a Vida que dura para sempre. Ele abre para todos um novo horizonte sobre o sentido da vida e sobre Deus.
No longo diálogo com a multidão, no outro lado do mar, João recolhe as palavras de Jesus e que sua comunidade considerava como as chaves do seguimento. Jesus não responde à pergunta: “como e quando chegaste aqui?”, mas responde às verdadeiras intenções das pessoas, trazendo o diálogo para o seu terreno. O que tem importância de verdade é o compromisso de entrega, de “fazer-se pão” para os outros. Tais palavras de Jesus põe em questão as religiões de todos os tempos, ou seja, o perigo de manipular Deus para colocá-lo a serviço e interesse próprios.
Segundo o evangelista João, a necessidade de “passar para a outra margem do mar” foi provocada porque a multidão faminta ficou saciada de pão, graças à ação de Jesus que lhe deu de comer, multiplicando os poucos pães e peixes que um menino levava consigo. Neste contexto, segundo o final do evangelho do domingo passado (Jo 16,15), as pessoas pretendiam proclamar Jesus como rei. O pão é um bom símbolo da riqueza e a realeza um instigante símbolo do poder. Estas são as “margens” nas quais a multidão e os discípulos queriam se instalar.
Infelizmente, estes também são nossos desejos ocultos: o poder e o dinheiro que, no fundo, são as duas caras da mesma moeda. Este é o “pão” venenoso que alimenta divisão, competição e ódio. Compreende-se assim, o apelo de Jesus a passar para a outra margem, deixando de lado as solicitações do ter, para buscar o caminho do compartilhar. Em algumas determinadas circunstâncias é preciso dar alimento a quem está com fome; mas, ao mesmo tempo, é preciso ativar a liberdade e a autonomia para que ele possa buscar o pão e aprenda a partilhá-lo.
O Pão partido e preparado para ser comido é o sinal daquilo que foi Jesus em toda sua vida. O sinal não está no pão como “coisa” perecível, mas no fato de que Ele é partido e repartido, ou seja, na disponibilidade na qual se encontra para poder se tornar alimento de todos. Jesus esteve sempre preparado para que todo aquele que dele se aproximasse pudesse assimilar Sua Vida, revestindo-se de seu modo de ser e fazer: ser tudo para todos. Deixou-se partir, fez-se alimento, deixou-se assimilar; embora essa atitude terá como consequência que fosse aniquilado pelos encarregados da religião.
O sinal de Jesus é pão partilhado. Não o alimento das purificações e dos ázimos rituais, que só os judeus piedosos podiam comer, mas o pão de cada dia, aludido no Pai-Nosso: a refeição que se oferece aos pobres e excluídos, se compartilha com os pecadores e se expande em forma universal.
Este é seu sinal: tudo que disse, tudo o que fez se condensa e se expressa na forma de alimento que sustenta e reforça os vínculos entre as pessoas.
O pão suscita e cria Corpo. Jesus não anuncia uma verdade abstrata, separada da vida, uma lei puramente social, um princípio religioso... Ao contrário, Jesus, Messias de Deus, é Corpo, isto é, Vida expandida, sentida, compartilhada. O Evangelho nos situa, desta forma, no nível da corporalidade próxima, acolhedora e compassiva. Aqui não há mais castas e nem exclusão.
Na Eucaristia se concentra toda a mensagem de Jesus, que é o Amor. O Amor é Deus manifestado no dom de si mesmo e que Jesus deixou transparecer durante sua vida. Isto somos nós: dom total, amor total, sem limites. Ao comer o pão e beber o vinho, estamos completando este sinal. Isso quer dizer que fazemos nossa Sua vida e nos comprometemos a nos identificar com aqueles que Jesus se identificou.
O pão que nos dá Vida não é o pão que comemos, mas o pão no qual nos convertemos quando vivemos de modo oblativo, ou seja, quando vivemos descentrados, voltados para os famintos que suplicam o pão da amizade, da presença solidária e comprometida.
“Eu Sou” em João é a suprema manifestação da consciência de quem era Jesus. Cada um de nós deve descobrir o que verdadeiramente somos, como Jesus descobriu. Somos o mesmo que era Jesus.
“Quem vem a mim não terá mais fome, e quem crê em mim nunca mais terá mais sede”. Que significa “ir a Ele, crer n’Ele”. Aqui se encontra o núcleo do discurso. Não se trata de receber nada de Jesus, senão de descobrir que tudo o que Ele tinha, também nós temos. Temos um “celeiro” interior, dotados dos mais diversos pães: recursos, dons, sonhos ... O que Jesus quer dizer é que se os seres humanos descobrissem que se pode viver a partir de uma perspectiva diferente, que alcançar a plenitude humana significa descobrir o que Deus é em cada um, responderíamos como respondeu Jesus.
Jesus não nos convida a buscar a nossa própria perfeição, nem nos limitar a práticas piedosas egóicas e estéreis, mas a ativar a capacidade de vivermos descentrados, partilhando o que somos e temos.
Buscar nossa própria “perfeição” significa edificar nosso próprio pedestal, para colocar ali nosso “ego” que se alimenta do pão do poder, do prestígio, do consumismo, do preconceito e da intolerância.
“Ser pão para os demais”, pelo contrário, significa esvaziamento das fomes egóicas para despertar fomes humanizadoras: pão da comunhão, da festa, do encontro. Só assim é possível alcançar a unidade e a plenitude de vida. A Páscoa do pão sinaliza para a Páscoa da vida que se faz pão e do pão que permanece para sempre.
Texto bíblico: Jo 6,24-35
Na oração: Somos profundamente gratos quando temos pão sobre a mesa de nossas casas; no entanto, “nosso pão de cada dia” nos provoca: qual é o alimento que mais precisamos? Qual é o pão cotidiano nos faz falta? Com que saciamos nossa “fome” de cada dia? O pão vem de Deus ou mendigamos migalhas de coisas que não nos satisfazem?...
- Descubra na sua mesa o seu pão; na sua jornada, o seu chão; no seu cotidiano, o inesperado que vem, o outro em sua fome, em busca de mãos abertas que saibam partilhar.
- Com o pão nas mãos viva em contínua ação de graças.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
03.08.2024
Em todo momento histórico, quando a Igreja e a sociedade são sacudidas por grandes mudanças, surgem homens e mulheres que rompem com esquemas e seguranças envelhecidos e se deixam conduzir pelo Espírito ao deserto, às margens, às fronteiras... rompendo um ambiente e uma ordem asfixiantes.
A fronteira, para eles, passa a ser terra privilegiada onde nasce o “novo” por obra do Espírito.
Eles(elas) descobrem na realidade do mundo e da história os “sinais dos tempos” e entram em comunhão com tudo, porque tudo é “diafania” (transparência) de Deus. Enraízam sua convicção nesta visão, nesta mística da presença de Deus em sua obra, na contemplação de um mundo chamado a se transformar em justo e belo, verdadeiro e pacífico, unido e reconciliado, entranhado em Deus, como no primeiro dia da Criação.
Foi num contexto assim que o “peregrino” Inácio de loyola, “sozinho e a pé” pelos caminhos da Europa, situou-se nas fronteiras da humanidade em busca da comunhão universal; aqui se situa o seu processo original da vivência da santidade.
Depois de cinco séculos, S. Inácio continua sendo uma figura única e paradigmática. O que é marcante nele está no fato de ter sido capaz de situar-se, de maneira original, no contexto das mudanças de seu mundo e de seu tempo. Ele é considerado o santo dos “tempos novos” que despontavam perante seus olhos deslumbrados. Novos valores emergiam, novos modos de pensar e sentir, de viver.
S. Inácio é o homem da mudança, da transição no tempo, dos tempos novos, agitados, turbulentos, de transbordantes novidades que colocavam em questão tudo o que até então era recebido. Ele não se fechou e nem resistiu a elas, mas abriu-se ao diferente e surpreendente.
O itinerário da sua vida foi um processo constante de “leitura orante da realidade”. Por isso, S. Inácio foi um homem de síntese: num mundo em mudança e até contraditório, ele assumiu com abertura total, sem preconceitos, sem nostalgias estéreis, a mudança de tempo que lhe coube viver. Isso lhe abriu horizontes culturais novos, nos quais vai deixar sua marca original.
Até à época de S. Inácio, todo aquele que se sentisse chamado à santidade deveria naturalmente afastar-se do mundo e de seus “perigos” e buscar refúgio no deserto, nas montanhas ou nos mosteiros.
S. Inácio não se afastou do mundo para encontrar a Deus; ele fez a “experiência” do Deus agindo no mundo; aí O encontra e caminha com Ele. O mundo não é só o “habitat” da sua missão: é sobretudo a fonte da sua espiritualidade, o lugar certo para encontrar a Deus e escutar o Seu chamado.
Da experiência de “amar a Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus”, nasce uma espiritualidade radicalmente “mundana”, de contemplação do mundo e de ação no mundo.
A partir de então as velhas fronteiras geográficas e políticas pelas quais Inácio lutou apaixonadamente, serão substituídas por outras, aquelas do coração humano.
A santidade, para ele, passa a significar experiência de fronteira: rendição de uma fortaleza, troca de bandeira e de senhor no próprio coração, esvaziamento de si mesmo como “ego inflado” e oferecimento de sua pessoa ao verdadeiro “Senhor” que o chama a segui-lo, ou seja, situar-se com Ele nos “extremos” humanos. Falamos da admirável aventura espiritual de um homem que, dia após dia, aprende, tenaz e apaixonadamente, a viver para Deus no cenário do tempo que lhe coube viver, sacudindo e abalando as consciências daqueles que o rodeavam.
Mas, ao longo de todas as mudanças, de lugar e de horizontes, bem como as profundas transformações ocorridas no interior do próprio Iñigo, notamos que nele permanece idêntica a abertura ao surpreendente e idêntico o discernimento como instrumento para deixar-se interpelar pelos novos mundos e pelos novos desafios que se abriam diante dele. De maneira original e inspiradora, Iñigo assume com intensidade e abertura total a mudança de tempo e de cultura que lhe coube viver.
Isso lhe abriu horizontes culturais novos, nos quais ele vai se fazer presente criativamente.
E a “Narrativa do Peregrino” (autobiografia) nada mais é do que o relato da admirável aventura espiritual e cultural de um homem sincero e obstinado, livre e aberto, sempre empenhado em discernir, nos “sinais dos tempos”, aquilo que vêm de Deus (para acolhê-lo), e aquilo que vem do mal (para rejeitá-lo).
O itinerário de Inácio não é unicamente geográfico. Mais que um simples deslocar-se, trata-se de um modo de viver e de situar-se no mundo. Depois de ter posto literalmente seus pés sobre as “pegadas” de seu Senhor e beijar o solo que Ele havia pisado, Iñigo de Loyola compreende que a terra de Cristo era o vasto mundo de seu tempo. Desde então, para além do deserto e da peregrinação a Jerusalém, abre-se diante de seus olhos, outro caminho. Decididamente, ele se volta para o mundo, esse borbulhar de acontecimentos sócio-político-religiosos, no qual reconhece o lugar da Encarnação.
Buscando considerar todas as coisas em sua referência a Deus, Inácio quer serví-Lo em toda circunstância. Dado que seu Criador e Senhor está presente e ativo em todo e qualquer lugar, ele se dirige ao mundo sem temor a nada, seguro de que cada um de seus passos o conduz ao lugar da adoração e do serviço.
Inácio contempla o mundo com Deus; longe de representar um espaço de tentações e de dispersão, o mundo é para ele o lugar do serviço. O olhar que pousa sobre a realidade reacende nele a saudade de Deus e o sentimento de sua presença. A partir de então, o mundo o aproxima de Deus e a saudade de Deus não o afasta do mundo.
O olhar de S. Inácio para seu tempo e seu mundo pode nos ajudar a nos situar melhor e mais lucidamente no nosso. Também nós estamos vivendo profundas mudanças sociais, religiosas, culturais… que provávelmente não são de menor porte que as do Renascimento.
Ouve-se dizer hoje, com frequência, que estamos assistindo o fim de uma época e o princípio de outra; emergem novas formas de cultura, entendida como novos modos de relacionamento do ser humano com os outros e com o mundo. Os modos de pensar e de sentir em que vivíamos e estávamos instalados parecem decompor-se aos nossos olhos, ao passo que emergem por todos os lados, dispersos, sem que se veja claramente o perfil, mundos novos, novas visões, novas maneiras de se situar na realidade, novas culturas que nos interrogam, solicitam e inquietam.
Estes nossos tempos, novos e turbulentos, pedem de todos nós, críticos, inquietos e vigilantes, uma constante re-leitura dos novos “sinais” que surgem, a necessidade de viver em estado de atenção permanente, capacidade de re-analizar tudo o que vemos, e decidir a seu respeito no discernimento.
Se alguém se mantém constantemente de olhos abertos diante do que está vivendo, como fez S. Inácio, encanta-se em meio às grandes descobertas da ciência que ampliam o conhecimento do ser humano, às novas formas de socialização que estão transformando o nosso mundo, às novas formas e funções do saber, aos novos desafios que se apresentam diante de seus olhos, às novas esperanças de uma humanidade que é diferente, às novas formas de expressar a experiência religiosa... Este, certamente, estará assumindo uma atitude ativa e acolherá tudo o que humaniza e rejeitará tudo o que desumaniza.
Pondo-nos na escola de Inácio, é aqui, neste mundo, que Deus nos chama a estender o seu Reino, trabalhando cada dia como amigos(as) de Jesus que passam, observam, curam, se compadecem, ajudam, transformam, multiplicam os esforços humanos.
O(a) santo(a) dos tempos modernos é aquele(a) que na liberdade, afirma: “Fora do mundo não há salvação”.
Textos bíblicos: Mc 4,35-41 Ex 33,7-17 Ex 3,1-10 Jo 6,1-15
Na oração: Para viver em atitude de “travessia” é preciso estar em eterna vigilância; e, ao mesmo tempo, abrir-nos a um constante assombro e gratidão, porque cada manhã é um milagre.
- A nossa vida é um êxodo, um sair constante de uma realidade para entrar em uma outra realidade nova. O peregrinar é o elemento determinante e com maior valor simbólico para toda a vida.
- Existem ainda céus por explorar, aventuras por empreender, pensamentos por experimentar e experiências por aceitar; falta-nos ainda muito por saber, por ver, por sentir, por desfrutar...
- No “mapa espiritual” do meu interior, ainda existe uma “terra desconhecida”, que desperta interesse, suscita curiosidade, me põe a caminho...?
- Vivo uma atitude de busca permanente (discernimento)? Minha presença no mundo faz diferença?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
30.07.2024
“Jesus tomou os pães, deu graças...” (Jo 6,11)
São João situa na Última Ceia o mandamento do amor e o lava-pés (serviço); mas, a Eucaristia – “Eu sou o pão da vida” – ele a situa no cap. 6º. de seu Evangelho, no relato da multiplicação dos pães – “Eu sou o pão que desceu do céu”. O acontecimento da “multiplicação dos pães” ficou muito gravada na memória e no coração dos primeiros cristãos, pois aparece seis vezes nos quatro evangelhos.
De fato, a partilha dos alimentos é uma das mais sólidas e atrativas mensagens evangélicas.
Certamente, nós cristãos, devemos atender ao que Jesus prega quando nos revela que Deus é nosso Pai e fonte de misericórdia; mas, é preciso também nos deixar inspirar pelos seus atos quando dá de comer aos famintos, atos que dão suficiente fundamentação à sua pregação.
Jesus sempre se preocupou com as necessidades dos enfermos, dos marginalizados e, no relato deste domingo, deixou clara sua sensibilidade diante da fome daquela multidão que fora ao seu encontro para escutá-lo. Afinal, todo ser humano precisa comer, no amplo sentido do termo “alimentar-se”.
Seguramente, o problema mais grave que a humanidade padece, em todos os tempos, está no fato de não saciar a fome de tantos milhões de seres humanos, deserdados da possibilidade de se alimentarem. Diante desta triste realidade sentimo-nos impotentes e incapazes de encontrar uma solução.
Os critérios, profundamente egóicos, que regem nossas sociedades, dificilmente resolverão o problema da fome. O milagre da multiplicação dos pães é um forte apelo a nos libertarmos de nossa indiferença diante daqueles que morrem de miséria e fome. Quando somos solidários, há pão para todos, inclusive sobra. Nesse sentido, a multiplicação dos pães significa também multiplicar o trabalho, acolher os imigrantes, dividir os bens... Na terra há alimento para todos; inclusive sobra, quando não é especulado.
O pão de vida não vem do dinheiro ou da compra abundante, que não sacia; o pão de vida vem do coração, da boa relação, da solidariedade e da partilha entre os seres humanos. O pão de vida é um dom, uma graça (gratuidade) do Senhor. Jesus sabe disso: aqueles que tem dinheiro não resolverão nunca o problema da fome no mundo, porque, para resolver este problema é preciso algo mais que o dinheiro: partilha, solidariedade, boa vontade, sensibilidade oblativa... É muito difícil ensinar a partilhar quando unicamente sabemos comprar com ansiedade.
Diante da fome, Jesus propõe uma solução diferente daquela do comprar. Fala da partilha dos poucos pães e peixes que um menino anônimo levou consigo e que dispõe para saciar a fome dos outros. O menino põe seus pães de cevada (pão do pobre) e peixes a serviço dos demais, como a pobre viúva do evangelho que deposita seus poucos centavos na urna da coleta do Templo: era tudo o que tinha para viver.
Ao tomar os pães e peixes em suas mãos, Jesus, cheio de gratidão, dirige-se ao Pai; não é possível crer n’Ele como Pai de todos e continuar deixando que seus filhos e filhas morram de fome.
Por isso, profere a benção de ação de graças. A Terra e tudo o que nos alimenta, recebemos de Deus. É dom do Pai destinado a todos os seus filhos e filhas. Ninguém tem o direito de acumular e especular os alimentos. Se vivemos privando os outros daquilo que necessitam para viver é que já nos distanciamos de Deus e atrofiamos nossa sensibilidade solidária.
No evangelho deste domingo podemos também perceber uma profunda conexão entre a cena da multiplicação dos pães e peixes e o relato da Última Ceia; também nessa multiplicação “Jesus tomou os pães, deu graças e os repartiu entre aqueles que estavam sentados à mesa”. Aqui, Jesus acrescenta um pedido para que a ceia fosse celebrada “em sua memória viva”, ou seja, que todos recordassem que Ele passou neste mundo fazendo o bem, servindo e amando a todos.
Diante de tudo isso, sem refeição compartilhada, sem serviço efetivo e sem amor incondicional, não pode haver Eucaristia em sentido pleno. Percebemos, nas atuais “missas católicas”, que há muito culto, muita genuflexão, muita adoração..., mas, pouca partilha, pouca vivência do amor e reduzido serviço; “missas” que não deixam transparecer a “memória viva” da vida de Jesus, nem é o lugar do cumprimento das recomendações tão caras que Ele nos fez no momento mesmo de sua partida.
A Eucaristia nos recorda que o pão é dom de Deus a receber; se ele leva a marca do dom, ele convida à partilha. A ação de comer deixa de ser somente um ato biológico, mas um ato social e, portanto, um ato espiritual.
Alimentar-se é também uma questão moral e teológica. É preciso examinar como nossa atitude diante do alimento foi superficializado pela narrativa moderna e pela redução dele a uma mercadoria. O entendimento espiritualmente empobrecido do alimento só poderá ser corrigido se começarmos a pensar na alimentação como um “exercício espiritual”.
O alimento é uma dádiva de Deus oferecida a todas as criaturas para fins de nutrição, partilha e celebração da vida. Quando se realiza em nome de Deus, a alimentação é a realização terrena do eterno amor de comunhão de amor do Pai com todos os seus filhos e filhas. A consciência do dom nos convence que o alimento não é um simples punhado de nutrientes que simplesmente precisamos ingerir nas quantidades, variedades e proporções certas; o alimento é muito mais que um combustível de que necessitamos para manter nosso corpo funcionando, como uma máquina, em um nível ideal. Nessa visão falta aquela atitude para o maravilhamento e reverência.
Normalmente as pessoas costumam parar e dizer uma oração antes de tomar uma refeição, mas grande parte das pessoas aprendem que o alimento é apenas um produto manufaturado que é controlado e especulado.
O pão tem sido, há muito tempo, um elemento central para o coração e a vida das culturas ocidentais e do Oriente Próximo. Por gerações, as pessoas têm associado pão com alimento, e a disponibilidade de pão com tempos bons e segurança alimentar. A ausência de pão, ou medo da escassez dele, com frequência, eram suficientes para causar revoltas. Na mente de muitos, ao longo do tempo, sem pão simplesmente não há vida.
A importância do pão ainda permanece em nossa imaginação quando nos referimos ao dinheiro como o “pão nosso de cada dia” ou aos salários como o “ganha-pão” dos trabalhadores.
O aroma do pão saído do forno é suficiente para fazer que as pessoas queiram se sentar, se acomodar e se deliciar com várias fatias. A presença visível, aromática e tátil de um pão quentinho convida ao compartilhamento e ao companheirismo (“companheiro” – do latim “cum-panis” é alguém que “compartilha o pão”).
Além de proporcionar nutrição, o pão comunica aconchego, hospitalidade, fraternidade, compartilhamento de nossa vida juntos. Podemos olhar para uma refeição e ver apenas uma variedade aleatória de nutrientes, inconscientes da graça de Deus que nela se manifesta. Podemos esquecer que o alimento é um dos meios básicos e duradouros de Deus expressar a providência e o cuidado divinos.
Compartilhar uma refeição é participar de uma comunicação divina (cf. Sl 104,10-15).
Recebido à mesa eucarística como o corpo de Cristo, é nossa nutrição para reforçar nossos laços comunitários.
Texto bíblico: Jo 6,1-15
Na oração: Não é possível reconhecer o Corpo do Senhor presente na Eucaristia se não reconhecemos o Corpo do Senhor na comunidade onde alguns passam necessidades. Pois, se fechamos os olhos às divisões e às desigualdades mentimos ao dizer que Cristo está presente na Eucaristia.
Enquanto não nos mobilizamos a mudar nossa sociedade de maneira que mais pessoas aceitem a alegria de compartilhar o pão e a vida, faltará algo em nossa Eucaristia. Essa “ferida” o cristão deve sempre tê-la presente.
- Sua participação na Eucaristia desperta uma sensibilidade solidária diante das diferentes “fomes” que afetam tantas pessoas?
Pe. Adroalao Palaoro sj
26.07.2024
“Vinde sozinhos para um lugar deserto, e descansai um pouco” (Mc 6,31)
A vida, toda vida, tem sua dose de cansaço. Também Jesus experimentou isso: “Fatigado da caminhada, sentou-se junto ao poço” (Jo 4,6).
De que estava habitado o cansaço de Jesus? Marcos nos conta que eram muitos que chegavam e saiam, e não lhes sobrava tempo nem para comer. É um cansaço perpassado de rostos, que tem a ver com a vida que se gasta e se põe a fadigar por outros: “Levavam a eles todos os enfermos e endemoniados” (Mc 1,32).
De fato, de acordo com o evangelho deste domingo, as jornadas de Jesus se revelavam esgotadoras: muitos enfermos eram levados até Ele para que os tocasse e os curasse; muitas pessoas se aproximavam para escutá-lo; era muito exigido em todos os lugares por onde passava; os conflitos desgastantes com os fariseus...
Jesus sentia os cansaços e as pressões, mas, ao mesmo tempo, sabia fazer “paradas” para recuperar as forças, para retomar o contato com o sentido de sua vida e de sua missão, para ser Ele mesmo.Ele possuía uma lucidez que proporcionava uma visão profunda das coisas, no clima de uma paz sempre buscada. Para Jesus, o descanso, entre outras coisas, era um momento de restauração e reabilitação pessoal que lhe permitia mergulhar de novo na sua missão com maior criatividade.Talvez, por isto, nunca perdia o norte, sempre estava preparado, pronto, disposto a investir o melhor de si e a responder na direção adequada.
De que estão feitos nossos cansaços?
Todo esforço precisa seu descanso, toda atividade pede uma parada.Não há tensão que não exija um relaxamento, nem atividade continuada que não peça um repouso reparador. Os cansaços acabam nos revelando que, em nossa vida ativa, estamos amputando certas dimensões do humano. Assim, o descanso, em seu sentido nobre, impede que nos convertamos em meros trabalhadores estressados; ele nos arranca de nossa existência maquinal.
É sintomático o fato de recorrermos frequentemente ao uso da linguagem da máquina para expressar o que buscamos com o descanso: “desconectar”, “tirar da tomada”, “recarregar a bateria”, “recuperar a energia”, “reabastecer o motor” ... Sutilmente, expressamos deste modo como nos percebemos em nossa realidade cotidiana e até que ponto estamos suportando níveis intoleráveis de saturação, de ativismo, de stress...
Descansar tornou-se uma necessidade do planeta. A terra, nós e todos os seres vivos precisamos da pausa que revigora, do repouso que nos faz criativos. Prazer, vitalidade e criatividade dependem dessas pausas que estamos negligenciando. Devemos buscar, em cada circunstância, fazer do descanso uma ocasião de subversão de valores, de questionamento de nossa prática cotidiana, de enraizamento de nossa missão... enfim, de vivê-lo à maneira de Jesus Cristo.
O descanso nos conserva humanos; ele nos ajuda a recuperar um ritmo de vida mais humanizante, ou seja, recuperar a capacidade de estabelecer relações gratuitas com outras pessoas, com a natureza e seus ritmos, com o Criador... Não basta simplesmente poder folgar; ter acesso ao verdadeiro descanso é recuperar o sentido da gratuidade das nossas atividades e que melhoram a vida e a convivência.
O descanso pode ser um bom tempo para retomar a vida com mais liberdade e para realizar atividades mais humanizantes. Nesse sentido, o objetivo principal do descanso é recuperar nosso lugar e nossa condição de homens e mulheres, afastando de nós o endeusamento e as fantasias de onipotência. No descanso, voltamos a pisar a terra (húmus – humildade) para recuperar uma relação desinteressada e sadia com os outros, com o mundo e com Deus. A vida tem necessidade de “con-sideração”, “avaliação”, “fundamentação” ... Do contrário, ela perde densidade e, sobretudo, desperdiça sua própria beleza.
Por mais descansos que tenhamos, há cansaços que só se aliviam através do encontro consigo mesmo, e há descansos que só se conseguem quando nos reconciliamos com o que somos e vivemos.
Precisamos de “paradas”, mas paradas com argumento interior. Elas devem ser algo assim como um retorno contemplativo, uma “re-flexão” em direção à raiz de nossas motivações.
O descanso permite sintonias profundas conosco mesmo e com a profundidade das circunstâncias habituais que fazem parte do nosso cenário cotidiano. Ele desperta uma predisposição pessoal que pode ser decisiva para redescobrir o valor e o sentido do cotidiano no qual voltamos a mergulhar. O descanso inspira, nos faz criativos, porque toca as profundezas de nós mesmos e das atividades rotineiras.
Nesse sentido, o descanso se assemelha muito a uma certa ressurreição; não é um simples reabastecimento, mas uma regeneração na qual se recompõe a interioridade, o espírito criativo, a disposição de coração... “Vinde sozinhos para um lugar deserto...” O descanso não é uma “des-conexão”, senão uma “cone-xão” com aquilo que é o impulso fundamental de nossa vida cotidiana. O descanso nos possibilita afastar do rotineiro e nos faz caminhar ao deserto interior, onde podemos dirigir um olhar contemplativo sobre a vida cotidiana. Nele nos desprendemos do presente e de sua urgência tirana.
No deserto nos personalizamos, resgatamos nossa identidade; nele temos a chance de ver a realidade sem instrumentalizá-la, gratuitamente. E só no gratuito é que descansamos. Deste modo, o descanso também pode se constituir como um “tempo” privilegiado para uma intimidade com o Senhor, um espaço em nossa existência para estar gratuitamente com Ele, para saborear sua presença em nossa vida, para alegrar-nos com sua ação providente e cuidadosa. “Tempo sagrado” para dirigir nosso olhar para o Pai, para compreender, a partir d’Ele, o sentido das coisas e da história. “Tempo” para Deus, para mergulharmos no mistério que pulsa no profundo da vida e render-nos diante d’Ele, para descalçarmos diante do sagrado e contemplar.
A mística inaciana tem muito a nos revelar sobre esta atividade tão divina e tão humana: o descanso.
“Viver descansadamente” (S. Inácio), é encontrar um descanso, uma paz interior, uma quietude, uma consolação, uma satisfação na vida e nas atividades, e que tem sua raiz na comunhão com Deus que trabalha e descansa. A vida do “contemplativo na ação” é uma vida ativa vivida “descansadamente”, ou seja, na presença de Deus, com o coração centrado n’Ele, fazendo somente Sua Vontade...
Viver uma vida ativa descansadamente é viver com os pés na terra e contemplando as “coisas do alto”. Como homem pragmático, Inácio de Loyola mandou construir casas de descanso para os jesuítas, pois sabia, por experiência, que uma atividade forte pede relaxamento. Ele compreendeu que os ambientes tensos e atividades estressantes não são desejáveis nem para a vida espiritual, nem para o trabalho, e recomenda “recreação” e “relaxamento” na atividade, seja corporal ou espiritual.
Texto bíblico: Mc. 6,30-34
Na oração: Também na vida espiritual, necessitamos de pausa para um encontro profundo conosco e com Deus, e assim poder retomar a vida com mais dinamismo. A pausa é que dá sentido e inspiração à caminhada.
- Na perspectiva do discernimento, devemos, depois de cada descanso, nos perguntar:
“o que ele nos trouxe de novidade? ajudou a nos dignificar como pessoas? me-lhorou a relação com os outros? facilitou ao outro sentir-se bem? quê possibi-lidades novas nos apresentou?”
“Descansar é uma arte. Viver descansadamente, uma arte ainda mais delicada” (J.A. Guerreiro)
- seu descanso: tempo de humanização ou mais um stress na sua agenda?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
19.07.2024
“Jesus chamou os Doze, e começou a enviá-los dois a dois, dando-lhes autoridade...” (Mc 6,7)
“Seguidores do novo caminho”: assim eram reconhecidos os primeiros cristãos (cf. At 16,17; 18,25-26; 19,9.23; 22,4; 24,14.22). Pelos diversos caminhos da história perdem seu valor as verdades inamovíveis, dogmáticas, petrificadas, porque o importante na vida é discernir, em cada encruzilhada do percurso, o que nos diz hoje o Deus da Vida, sua Presença e sua voz manifestada nos rostos e nas existências de homens e mulheres de nosso mundo, em especial os mais desprezados e esquecidos.
Jesus envia seus discípulos com o necessário para caminhar. No envio, algumas orientações que pressu-põem despojamento para o bom exercício da missão: segundo Marcos, levarão apenas um cajado, sandália e uma túnica, confiando na providência acerca do pão e do dinheiro.
Desprendimento é uma característica fundamental de quem está voltado para o Reino, anunciado por Jesus. Não precisam de mais nada para serem testemunhas do essencial. Jesus os quer ver livres e sem ataduras; sempre disponíveis, sem instalar-se na acomodação do bem-estar, confiando apenas na força do Evangelho.
Fala-se muito hoje, na comunidade eclesial, sobre a necessidade de uma nova evangelização. Em que consiste? Onde pode estar sua novidade? Que é preciso mudar? Qual foi realmente a intenção de Jesus ao enviar seus discípulos para prolongar sua missão evangelizadora?
O relato de Marcos, neste domingo, deixa claro que só Jesus é a fonte, o inspirador e o modelo da ação evangelizadora de seus seguidores. Estes atuarão com Sua “autoridade”. Não farão nada em nome próprio; serão os “enviados” do próprio Jesus. Não pregarão a si mesmos, nem uma doutrina, nem um moralismo doentio e muito menos uma nova religião, com seus ritualismos estéreis e ameaças. Só anunciarão o Evangelho de Jesus. Não terão outros interesses: só se dedicarão a abrir caminhos ao Reino de Deus.
A única maneira de impulsionar uma “nova evangelização” é purificar e intensificar a vinculação afetiva com Jesus. Afinal, somos seguidores de uma Pessoa, e isto implica revestir-nos do modo de ser e viver desta Pessoa. Não haverá nova evangelização se não há novos evangelizadores, e não haverá novos evangelizadores se não há uma identificação mais viva, lúcida e apaixonada com Jesus. Não haverá nova evangelização sem se deixar conduzir pelo mesmo Espírito que atuava em Jesus e o conduzia para a “margem”, para o mundo dos pobres e excluídos.
Ao enviá-los, Jesus não deixa seus discípulos abandonados às suas próprias forças; comunica-lhes sua “autoridade”, que não é um poder para controlar, governar ou dominar os outros, mas uma força para “expulsar espíritos imundos”, libertando as pessoas de tudo aquilo que as escraviza, oprime e desumaniza.
Para Jesus, o poder nunca pode ser mediação de salvação, muito menos o poder religioso; pois, onde há poder, há imposição, divisão, submissão, medo... No exercício do poder, o centro está na própria pessoa que manda e controla.
“Autoridade” é outra questão muito mais nobre. Provém do latim “augere” (fazer crescer) e indica a capacidade que uma pessoa tem para estimular os outros a crescerem, para torná-los mais adultos e mais capazes de uma vida digna. Na autoridade, o centro está no outro, pois ativa a autoria e autonomia deste outro. Ter autoridade é viver des-centrado, sem buscar seus próprios interesses.
Uma pessoa tem autoridade por sua bondade e inspirada presença em um grupo, na família, na comunidade, no povo, na igreja... Pode acontecer que uma pessoa tenha poder legítimo (conferido por eleição) e nenhuma autoridade; ou, de outro modo, pessoa que tem autoridade, mas sem poder.
Jesus não governou sobre ninguém e nem impôs nada à força. Nunca utilizou o poder para controlar ou dominar seus discípulos; jamais excluiu a alguém. Foi livre e libertador: acolheu os mendigos doentes e marginalizados, negou-se a condenar a mulher adúltera, pediu a Pedro perdoar até setenta vezes sete... Despertou a vida nas pessoas excluídas, sensatez e justiça na sociedade. Não ostentou nenhum poder oficial, mas, segundo as pessoas, atuava e falava como quem tem autoridade.
Os discípulos sabiam muito bem qual era o encargo que Jesus lhes confiava. Nunca o viram governando a ninguém. Sempre o viram curando feridas, aliviando o sofrimento, regerando vidas, libertando as pessoas dos medos, contagiando confiança no Deus Providente. “Curar” e “libertar” foram a essência do ministério terapêutico de Jesus. Ele sempre se revelou como “o Libertador” do ser humano.
Por isso, uma nova evangelização que não seja libertadora, é vazia de valores evangélicos; acaba tendo um efeito contrário: domina e escraviza as pessoas, alimenta medos paralisantes, impede as pessoas de viverem com mais lucidez e liberdade. Foi para vivermos livres que Jesus libertou a todos.
Sem recuperar este estilo evangélico, não há nova evangelização. O importante não é criar novas atividades e estratégias, mas desprender-nos de costumes, estruturas e maneiras de proceder que estão nos impedindo de ser livres para contagiar o essencial do Evangelho, com verdade e simplicidade.
A Igreja, infelizmente, está perdendo esse estilo itinerante que Jesus pediu. O caminhar da Igreja é lento e pesado; não acerta em acompanhar os passos da humanidade; não tem agilidade para passar de uma cultura a outra; agarra-se ao poder que tudo controla; enreda-se em interesses que não coincidem com o Reino de Deus; manipula-se as consciências das pessoas impondo-lhes pesados fardos de culpas, julgamentos, ritualismos de expiação, distantes da presença libertadora de Jesus.
Nesse contexto podemos recordar uma sentença do evangelho apócrifo de Tomé (que retoma a mensagem do envio de Marcos e Mateus): “Sede itinerantes! Sede transeuntes!” De passagem vivemos, mas no caminho podemos e devemos nos encontrar e nos ajudar, animando-nos. Foi assim que, com um grupo de homens e mulheres, como transeunte do Reino, voluntário do amor, rico de vida e mendicante de esperança, começou Jesus sua missão evangelizadora.
Assim começou Jesus; assim também começaram os grandes cristãos como Francisco de Assis, Inácio de Loyola, João da Cruz, Madre Teresa..., e tantos outros que souberam retornar e retornam hoje aos caminhos da vida, para acompanhar os que vagueiam, acolher os perdidos, animar e deixar-se animar por todos.
Não foi Jesus um itinerante para estabelecer relações de domínio, mas de solidariedade, sabendo que aqueles que menos tem (itinerantes) são os que mais podem oferecer (anunciam o Reino, curam). O grupo de Jesus não se constitui em chaves de dependência ou hierarquia, mas de experiência compartilhada e comunicação pessoal. Estas novas relações são as que estabelecem a novidade da instituição cristã. Por isso, é urgente uma profunda conversão sinodal (“caminhar juntos”); e isto significa retornar à essência do Evangelho, à identificação com Aquele que é o centro da vida cristã.
A missão evangelizadora não é tarefa de uns poucos, mas a consequência inevitável da adesão a Jesus. Não se trata de salvaguardar, a todo custo, doutrinas ultrapassadas ou normas morais que não humanizam; menos ainda em conservar ritos fossilizados que já não dizem nada a ninguém. A mensagem de Jesus não pode ser contida em fórmulas, nem numa programação. É uma maneira de ser e viver. Ser cristão é uma maneira de ser mais humano.
“As religiões se fazem indigestas – não só indigestas -, mas sumamente perigosas, quando pretendem apoderar-se do Absoluto” (J. Melloni, sj)
Texto bíblico: Mc 6,7-13
Na oração: Nas estradas da vida acontece algo de verdadeiro e belo quando nos dispomos a buscar dentro de nós mesmos a razão da nossa existência: falta-nos ainda muito por saber, por ver, por sentir, por desfrutar...
A nossa vida é um êxodo, um sair constante de uma realidade para entrar em uma outra realidade nova.
O peregrinar é o elemento determinante e com maior valor simbólico para toda a vida.
- Diante de Jesus, que “passa e chama” a todos, responda: como você vive, hoje, sua missão no trabalho, no seu ambiente, na sua comunidade? Que sentido você quer dar à sua própria vida?... em quê gastar suas forças, capacidades? Como viver, no seu cotidiano, sua vocação de discípulo(a)-missionário(a) itinerante?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
12.07.24
“Não é este o carpinteiro, o filho de Maria...?” (Mc 6,3)
Marcos não começa seu evangelho apresentando a família de Nazaré e a educação do protagonista Jesus; ele começa fazendo referência a João Batista, para relatar depois o que Jesus começou fazendo.
Só agora, depois de apresentar basicamente a mensagem de Jesus, Marcos fala de sua terra e da relação que Ele tem com seus familiares e conterrâneos. Só agora recebemos uma informação mais detalhada do tema, a partir de uma perspectiva polêmica.
O evangelista já havia chamado a atenção da relação de Jesus com seus parentes, em 3,21, quando diz que eles vieram buscá-lo, porque diziam que que Ele estava ficando louco.
O relato deste domingo não deixa de ser surpreendente. Jesus foi rejeitado precisamente em seu próprio povoado, entre aqueles que julgavam conhecê-lo melhor que ninguém. Chegou a Nazaré, acompanhado de seus discípulos, ou seja, um mestre que tem seus seguidores fixos; ninguém saiu ao seu encontro para recebê-lo, como acontecia em outros lugares. Também não levaram até Ele seus enfermos para que os curasse. Jesus precisou esperar o sábado para ir à sinagoga e falar-lhes. Não foram à sinagoga para escutá-lo, mas para cumprir o preceito do sábado. É Jesus que, por sua conta e risco, se põe a ensiná-los sem que eles o pedissem.
A presença de Jesus desperta assombro em todos. Não sabem quem lhe ensinou uma mensagem tão cheia de sabedoria; do mesmo modo, não sabem explicar de onde provém a força curadora de suas mãos. A única coisa que sabem é que Jesus é um trabalhador artesão, nascido numa família de sua aldeia. Tudo o mais revela-se escandaloso.
Neste retorno à sua terra, Marcos aproveita para apresentar o que poderíamos chamar “o curriculum vitae” de Jesus. Todo o cristianismo posterior depende, de algum modo, deste “curriculum”, onde Jesus aparece como carpinteiro, e não como mestre de obras; também aparece como descendente de uma mulher chamada Maria, dentro de uma família conhecida. Os dados do texto poderiam ser usados para desprezar Jesus, como de fato aconteceu. Mas, Marcos os entende como fonte de honra, conforme um processo de “inversão” muito significativo.
De fato, Jesus, o Filho de Deus vivo, assumiu a condição humana, se fez “um entre tantos”, vizinho com os vizinhos, trabalhando com os que trabalhavam, assumindo a “comum lei do trabalho”. Era conhecido como o “filho do carpinteiro”.
Na vida escondida em Nazaré, Jesus assumiu a condição da imensa maioria dos mortais deste mundo, dos homens e mulheres “comuns”, dos que vão trabalhar ou estão sem emprego, dos que tem que “ganhar a vida” porque na vida não encontram seu lar, daqueles que são pura estatística...
Quando se perde a referência vital de que Jesus é o “caminho que nos leva à vida”, o seu cotidiano focado no trabalho se torna insuportável para aqueles que “buscam fama, honra e estima”.
Nesta vida comum e cotidiana foi onde Jesus cresceu em sabedoria e graça; ali Ele se “humanizou”.
Foi em Nazaré que Jesus aprendeu a olhar a realidade, o contexto social, com o sofrimento dos homens e mulheres de seu entorno. Provavelmente seus antepassados foram da Judéia a Nazaré como agricultores, recebendo como propriedade, parcelas de terra, que os vinculavam à promessa e benção antigas. Mas, num dado momento, os descendentes desses novos colonos perderam as terras, devendo trabalhar como artesãos eventuais.
Em princípio, um israelita ideal (segundo as promessas de Deus) devia ser proprietário de uma terra herdada. Mas a política urbana e mercantilista de Herodes o Grande e de seu filho Antipas fez com que muitos agricultores de Galiléia tivessem que vender suas propriedades, tornando-se camponeses sem campo, artesãos eventuais (ou a serviço do templo e das construções reais) ou mendigos.
Jesus viveu num tempo de transformação comercial e urbana e muitos agricultores não puderam manter sua autonomia, de maneira que tiveram que vender seus campos aos oligarcas, tornando-se arrendatários ou artesãos a serviço das classes ricas das cidades. Jesus não teve outra opção: era pobre pela situação social e laboral e a partir daí aprendeu a viver e a olhar a partir do mundo dos pobres.
Mc. 6,3 define Jesus como “ho tekton” (o artesão), ou seja, um camponês sem-terra, de maneira que teve de viver e trabalhar entre operários eventuais ou diaristas, arrendatários explorados, enfermos, marginalizados e pobres. Conhecia a pobreza por dentro; era realmente pobre por seu trabalho e o lugar que ocupava na sociedade. Como “judeu marginalizado” não podia manter-se por si mesmo, senão que dependia do trabalho em obras alheias, alimentando-se mal ao ar livre, dormindo em lugares lúgubres...
Essa foi sua escola, essa foi sua identidade: vendia seu trabalho, encontrando-se à mercê das necessidades e ofertas (ou não ofertas) dos proprietários.
Só sabemos que foi o artesão de Nazaré, e que essa palavra o definia dentro da sociedade. Era um artesão do povo, pobre entre os pobres expulsos de suas terras. Como trabalhador artesão, pode conhecer a dor real do povo, na escola de Deus, que é a escola da vida humana, em contato com as necessidades dos excluídos, dos loucos, dos enfermos, dos famintos, em solidariedade laboral.
Não foi hábil marceneiro capaz de enriquecer-se através de sua destreza. Foi simples operário, como membro do grupo dos novos pobres, por necessidade social, pelo contexto em que havia nascido, ainda que por família tivesse recebido uma intensa formação. E na vida “oculta” Jesus cresceu em “sabedoria”.
Assim aprendeu a ser humano, ouvindo os gritos dos homens e mulheres de seu entorno, expulsos, oprimidos, como ovelhas sem pastor. Não teve que entrar a partir de fora no lugar da dor; cresceu ali, o levava dentro.
Jesus viveu e trabalhou no lugar apropriado para aprender, por experiência e solidariedade, aquilo que é mais importante, aquilo que até então quase ninguém tinha visto e escutado. Esses anos de trabalho artesão não foram de “vida oculta” (em sentido intimista), senão de solidariedade e encontro com homens e mulheres de seu contexto. Os evangelhos não quiseram dar mais detalhes sobre o tempo em Nazaré.
Quando uma pessoa não se empapa do cotidiano, não vive a vida normal do comum dos mortais, quando não compartilha da alegria e das dores da imensa maioria, quando não luta e se faz gente entre as pessoas, dificilmente terá resistência para viver um grande projeto, sem sucumbir às armadilhas deste mundo.
Viver “sendo um entre tantos” outros, acolhendo a vida cotidiana em toda sua riqueza e limitação é o que nos permite poder viver apostolicamente com “sabedoria”, nos permite saber discernir o trabalho e as atividades sem perder referências e dados da realidade. Quando deixamos de pôr os olhos n’Ele e na “imensa maioria” podemos perder o foco.
O trabalho na “vinha do Senhor” nos faz “um entre tantos”, mas, ser “um entre tantos” dá pânico em muitos ambientes cristãos. Custa-nos assumir a trama do cotidiano, do vulgar, daquilo que pertence ao ambiente popular, dá medo dissolver-nos e perder-nos. Viver o seguimento do Senhor Jesus é viver o caminho da vida; é na dureza da vida que encontramos o Espírito que nos foi dado. É no compromisso com a vida que encontramos o Vivente, Aquele que submergiu nas águas deste mundo do trabalho por amor até o extremo.
Texto bíblico: Mc 6,1-6
Na oração: Leia, com calma e sabor, o evangelho deste dia. Deixe que as palavras de Jesus despertem novas e diferentes palavras nas profundezas de seu interior, palavras carregadas de sentido e de ânimo.
- Crie silêncio para poder dialogar com seu eu profundo, para ver o que há por detrás de suas palavras, de seus sentimentos, de suas intenções... Silêncio para tentar ir ao coração de sua verdade.
- Cave palavras nas minas do seu silêncio, e deixe que o Espírito diga a “palavra” misteriosa, diferente, reveladora de sua verdadeira identidade. Somente o silêncio poderá gerar “palavras de vida”.
- Reze o seu “cotidiano”, lugar do encontro com Aquele que deu sentido a toda ação laboral.
Pe. Adroaldo Palaoro SJ
06.07.2024
“E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,15)
A festa de S. Pedro e S. Paulo pode ser uma ocasião privilegiada para aprofunda nosso “ser Igreja”; pertencemos à Comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus, prolongando seu modo de ser e viver; Ele iniciou um “movimento de vida”; por isso se distanciou de todo poder e se preocupou especialmente das pessoas marginalizadas; cercou-se de mulheres e homens dispostos a continuar seu caminho, anunciando a mensagem do Reino de Deus; proclamou as bem-aventuranças como modo de viver; denunciou as opressões e injustiças tornando realidade a salvação do Deus Pai e Mãe, através de suas curas.
Hoje este movimento quer se fazer presente e continuar nas comunidades cristãs de base, espalhadas pelo mundo, distantes, em muitos aspectos, da estrutura clerical e em conflitos com os interesses e objetivos da instituição eclesiástica, centrada no poder e no controle das pessoas.
No relato do evangelho deste domingo percebemos que foi importante para Jesus saber o que as pessoas pensavam d’Ele. Mas, é possível que isso tenha sido apenas uma introdução para a segunda pergunta, dirigida aos próprios discípulos. De modo particular, a Jesus lhe interessava não tanto saber o que os outros sabiam ou pensavam d’Ele, mas o “que Ele significava para eles?”, depois de um bom tempo de convivência.
Assim, Pedro confessa a verdadeira identidade de Jesus (“Messias, o Filho do Deus vivo”); ao mesmo tempo, Jesus des-vela a identidade de Pedro: “Tu és “petros” (pedregulho) e sobre esta “petra” (rocha) edificarei minha igreja”. Pedro se torna rocha firme (“petra”) quando se apoia na identidade de Jesus (a verdadeira Rocha).
Pedro, que era “petros” (pedra de tropeço no caminho), foi sendo transformado, através da identificação com Jesus, em “petra”, rocha firme da primitiva comunidade cristã.
Dessa forma, o Simão que era “petros” /pedregulho se converte em “Petra”/rocha firme, porque o mestre des-velou a nobreza que estava escondida no coração dele, ou seja, sua verdadeira identidade sobre a qual o mesmo Jesus iria edificar sua Igreja.
Todo ser humano possui dentro de si uma profundidade que é o seu mistério íntimo e pessoal; trata-se do “eu original”, aquele lugar santo, intocável, sólido, onde se encontra o fundamento para poder construir a própria vida. É aqui onde a pessoa encontra a sua identidade pessoal; trata-se do coração, da dimensão mais verdadeira de si, da sede das decisões vitais, lugar das riquezas pessoais, onde ela vive o melhor de si mesma, onde se encontram os dinamismos do seu crescimento, de onde parte as suas aspirações e desejos fundamentais, onde percebe as dimensões do Absoluto e do Infinito da sua vida.
A essência do próprio ser é a rocha consistente e firme, bem talhada e preciosa que cada pessoa tem para encontrar segurança e caminhar na vida superando as dificuldades e os inevitáveis conflitos.
Com confiança em si e na rocha do próprio interior, todas as forças vitais se acham disponíveis para crescer dia a dia, para a pessoa se tornar aquilo que originalmente é chamada a ser.
De “petros” a “petra”: esse é o des-velamento que acontece em todo seguidor de Jesus quando escuta e vive sua Palavra, proclamada no Sermão da Montanha.
Nossa identidade profunda é constituída pela fragilidade/petros e pela fortaleza/petra. Só no encontro com Aquele que é a Rocha firme é que transparece a “petra” que está oculta em nosso interior.
A pergunta de Jesus, dirigida a Simão Pedro, deve ter uma profunda ressonância em todos nós; aqui, o decisivo não é o quanto sabemos d’Ele, nem que doutrinas ou teorias sobre Ele seguimos, nem qual é a nossa teologia sobre Ele. Para Jesus lhe interessa mais “o significado, o sentido de Sua Vida em nossas vidas”.
Muitas vezes a própria comunidade cristã está muito mais preocupada com a “ortodoxia doutrinal” e não se empenha em revestir-se da Vida de Jesus. Há mais condenações doutrinais que condenações de falta de vivências. É preciso “mais evangelho e menos doutrina” (Papa Francisco).
A fé implica ideias e doutrinas. Mas a fé não é crer em doutrinas; é crer em “Alguém”; e, crer em Alguém que seja o centro de nossas vidas, em Alguém que inspira as nossas vidas, em Alguém que dê sentido ao que fazemos e como fazemos.
Começamos a ser cristãos quando nos deixamos impactar pela pessoa de Jesus e decidimos seguir seus passos e viver como Ele viveu. Podemos saber muita teologia sobre Jesus e ter uma vivência d’Ele muito pobre. O que importa é o “Jesus Vida e na vida”.
Todos estamos seguros de que Jesus é o centro de nossas vidas, mas não nos atrevemos a nos questionar por dentro. Com isso, nosso seguimento vai se esvaziando e se tornando pura normatividade.
Para aprofundar nossa fé em Jesus, é preciso nos perguntar constantemente por ela: que significado Ele tem em nossas vidas? Que implicações tem no nosso cotidiano o modo de ser e de viver de Jesus?
Porque não basta dizer que cremos nele; é preciso perguntar-nos: em que Jesus cremos e quem é Ele para nós? Tal pergunta nos conduz a uma identificação com o estilo de vida d’Ele. Afinal, somos seguidores de uma Pessoa e não seguidores de uma religião, de uma determinada igreja, de doutrinas, de ritos...
Evidentemente, Jesus não “instituiu” nenhuma “estrutura eclesial” propriamente dita, nem uma doutrina, uma liturgia, um governo... Jesus pôs em marcha um movimento que, através de muitas circunstâncias e adversidades históricas, desembocará em igrejas organizadas e, muito mais tarde, em uma Igreja centralizada, com uma estrutura hierarquizada e com poder.
No entanto, a verdadeira comunidade cristã é aquela que se deixa conduzir pelo mesmo Espírito do Ressuscitado, soprado sobre cada um dos seus seguidores(as); ela é o ambiente propício para personalizar a fé e vivê-la como con-vocação e co-responsabilidade com os outros; ela é o espaço privilegido para reforçar os laços de verdadeira amizade, interna e externa; ela é o lugar extremamente válido para a formação de cristãos comprometidos com a causa do Reino e com a evangelização de seu meio.
O Papa Francisco vem pedindo insistentemente à Igreja sua conversão sinodal. Muitos nem sabem o que isso significa; outros resistem a qualquer mudança. Mas, na realidade, estamos vivendo uma mudança de época, favorável à conversão sinodal, uma mudança urgente.
Que a Igreja seja “sinodal” é de sua essência mesma como Comunidade de seguidores(as) de Jesus. A conversão sinodal é retomar o início fundamental da mesma Igreja. São séculos de história onde houve um caminhar de outra forma. Sua conversão, portanto, é urgente e inadiável.
“Sinodal” significa “caminhar com”. Em grego, “sin” é “com” e “odos” é “caminho”. A Igreja é Sinodal porque a totalidade de seus membros, todos e todas “caminham uns com os outros”, muito unidos. Todos e todas são iguais em seu valor, sua dignidade, são ativos e participativos... Isso implica ter uma capacidade de escuta mútua, ativar o espírito de discernimento, tomar decisões buscando o bem de todos.
O cristão deve estar imbuído de mentalidade profundamente eclesial, de maneira que o seu sentir, pensar, falar e agir entre em sintonia com o sentir, pensar, falar e agir da grande comunidade cristã.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
29.06.2024
“Passemos para a outra margem” (Mc 4,35)
No relato evangélico deste domingo (12º do Tempo Comum), Marcos prepara a cena desde o início; diz-nos que era “ao cair da tarde”. Logo descerão as trevas da noite sobre o lago de Genesaré. É Jesus quem toma a iniciativa daquela estranha travessia: “passemos para a outra margem”. A expressão tem forte sentido: Ele convida os discípulos a passarem juntos, na mesma barca, para outro mundo, para além do conhecido: a região da Decápole.
Na vida de Jesus de Nazaré, segundo o evangelho de Marcos, a “outra margem” é, sobretudo, território pagão e desconhecido. Está próxima, pode-se ver suas colinas a partir do lado de cá do lago. Mas, as pessoas do outro lado estão distantes: distintas pela cultura e religião, pelas tradições e maneiras de viver.
Para a comunidade pós-pascal, como para Jesus, “passar para a outra margem” implica todo um deslocamento para sair da “margem” rotineira e conhecida, ir ao encontro dos outros e descobrir ali os caminhos do Evangelho. Pois, Jesus não se desloca à outra margem com a rota já estabelecida e com as respostas preparadas. Ele é o “homem da margem”, pois aprende com o diferente e se deixa transformar em sua visão de Deus e sobre o Reino, como no encontro com a mulher cananéia.
No fundo, “passar para a outra margem” é, para Jesus um prolongamento do dinamismo da própria Encarnação, quando cruzou a fronteira, a mais radical, aquela que separa as margens aparentemente mais distintas: a do divino e do humano. A Encarnação é expressão de um Deus que sai de si e atravessa fronteiras, não por necessidade, mas por amor, porque lhe move um desejo irrefreável de relacionar-se, de ser-conosco, de “fazer morada” no interior do ser humano.
Assim, a Encarnação revela-se como uma ousada “travessia” do Deus que se humaniza; identificados com o “Deus em contínua travessia”, também nós, na essência somos “seres de travessias”. Por isso, o apelo “passemos para a outra margem!” indica duas coisas importantes. A primeira é que a expressão “passemos” está manifestando uma vontade de colocar-nos em movimento. Ou melhor, de começar a mover-nos. A segunda indica a direção da marcha: para onde é preciso ir? “À outra margem”.
Isso significa que há duas margens, e que nós estamos numa, onde até agora nos encontrávamos tranquilos e seguros. É nosso “ninho”. Agora, no entanto, descobrimos uma inquietação interior que nos impulsiona a “sair”, a nos deslocar para o outro lado; não estamos a gosto aqui, do lado de cá. Esta inquietação nos diz, de alguma maneira, que no nosso desejo já atingimos a “outra margem”, embora não a tenhamos pisado ainda. Começamos a pressentir que ali há algo mais importante e desafiante, e que não temos do lado de cá; é necessário mobilizar-nos... e “sair”.
Para fazer a travessia é preciso “remar mar adentro”. Porque adentrar-nos não é ter chegado. É algo inacabado e em processo. Fala do sentido do êxodo, de viver em trânsito e em um permanente movimento de busca que leva conosco certa incerteza: deixamos de ver o lugar do qual procedemos e ainda não vemos o lugar ao qual vamos chegar.
“Passar para a outra margem” tem muito de “adentrar-nos”, ou de submergir-nos, de empapar-nos, de molhar-nos, de deixar-nos levar mais para dentro do mar da vida das pessoas, para descobrir aí o novo, o diferente, os “traços” originais d’Aquele que já fez a travessia e nos espera do outro lado.
Ao mesmo tempo, somos desafiados também a nos adentrar no mar dos desafios de nosso mundo, com seus dramas e carências, para ajudar a sanar suas feridas e estabelecer uma rede de solidariedade. Somos convidados também a montar tendas leves nas encruzilhadas dos caminhos inexplorados e a descobrir a geografia dos “aforas” como uma fonte de revelação. Assim, passar para a outra margem é acolher o que nos é oferecido com gratuidade.
A imagem da “travessia” do lago de Genesaré é também reveladora de nossa “travessia” no mar interior. Como toda travessia, a da nossa interioridade também não é pacífica; os desafios e as dificuldades estão expressos nas imagens de vento forte, ondas impetuosas, barco instável. Nosso eu profundo - “a barca” -, mesmo atrevendo-se a sair de seu mundo habitual, experimenta um movimento forte das ondas ameaçadoras no qual teme afundar-se sem saída. Mas, não podemos evitar de pensar e dar espaço dentro de nós ao fato tão simples e tantas vezes esquecido de que há “outra margem”, outra perspectiva, outro olhar...
Entendemos que se trata de uma experiência original, que mobiliza nossos melhores recursos e que ativa nossa criatividade. Nosso amadurecimento no seguimento de Jesus se dá através da “travessia” da margem do nosso “ego” (autocentrado, fechado aos outros...), à outra margem que é a de nossa identidade profunda. Por isso, a primeira margem é “fechada”, pois tem os mesmos limites que o ego, enquanto a segunda é ilimitada. Na margem antiga controlamos tudo a partir da primazia do ego; na nova margem, entramos no fluxo da Vida mesma e que se expressa em tudo e que esvazia o ego de seu protagonismo anterior.
Nossa margem interior é mais libertadora, não tem tantos pré-juízos, nem tantas feridas e complexos.
Que bonita é a outra margem quando nos aderimos à pessoa de Jesus que, serenamente descansa em nosso barco da vida! Ele, com sua presença, estabelece a calma só com sua palavra. Imediatamente, frente tal qualidade de presença, o mar se torna pacificado, e o medo angustiante se converte em confiança admirada e agradecida.
Cruzar nosso lago existencial com Ele é uma experiência chave para partilhar o que somos e o que temos. Como “seres de travessias”, vamos criando um estilo de vida que vai dando sentido à nossa vida cristã envelhecida, normótica e sem inspiração.
Para sairmos de nossa comodidade temos de nos deixar comover pelo sofrimento das pessoas e pelos clamores que vem da “outra margem”. E isso não é fácil numa sociedade que nos anestesia, nos atordoa e embota nossa sensibilidade. Não se trata só de ir à outra margem, mas de “deixar-nos conduzir”, ou seja, não podemos nos deslocar a partir de nossos próprios planos, a partir de nossas próprias forças.
Como seguidores(as) d’Aquele que se “fez travessia”, somos chamados(as) a nos re-inventar, a aventurar-nos por mares desconhecidos, a navegar para a “outra margem”, para uma terra nova...
Quem se sente fascinado pelo mar acaba por descobrir a maneira de construir barcos e de navegar.
Para isso é indispensável uma forte dose de ousadia... Não pode fugir, nem trair. É preciso ousar para não perecer; é preciso aventurar-se e arriscar o primeiro passo; é preciso peregrinar infatigavelmente para dar origem a uma nova humanidade; é preciso ser nômade seduzido por novos horizontes.
“Tudo que valeu a pena, inicialmente me aterrorizou” (Betty Bender)
Pergunte a um velejador quais os seus melhores momentos no mar e ele lhe contará sobre um perigo que o colocou diante de seus limites. O medo e o prazer caminham juntos. Eles se fundem no desafio. O mar da vida é o lugar do novo, do risco, da coragem e da ousadia. A vida consiste na constante aventura de ousar.
Texto bíblico: Mc 4,35-41
Na oração: Para viver em atitude de “travessia” é preciso estar em eterna vigilância; e, ao mesmo tempo, abrir-se a um constante assombro e gratidão, porque cada manhã é um milagre. Só vive a travessia quem está desperto, entre o realismo e a esperança.
-Que está acontecendo com os cristãos de hoje que, diante de tantos desafios, sentem medo de fazer a travessia e se escondem atrás de ritualismos vazios, devoções estéreis, práticas religiosas egóicas que não desembocam no compromisso com aqueles que “estão do outro lado, à margem”?
- Por que buscamos segurança no conhecido e no estabelecido no passado, e não escutamos o chamado de Jesus a “passar para a outra margem” para prolongarmos seu modo de ser e viver, aberto ao novo e diferente?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
21.06.2024
“... e a semente vai germinando e crescendo, mas o agricultor não sabe como isso acontece”
A Natureza nos mostra muitos caminhos, simples e belos, que nos ajudam a sermos mais humanos, se tivermos um olhar atento e contemplativo, como o olhar sensível de Jesus. Suas parábolas deixam transparecer que Ele foi um homem com os “pés afundados na terra”, vivendo uma relação sadia e agradecida com todas as criaturas. Em tudo sentia a presença providente e cuidadosa do Pai.
A Terra tem seu ritmo, sua sinfonia, onde todos os elementos que a compõem, convivem numa perfeita harmonia e integração. A relação com a terra desperta nossa sensibilidade, nos ajuda a ser melhores, mais sensíveis, mais pacientes, mais amáveis, mais observadores. A relação com a terra fortifica nossas raízes para que nossa relação com as pessoas e as criaturas seja melhor, nosso respeito ao meio ambiente seja mais profundo e espiritual.
Segundo a tradição oriental, quanto mais baixo estiver o corpo, mais feliz fica a mente.
O ocidente deseja que as pessoas pensem no céu, e alonguem a cabeça no ar para fazê-las olhar para cima e ver as nuvens. O oriente sabe que a melhor maneira de chegar ao céu é estar solidamente na terra, e por isso convida as pessoas a se agacharem ou se assentarem no chão. A postura cômoda, literalmente na terra, é condição para a paz interior. As pessoas são devolvidas às fontes terrenas.
Ao encontrar-se com a mãe-terra a pessoa é impulsionada para as experiências transcendentais.
Quanto mais proximidade e intimidade com a terra, mais profunda é a experiência espiritual.
Na Índia, quando as pessoas se levantam, sua primeira oração é juntar as mãos e pedir perdão à Mãe Terra por pisá-la. Que não haja ofensa no contato necessário com o chão, mas intimidade.
Em casa, as pessoas sempre andam descalças. O pé nu acaricia a terra que pisa, agradecendo o apoio e mostrando sua confiança. Cada passo deve ser uma oração e cada caminhar é um rosário de contas que marcam os caminhos da vida com a fé do caminhante. Dá força e inspiração sentir-se junto à terra, palpar sua firmeza, medir sua intensidade. Cada chão tem uma palavra a lhe dizer, um valor a preservar, uma mensagem a acolher. É o altar cósmico sobre o qual celebra-se diariamente a liturgia da vida.
Todas as religiões e culturas se servem de relatos para revelar a verdade e fazer chegar até nós a sabedoria de nossos antepassados. A revelação mais antiga e universal é que a Terra e todas as suas criaturas, assim como o ar, o solo, a água são sagrados, e que esta verdade deve refletir-se em nossas vidas.
Como cristãos, seguir Jesus Cristo hoje é adquirir conhecimento e experiência consciente desta história oculta e sagrada. Com efeito, a Terra acolheu Jesus como acolhe toda pessoa que vem a este mundo. É a casa verdadeira, a mais básica. Jesus sentiu a companhia desta Terra que é irmã e mãe.
Os Evangelhos destacam, de muitas maneiras, a boa relação que Ele teve com a Terra. Jesus soube viver as noites e empregá-las, para além de sua solidão e aspereza, para encontrar sentido e para dar profundidade às suas atuações mais decisivas. Desfrutou dos caminhos andados, dos campos semeados, do vento que se assemelha ao Espírito, das árvores que empregará como parábolas do Reino, das vinhas que serão símbolo de sua oferta em novidade... Experimentou a dureza da Terra, sua aspereza no deserto e o calor de seu abrigo à hora da morte; pisou o chão de terra batida, machucada, rasgada... Teve uma mentalidade inclusiva porque, no fundo, entendeu que tudo estava relacionado e que as coisas e as pessoas buscam o mesmo horizonte.
Nas duas parábolas deste domingo (11º Dom do Tempo Comum), o crescimento da planta não é consequência de uma ação externa, mas a expansão dos elementos que já estavam presentes nela. Este aspecto é muito importante, por duas razões:
a) Porque nos adverte que o importante não vem de fora, mas de dentro;
b) Porque nos motiva a pensar não em algo estático, mas num processo que não tem fim, porque sua meta é o mesmo Deus.
Assim, as duas parábolas possibilitam fazer uma dupla leitura. Em primeiro lugar, pode ser aplicada a cada pessoa, enquanto está no mundo para expandir suas potencialidades até a plenitude, que deve ser alcançada através de sua vida. E, também, pode ser aplicada às comunidades e à humanidade em seu conjunto.
A partir do que cada um é no núcleo de seu ser, deve ativar todas as possibilidades sem pretender saber de antemão onde o levará a experiência de viver. Na vida espiritual é ruinoso prefixar metas às quais temos de chegar. É preciso, portanto, expandir a vida que, como tal, é imprevisível, porque toda vida é, antes de tudo, resposta às condições do seu entorno. Não podemos pretender nenhuma meta, mas abrir-nos às surpresas da vida e caminhar sempre para frente.
Em cada uma das parábolas, Jesus quer destacar um aspecto dessa realidade potencial dentro da semente. Na primeira, sua vitalidade, ou seja, a potencialidade deve desenvolver-se por si mesma. Na segunda, Ele quer destacar a desproporção entre a pequenez da semente e a planta que dela surge. Parece impossível que de uma semente quase imperceptível possa surgir, em pouco tempo, uma planta de grande porte.
A semente se desenvolve por si só, mas precisa humidade, luz, temperatura e nutrientes para poder expandir sua vitalidade latente. A semente com sua força está em cada um de nós. É a “semente divina” que está semeada em cada um de nós. Ela precisa desenvolver-se e fazer-se visível externamente. Só espera uma oportunidade. Devemos nos favorecer de condições mínimas indispensáveis para que nossa semente interior possa expandir sua própria energia. Caso não se desenvolva, a culpa não será da semente, mas nossa.
O tempo e o ritmo de crescimento não são os mesmos para todos. A ansiedade e a pressa podem frustrar-nos de produzir fruto sem ter passado pelas etapas de crescimento como talo, logo a espiga e por fim o fruto. No fundo da ansiedade há um desejo de sermos deuses ilimitados, de fazermos tudo imediatamente, de experimentarmos tudo sem perdermos nada, de termos tudo sob controle, sem que nada escape ao que foi planejado.
Também a vida espiritual tem seu ritmo e é preciso seguir os passos em sua ordem. A maioria das vezes nos desanimamos porque não vemos os frutos de nosso esforço. Devemos ter paciência. Cada passo que damos é uma conquista e nele já podemos apreciar o fruto, embora nos pareça que não chega nunca.
As duas pequenas parábolas deste domingo não dão nenhuma ênfase no fazer ou deixar de fazer. Ninguém tem o direito a dizer a outro o que tem de fazer ou deixar de fazer. O importante está em descobrir o que somos e atuar ou deixar de atuar segundo as exigências de nosso verdadeiro ser.
Diziam os antigos que o agir segue o ser. Devemos esquecer das muitas cobranças e normas que cumprimos mecanicamente e abrir espaço para que aquilo que nos faz mais humanos surja do mais profundo de nosso ser e não de programações que venham de fora.
Texto bíblico: Mc 4,26-34
Na oração: A Palavra de Deus nos convida a pousar-nos amorosamente em cada coisa, em cada pessoa, em cada atividade. Se agíssemos assim, bastariam a brisa, a luz, uma flor, um sorriso, uma atividade qualquer... para sermos felizes. Deus espera que procuremos crescer com empenho, mas também com um coração sereno e sem angústias, com paciência e calma, sob seu olhar de amor. Ele sabe esperar as mudanças profundas que vão se verificando pouco a pouco.
Curriculum vitae” significa o “percurso da vida”, e não “a vida em correria”.
- Em seu interior, quais potencialidades e recursos estão à espera de uma oportunidade para se expandir?
- Você vive a partir das “raízes” do seu ser ou é manipulado(a) pelas cobranças externas? Recebe a seiva divina, em abundância no seu eu profundo, ou se alimenta dos venenos que provém do exterior: mentiras, ódio, intolerâncias, racismos, preconceitos...
- Os “frutos” que brotam do seu terreno interior são saudáveis, inspiradores, tornando-o(a) mais humano(a)?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
13.06.2024
imagem: O Semeador - Albin Egger Lienz
“E olhando para os que estavam sentados ao seu redor, disse: ‘aqui estão minha mãe e meus irmãos”
O evangelho de Marcos tem como preocupação fundamental responder à pergunta: “Quem é Jesus”. Porém, o evangelista não elabora teorias cristológicas, mas visa despertar nos leitores uma adesão e identificação com o Mestre da Galileia.
No evangelho deste 10º domingo do Tempo Comum, Marcos revela a identidade de Jesus através de diferentes temas: a multidão que se reúne junto à casa onde Ele se encontrava, a reação de seus parentes que querem sequestrá-lo, os mestres da lei que o acusam de estar possuído por Belzebu, o pecado contra o Espírito Santo, a chegada de sua mãe e irmãos, a nova família que se reúne em torno a Ele... Embora pareça não haver uma relação e uma lógica interna no texto, estes temas tem um ponto em comum: a presença inspiradora e provocativa de Jesus. Não é mais possível permanecer neutro diante do seu modo de ser e viver, de sua liberdade, de sua transparência, de sua abertura à diversidade, de sua profunda sintonia com o Pai. Por isso, de um lado, a reação da multidão, seduzida pelo novo ensinamento de Jesus; de outro, a reação de seus familiares e escribas que não o compreendem: querem sequestrá-lo ou o acusam de fazer pacto com “belzebu”.
Jesus, desde o seu batismo, foi apresentado como o Filho de Deus, a quem todos deveriam escutar. Ele foi constituído mediador da salvação divina oferecida a toda humanidade. Suas palavras e ações, porém, tinham como princípio dinamizador o Espírito Santo, força de Deus que atuava n’Ele.
A atitude de seus parentes, que o acusavam de louco quando viram as multidões acorrerem a Ele, e a interpretação dos mestres da Lei que viam nele o poder de “belzebu”, chocava-se com a realidade da ação divina em Jesus. Isso significava negar que o Espírito Santo agia n’Ele e atribuíam ao demônio o que pertencia ao Espírito de Deus. Eis uma autêntica blasfêmia!
As acusações contundentes levantadas contra Jesus deixavam transparecer um fechamento radical à ação do Espírito. Assim como Jesus agia pela força do Espírito, do mesmo modo só quem se deixa iluminar pelo Espírito pode agir como Jesus. Quem se fecha ao Espírito, torna-se incapaz de discernir a manifestação da misericórdia de Deus, em Jesus. Fechar-se para Ele, portanto, significa fechar-se para Deus e, por conseguinte, tornar-se indigno de perdão.
Se Jesus nos alerta severamente sobre a “blasfêmia contra o Espírito Santo” é porque este pecado consiste precisamente na atitude petrificada diante da ação de Deus em nós, permanecendo desamparados, sem ninguém que nos defenda do erro e do mal. Os blasfemos se excluem a si mesmos do perdão, se separam do Espírito de Deus. Trata-se de uma clara opção fundamental pelo mal, impedindo o Espírito Santo de agir. O pecado contra o Espírito Santo não é simplesmente um ato, mas uma atitude contínua de resistência, uma cegueira radical, uma petrificação interior que bloqueia toda possibilidade do perdão de Deus.
O Espírito é a força que sustenta a nova comunidade que Jesus instituiu com seu projeto messiânico; por isso, pecam contra o Espírito aqueles que negam e rejeitam sua ação libertadora em favor dos excluídos e dos pobres. Dura foi a acusação contra Jesus; duríssima foi sua resposta. Negando-se a acolher a obra de Deus, os mestres da lei se destroem a si mesmos. Ao afirmar que Jesus “tem um espírito impuro”, eles não o rejeitam simplesmente, mas rejeitam e negam a obra salvadora de Deus em favor daqueles que são vítimas de uma sociedade injusta.
O Espírito é uma força que atua em nós e que não é nossa. É o próprio Deus inspirando e transformando nossa vida. Ninguém pode dizer que não está habitado por esse Espírito. O importante é não o apagar, avivar seu fogo, fazer com que arda purificando e renovando nossa vida.
Com a presença desta força interior, a pessoa se sente guiada pelo seu dinamismo, que lhe proporciona saúde física, lucidez mental e limpidez afetiva. É esta força que comanda os melhores momentos da vida humana como um princípio ativo, dinâmico, criativo... Tais forças primordiais, vitais, presentes nas diferentes etapas do crescimento, são essenciais ao ser humano, graças às quais ele se orienta diante das solicitações da vida pessoal e das múltiplas escolhas, constrói a sua vida pessoal e chega ao seu amadurecimento; elas assistem e sustentam o ser humano no caminho da maturidade para a plenitude do seu ser.
O mesmo Espírito, que atuava livremente em Jesus, sustenta os vínculos entre seus seguidores, constituindo a sua “nova família”.
O Reino de Deus, anunciado por Jesus, estabelece laços profundos entre aqueles que assumem seu projeto de vida. Estes laços fazem dos discípulos do Reino uma grande família, não unida pelos vínculos do sangue e, sim, pela sintonia com a vontade do Pai. A comunidade dos seguidores de Jesus, então, pode ser definida como a família do Reino, cuja característica são os laços fraternos que unem seus membros.
Assim, a ligação entre Jesus e os seus(suas) seguidores(as) é muito mais profunda do que a sua convivência física com eles. Havia algo de superior que os une, sem estar na dependência de elementos conjunturais, quais sejam, a pertença a uma determinada família, raça ou cultura.
Para Jesus, estes são seus irmãos, suas irmãs, suas mães. São irrelevantes outros títulos de relação com Ele, quando falta este pré-requisito. O critério estabelecido por Jesus possibilita a todo discípulo do Reino, em qualquer tempo e lugar, saber-se unido a Ele como a um ser querido muito próximo. Por conseguinte, é sempre possível estabelecer laços com ele pela via da afetividade.
Ser “irmão” ou “irmã” de Jesus tem sua razão de ser; mas, ser sua “mãe” parece inexplicável. No entanto, podemos buscar uma luz no mais simples e cotidiano da vida, ou seja, o que acontece na gravidez: desde o começo e de maneira progressiva, todo o interior da mãe, as paredes do seu útero, vão se ampliando para deixar um espaço cada vez maior ao bebê que está crescendo dentro dela e que precisa mover-se e desenvolver-se.
Partindo desta imagem, podemos dizer que, para nos tornar “mãe de Jesus”, precisamos liberar espaços em nossa vida, “empurrando para trás” aquilo que não nos deixa expandir e crescer. Concretamente, trata-se da vivência cotidiana do amor, no sentido de abrir lugar para os outros, de deixá-los passar primeiro, de ampliar nossa própria interioridade para que eles possam ser como são e mover-se facilmente. Descobrimos que é preciso esvaziar-nos de falsas seguranças, desapegar-nos, remover costumes, relativizar coisas...
Certamente haverá algum sinal de vida querendo crescer e abrir caminho em nosso ser profundo.
Assim, o evangelista Marcos distingue dois tipos diferentes de “irmãs”, “irmãos” e “mães” de Jesus: aqueles que estão “fora” e aqueles que estão “dentro”, no círculo. O grupo que está em torno a Jesus goza de uma grande intimidade, de uma proximidade espacial e de sintonia com o coração d’Ele. Jesus, o Mestre, ocupa o centro e a multidão, numa atitude de escuta, situa-se em torno a Ele.
O relato do evangelho deste domingo finaliza priorizando a irmandade e situando o homem e a mulher em plano de igualdade. A imagem do círculo simboliza: vínculo com Jesus (identificação) e vínculo com os outros (diferentes serviços). A circularidade facilita estabelecer a igualdade; aqui não há hierarquia, nem imposição de uns sobre os outros. A igualdade é o lugar privilegiado, o único lugar. Todos vivem serviços diferentes, inspirados pelo modo de ser e viver do mesmo Jesus.
Texto bíblico: Mc 3,20-35
Na oração: Muitas vezes, nossas vidas giram em torno àquilo que dá a sensação de segurança: riqueza, vaidade, poder, prestígio... Outras vezes, giram em torno a ídolos ou mitos com “pés de barro”.
- Em torno de quê ou de quem gira sua vida?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
06 de junho de 2024
“Estende a mão!” (Mc 3,5)
Retornamos ao tempo litúrgico conhecido como “Tempo Comum”, depois de termos feito o percurso do Tempo Quaresmal e do Tempo Pascal. Neste ano “B”, seguimos o evangelista Marcos.
O evangelho deste domingo nos motiva a fazer caminho com Jesus, que se revelou profundamente livre diante das tradições religiosas judaicas; o relato que a liturgia nos propõe encontramos Jesus “transgredindo” a lei do sábado em duas situações diferentes: uma no campo, onde os discípulos colhiam espigas de trigo para comer e outra na sinagoga, onde o próprio Jesus se encontra com um homem de mão atrofiada, excluído, carente de energia e vitalidade.
A sinagoga era o lugar onde se recordava e se celebrava o Deus que havia conduzido o seu povo “com braço estendido e mão forte” para a terra da liberdade; agora se converteu em um lugar onde a Lei afoga a liberdade dos filhos de Israel. A sinagoga se transformou no espaço onde se gera submissão, medo e escravidão; em vez de pôr as pessoas de pé, a caminho de uma nova Páscoa, atrofia seus braços e as paralisa; ela deixa de ser lugar de celebração da vida para ser lugar de exclusão, de indiferença e preconceito.
O sentido do sábado era este: dia de festa pelo bem-estar (Shalon) de todas as criaturas, dia da comunhão universal, do repouso da Criação em Deus. No entanto, a casuística e o legalismo farisaico fizeram da libertação um jugo e da festa um pranto.
Na sinagoga Jesus expressa sua dor e sua profunda irritação porque lhe dói a dureza de coração daqueles que fizeram de Deus uma propriedade privada e da sinagoga, uma garantia de seus interesses.
Jesus vai converter a sinagoga em lugar de vida para o filho de Israel paralisado; coloca-o de pé, estende-lhe a mão, leva-o para o meio, devolve-lhe a capacidade de decisão...
No centro da sinagoga, ao lado do “Santo” (espaço em que são conservados os livros sagrados), há uma elevação, o púlpito, onde fica quem preside e quem faz a leitura. O “centro” é, pois, o espaço que atrai as atenções de todos. É daí que, “paramentado”, o leitor proclama o texto da Torá e dos Profetas, seguido da pregação. Normalmente os doutores da Lei é que ocupavam a tribuna para fazer a pregação.
O centro, portanto, é o lugar mais importante (e sagrado) da sinagoga, o lugar de onde a Torá ilumina a conduta do ser humano.
O homem da mão seca certamente estava sentado (“levante-se”) quando Jesus lhe ordena “ocupar o lugar da Torá”. Uma pessoa deficiente é o centro de todas as atenções. Em vez de ler a Torá, Jesus provoca a assembleia a fazer outra leitura – a leitura da vida de um homem estigmatizado pela má interpretação da lei. Em outras palavras, trata-se de permitir que fale o espírito da Lei, e não sua letra. Jesus provoca seus adversários, acusando-os de transformar o sábado em dia de opressão, a festa em dor.
Para o homem da mão seca, ocupar o “centro” não era apenas dar uns passos rumo ao meio da sinagoga.
Certamente Jesus pretendia que ele encontrasse o próprio centro, que reconhecesse a própria dignidade de ser humano, que descobrisse o “eixo” da própria vida, assim como o ser humano foi criado como centro de toda Criação. Não é a mão seca que diminui ou suprime a dignidade do ser humano, como não são as mãos sadias a incrementá-la ou garanti-la. O deficiente foi convidado a viajar para o próprio centro à procura de sua “alma”, seu eixo, seu “eu interior”. Com isso pode estender o braço, mostrar a mão, sem medo de dizer “eu sou gente”. Aí se dá a cura total da pessoa.
Para que possa ser curado, ele precisa encarar sua deficiência, precisa tornar-se o centro das atenções, não pode se esconder dos olhares dos outros. Jesus exige que faça exatamente aquilo que sempre tentou evitar: colocar-se no centro, ser observado e considerado.
Mas, Jesus queria atingir também a assembleia e os defensores do legalismo do sábado. Agora põe como ponto de partida para todas as leis uma pessoa concreta, com suas necessidades especiais.
Quando ordena ao deficiente físico ocupar o centro, Jesus pretendia atingir tanto o doente quanto os que, embora fossem fisicamente sãos, eram profundamente doentes de fundamentalismo e legalismo.
O sábado nasce como dia de comunhão com Deus e com as pessoas, como festa pela vida que percorre a vida de todos. Enquanto uma criatura de Deus estiver privada de liberdade e de vida, o sábado e a festa terão sempre o gosto amargo da exclusão e do preconceito.
Os letrados e fariseus de hoje também não se alegram quando o favor, o perdão e a misericórdia de Deus se aproximam dos pecadores e excluídos. Eles têm prazer doentio em impor sobre os outros “pesados fardos”, ritos vazios, mortificações e penitências que alimentam culpa...
Há concepções de “Deus” que matam a festa, a alegria e o prazer de celebrar a vida; há homens e mulheres piedosos que não sabem de banquete, de dança e de alegria. Há pessoas que não suportam a ternura e a compaixão de Deus; parece que estão cheias de ressentimentos e frustrações, como se a experiência de Deus não fosse uma experiência prazerosa e vivificante. Não suportam a alegria dos outros, não se alegram pelo fato de que os pecadores tenham festa e perdão, os solitários tenham companhia, os atrofiados recuperem sua liberdade e autonomia. Determinadas concepções de “Deus” provocam atrofia do coração.
O homem da “mão ressequida” é um personagem significativo. Jesus não hesita em transgredir o preceito sabático e declara o supremo valor da vida. Temos aqui um homem impedido, pela atrofia e pelos preconceitos religiosos, de exercer sua vida plena, sua autonomia e, provavelmente, de participar integralmente do culto judaico. Lucas especifica ser a mão direita. A mão é símbolo da força e da liberdade: através das mãos é que são realizados os trabalhos: “dos trabalhos de tuas mãos hás de viver” (Sl 128,2); também na oração elas são meios de expressão: “à noite estendi a mão, sem descanso” (Sl 77,3).
Em termos antropológicos, ter as mãos atrofiadas pode significar ausência de liberdade, de autonomia. Machucar ou quebrar a mão ou o braço impede o exercício de funções e cria dependências. Ficar de pé e ter a mão curada está em oposição à interpretação do sábado proposta pelos fariseus e doutores da lei que criavam impedimentos, tolhendo a maturidade e a autonomia dos fiéis perante o culto e a sociedade. Jesus é o Senhor do sábado e liberta o homem para o exercício da vida plena: trabalho e celebração, fé e vida.
O Evangelho deste domingo também nos motiva a descer e transitar pela nossa sinagoga interior, em companhia do Senhor; ali encontraremos dimensões da vida que estão atrofiadas: nossa auto-imagem, sentimentos negativos, rejeições, feridas, fracassos... que, embora dentro da sinagoga, estão em um canto, escondidas dos olhares dos outros. Tais situações consomem energia e esvaziam o fluir da vida.
O que é mais desumanizante e trágico não é ter mãos atrofiadas, mas ter mentes e corações bloqueados pelo negacionismo, intolerância, preconceito... Mentes atrofiadas são geradoras de mentiras (fake news) e incapazes de uma visão mais crítica da realidade; mentes manipuladas por aproveitadores de plantão; mentes incapazes de discernimento e de criar algo novo... Corações atrofiados são fonte de rigidez, de insensibilidade, de falta de compaixão; corações de pedra que só expelem veneno e impedem toda possibilidade de encontro e de acolhida; corações incapazes de bombear uma só gota de amor, mas só injetam veneno nas relações familiares, sociais, religiosas, carregando o ambiente de violência, exclusão e ódio.
E Jesus mete o dedo na chaga daqueles que são “duros de coração”. Ele os chama de hipócritas, pois sabem manejar a lei segundo seus próprios interesses, mas incapazes de compaixão. O que Jesus não suporta é a falta de compaixão dos “piedosos”, “lobos revestidos em pele de cordeiro”.
Texto bíblico: Mc 2,23-3,6
Na oração: A narrativa deste domingo nos convida a encarar a nossa vida e parar de nos esconder por trás de outros; nos encoraja a arriscarmos, pois somente assim poderemos lidar com os conflitos com os quais somos confrontados e dos quais não devemos fugir.
- Na “sinagoga” que é você (pensamentos, emoções, reações, dizeres, olhares, conhecimentos, atitudes), o que está paralisado? atrofiado?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
29.05.2024
imagem: James Tissot
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