“Não tenhais medo! Eu vos anuncio uma grande alegria, que o será para todo o povo:
hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor” (Lc 2,10-11)
A celebração do Natal deste ano tem um sabor todo especial; podemos vivenciá-lo inspirado no “Ano Jubilar da esperança” - 2025-, cuja abertura acontecerá oficialmente no dia 29 de dezembro/24.
Tudo aponta para o Eterno que nos escapa e nos encontra. Aqui a imaginação entra em ação: diante d’Aquele que é “Luz da esperança”, podemos dar sabor à nossa vida, muitas vezes modesta e simples.
A esperança tem raízes na eternidade, mas ela se faz visível nas pequenas coisas. Nos despojados gestos ela floresce e aponta para um sentido novo. É preciso um coração contemplativo para captar o “mistério” que nos envolve. É preciso um “coração de pastor” para ver numa Criança a presença do Inefável.
Na verdade, “entrar” na Gruta do Nascimento de Jesus é sempre um chamado à esperança. Esperança que não é uma projeção para um futuro incerto e que serve apenas para fugir do presente ou para poder “suportá-lo”. Por este motivo, não podemos entender a esperança como mera “expectativa” que nos afasta do presente cotidiano, na promessa de algo que nos faça sentir melhor, em outro tempo e em outro lugar.
A autêntica esperança nos enraíza no presente. Porque, realmente, só há uma esperança: aquela que corresponde ao desejo de viver intensamente o “Hoje eterno” de Deus. Essa é a única coisa que aspiramos: reconhecer-nos e viver na Plenitude do que é, no presente pleno, na presença que somos. Presente que se abre ao novo futuro. E para este “novo tempo” nos dirigimos quando nos permitimos viver no coração do presente, quando nos deixamos encontrar por ele.
Na contemplação do Nascimento do Menino Jesus, a noite pode espantar, mas também pode ser chance para ver melhor; a morte pode ser ameaçadora, mas ela ensina a viver; o cotidiano pode parecer vazio, mas ele aponta para a eternidade; o infinito pode suscitar inquietação, mas consegue impulsionar para o além, até acender no coração uma chama persistente: a esperança.
Para além daquilo que possa ocorrer na superfície da história pessoal e coletiva, há uma realidade estável que nos sustenta e que podemos experimentá-la como “rocha firme” sobre a qual firmar nossos pés.
A esperança, portanto, é como esse impulso que desafia o presente imediato e finca raízes no futuro novo; é ela que nos permite escrever nossa história com mais criatividade e ousadia, nos abre à invenção de possibilidades que nos fazem viver com mais sentido, integra o passado e nos faz recomeçar, mantém a coragem de ser, nos mobiliza a passar das puras exigências e das simples necessidades para o dinamismo do dom e do desejo. Na esperança, encontramos a abertura e a amplitude de nossa vida.
Não basta esperar, é preciso uma paixão de esperança, que somente é possível se nos conduz para um horizonte plenificante, para um além da vida do dia a dia.
No Nascimento de Jesus Cristo, Deus realiza um verdadeiro casamento com a humanidade e com o planeta Terra, com toda a diversidade de vidas e com todas as suas riquezas naturais.
Contemplar o Nascimento de Jesus deve nos levar a um mais profundo reconhecimento de que a Terra e o que ela contém fornecem o material para o seu corpo, seu presépio e sua presença no mundo.
Em Jesus, Deus não só se fez Homem, senão “homem pobre e humilde”. A Palavra de Deus não pode ressoar em nós com toda a intensidade se, para nós, palavras como “gruta de animais domésticos, pastores religiosamente impuros, vida cotidiana, ...” não tem um profundo significado experiencial.
Na proximidade contemplativa dos pobres e humilhados encontramos os nomes e verbos nos quais Deus falou em Jesus e onde continua nos falando hoje. Em Jesus encarnado encontramos a pobreza e a humildade de Deus, ao lado de muitas existências pobres e humilhadas. “Fora” e “abaixo”, onde Jesus se manifestou, construímos a “composição vendo o lugar” para situar a contemplação.
Nesta contemplação vai se purificando nossa imaginação e nosso mundo afetivo para poder seguir a Jesus em um serviço como o seu, no lugar mesmo onde Ele se fez presente para fazer Redenção.
No final, seremos todos acolhidos por Aquele que nos quer “eternos”. Porque Ele é “terno”, deitado numa manjedoura, Esperança despojada que dá sentido às nossas perdidas “esperanças”.
O “mistério do Nascimento de Jesus” nos diz que a esperança mantém sempre acesa a faísca de luz que todos carregamos dentro. É ela que nos faz cair na conta que somos “luz do mundo”, uma chama que nunca se apaga; somos “sarça ardente” para os outros, consumindo-nos constantemente, sem nunca nos consumir; somos uma lamparina humilde, brilhando na janela da nossa pobre casa, indicando aos outros o caminho da segurança e do aconchego.
Jesus é a Luz da esperança que brilha no mundo e na gruta interior de cada um; seu Nascimento revela-se como uma Luz que, do interior de uma Gruta, se espalha e ilumina toda a terra, harmonizando e integrando tudo. Quem se aproxima da Luz se torna luz, reflexo da Luz da Criança de Belém. A vida inspirada pelo Nascimento de Jesus é um “caminhar na Luz”.
O ser humano é luz quando expande seu verdadeiro ser, ou seja, quando transcende e vai mais além, desbloqueando as ricas possibilidades de humanidade. A luz, por si mesma, é expansiva: “Vós sois a luz do mundo”.
Podemos viver com encantamento a mais simples sensação, o encontro aparentemente mais banal e sentir transparecer através dos seres e das coisas o Rosto do Deus encarnado. Na sua luz, tudo passa da morte para a vida, da ausência para a presença, do tempo para a eternidade.
Para ilustrar concretamente a força inspiradora do Mistério que se revela na Gruta em Belém, há uma fantástica contemplação de um autor que está longe de ser um Padre da Igreja: trata-se de Jean-Paul Sartre, o famoso filósofo do existencialismo e ateu confesso. Quando foi feito prisioneiro de guerra em 1940, ele escreveu, a pedido de seus companheiros de prisão, a espantosa contemplação, como sua contribuição para a festa de Natal que eles queriam celebrar juntos. O título do texto é: “Se eu fosse um pintor”. Aparecem maravilhosamente unidos o humano e o divino, o sensível e o espiritual se entrelaçam intimamente:
“A Virgem está pálida e olha o filho. O que deveria ser pintado em seu rosto é uma maravilhosa ansiedade que só apareceu uma vez em uma figura humana. Pois Jesus é seu filho, carne de sua carne e fruto de suas entranhas. Ela o carregou nove meses e lhe dará o seio e seu leite se transformará no sangue de Deus.
E, em alguns momentos, a tentação é tão grande que ela esquece que ele é Deus. Ela o aperta nos braços e lhe diz: ‘meu pequeno’. Mas, em outros momentos, ela fica confusa e pensa: ‘Deus está aí’ – e ela se sente invadida por um puro medo religioso diante desse Deus mudo, dessa criança assustadora. Pois todas as mães, às vezes, ficam como que paralisadas diante desse fragmento rebelde de sua carne que é seu filho e se sentem exiladas diante dessa nova vida que se fez com a vida delas e que é habitada por pensamentos estranhos. Mas nenhum filho foi tão cruelmente nem mais rapidamente arrancado de sua mãe, pois ele é Deus e ultrapassa em tudo o que ela pode imaginar.
Mas imagino que também existam outros momentos rápidos e misteriosos nos quais ela sente que Jesus, ao mesmo tempo que é seu filho, é Deus. Ela o contempla e pensa: ‘Esse Deus é meu filho. Essa carne divina é minha carne, Ele foi feito de mim, ele tem meus olhos e a forma de sua boca é da minha. Ele parece comigo. Ele é Deus e ele parece comigo’.
E nenhuma mulher teve dessa forma seu Deus somente para ela. Um Deus pequenino que podemos abraçar e cobrir de beijos, um Deus quentinho que sorri e que respira, um Deus que podemos tocar e que está vivo. E é em um desses momentos que pintaria Maria, se fosse pintor, e tentaria reproduzir o ar de confiança suave e de timidez com a qual toca com o dedo a pele suave dessa criança-Deus cujo peso ela sente sobre os joelhos e que lhe sorri”.
Textos bíblicos: Lc 2,1-15
Na oração: Ditosos somos nós se podemos saborear e abraçar a paz e a esperança que brotam do coração que o Menino de Belém nos traz e oferecê-la largamente para que outros possam também receber seu dom; sem defesas, sem preços, sem temores.
A “memória agradecida” do tempo do Natal nos abre os olhos e todo o nosso ser para o grande presépio que é realidade, grávida de ricas possibilidades e novidades, de sorte que nos associemos à grande “descida” do Messias para comunicar Vida em Plenitude.
- Quê esperanças você carrega no coração?
Que a esperança, visível na Criança de Belém, se torne uma atitude permanente de vida.
Um inspirado Natal junto aos seus.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
24.12.24
imagem: Bartolome Murilo
O relato evangélico deste 4º. Dom. de Advento nos revela o verdadeiro sentido do “visitar” e ser “visitado(a)”. Logo após a “anunciação”, Maria fecha a porta de sua pequena casa em Nazaré e inicia apressadamente o caminho para as montanhas, a um povoado de Judá, onde vivia Isabel. O impulso de seu coração movia velozmente seus pés.
Vamos nos deixar conduzir por Maria e vamos com ela “de visita” à casa de Isabel.
O Sublime se digna visitar o pequeno; o “Emmanuel” se manifesta nos sinais mais simples: duas mulheres, uma casa, um encontro, uma saudação... O AT e o NT se encontram e se acolhem, fora dos espaços sagrados da religião oficial. A partir de agora, devemos encontrar Deus no cotidiano, na vida. Jesus, já desde o ventre de sua mãe, começa sua missão de levar aos outros a salvação e a alegria. Tudo quer indicar que a verdadeira salvação sempre repercutirá em benefício dos demais; quando alguém a descobre, imediatamente quer comunicá-la. A visita comunica alegria (o Espírito), também à criança que Isabel carregava em seu ventre.
Aquelas mulheres grávidas, esperançadas e cheias de fé, envolvidas no silêncio da promessa de Deus, se encontram e, no mesmo instante do abraço, a palavra se faz presente com a intensidade da compreensão, da alegria e da intimidade compartilhada.
Elas estavam felizes. Isabel gritou de júbilo e “a criança saltou de alegria em seu ventre”. E Maria proclamou exultante a oração de louvor e agradecimento ao Deus da Vida. O “Magnificat” recolhe o louvor da orante que se descobre, a partir de sua humildade, fecundada pelo seu Senhor, dentro da História da Salvação.
“Visitar” implica mover-se, para perto ou longe, sair, colocar-se em marcha, abandonar o espaço de conforto, adentrar-se na realidade da outra pessoa. Por outro lado, a pessoa visitada abre a porta de seu espaço vital e acolhe aquela que vem “de visita”.
“Visitar” exige irremediavelmente investir tempo: quem tem tempo hoje para presenteá-lo desinteressadamente? A visita começa a dar frutos desde o primeiro instante, se há uma boa predisposição. A atitude de quem visita e de quem é visitada é elemento primordial.
Maria permaneceu em casa de Isabel durante três meses e depois voltou para sua casa. Deslocou-se, investiu seu tempo e podemos imaginar o quão maravilhosos foram os três meses que elas passaram juntas, acolhendo-se mutuamente, vendo como a vida crescia dentro delas, cuidando-se, compartilhando...
No contexto social em que vivemos, cada vez mais fragmentado e individualizado, as relações vão se tornando líquidas em manifestações muito superficiais; reduzidas a um mero contato tecnológico através das redes sociais, Whatsapp, Instagram, etc, nos perguntamos se ainda tem significado o fato de visitar, para além de um contato comercial, de captação de clientes, ou do médico quando o paciente não pode se mover da cama.
Depois de empapar-nos do evangelho deste domingo é preciso nos perguntar: a que nos impulsiona o “movimento” de Maria visitando Isabel. E, se realmente, o fato de visitar tem um significado em nossa vida.
Há uma infinidade de pessoas, aí fora, esperando uma visita, um encontro de pessoa a pessoa.
Há muita necessidade de abraços e de afeto, que não se solucionam com “emojis” e fotos com preciosos textos de boas intenções no celular.
Há uma sede de presença física, de escuta, nas alegrias e nas dores de muitas pessoas; há enfermos crônicos que aguardam o consolo de uma visita gratuita e alegre que quebre a sua solidão.
Há muitos idosos que vivem sozinhos, cuja porta da casa nunca se abre para receber, porque ninguém se aproxima para ser recebido. Há muitos imigrantes que ultrapassam fronteiras, fugindo de seus lugares de origem e que precisam ser escutados, recebidos, alentados etc.
No contexto rural de nosso país ainda se conserva o bom hábito de “fazer visitas” e a casa torna-se espaço humano de partilha, convivência, festa, ajuda mútua...
Por outro lado, sobretudo nos grandes centros, as casas estão cercadas por uma parafernália eletrônica de segurança, com entrada rigorosamente controlada, alarmes contra invasores..., impedindo o acesso até dos mais próximos (parentes, amigos...). Com os familiares e amigos trocam-se frias mensagens eletrônicas em vez de visitas; com os desconhecidos, contato virtual descompromissado.
Além disso, há uma doença que afeta praticamente todas as casas: nelas, há muito mais espelhos que isolam as pessoas do que janelas que se abrem para a realidade externa.
As janelas abertas permitem ampliar nosso horizonte. Através delas purifica-se o ar denso, pouco respirável que geramos quando nos fechados em nós mesmos. Elas nos abrem à comunhão com a natureza, com os outros, com a realidade que nos cerca. Elas nos humanizam, pois servem para nos revelar quem somos para os outros e, assim, poder passar da janela à porta que se abre para que eles entrem em nossa vida. Outros rostos precisamos descobrir: rostos feridos, excluídos, carentes de proximidade e abraço.
Dentre as “obras de misericórdia”, citadas no juízo final (Mateus), duas delas fazem referência ao ato de “visitar”: visitar os enfermos e os presos.
Visitar é uma atitude humanizadora; requer um empenho pessoal, um estar atento aos detalhes da vida próxima, do entorno. Visitar não conta nas estatísticas. É uma ação muito silenciosa que não requer estruturas organizativas, nem contratuais. Sua essência está no reconhecimento e na acolhida mútua.
Este “reconhecimento” presente nas duas futuras mães – Maria e Isabel - se prolonga nos nossos “reconhecimentos cotidianos”; no reconhecimento está o “nascimento”, e viver o reconhecimento é, então, nascer a uma nova relação com o outro, numa comunhão profunda. Reconhecer-nos unidos, na diferença
Na Visitação, as duas protagonistas, também, põem em destaque três importantes ações que Jesus depois vai potencializar na sua missão: acolher, animar e acompanhar a vida.
Segundo o Cardeal Martini, Maria, mulher do discernimento, depois da Anunciação, busca a confirmação de sua missão de ser a mãe do Messias. Sabemos que é a consolação que confirma determinada opção.
Na Visitação, Maria encontra três confirmações, através de uma tríplice alegria (três consolações).
Em primeiro lugar, a alegria de João Batista no ventre da mãe; em segundo lugar, a alegria de Isabel que estava grávida em sua velhice e reconhece em Maria a ação de Deus (através de seu canto); em terceiro, a alegria da própria Maria que se expressa no Magnificat.
A saudação na Visitação se transforma em um encontro no qual as duas protagonistas ficam confirmadas em seu afeto, sua fé e admiração. O encontro se converte em comunicação. O espírito de fecundidade que ambas, Maria e Isabel reconhecem como graça em sua carne, se tornou naquele momento graça de comunicação transparente.
E o clima festivo da Visitação se prolonga na história humana das visitas. E o primeiro “Visitador” é o próprio Deus.
Texto bíblico: Lc 1,39-45
Na oração: Deus não é distância e solidão. Ele é comunicação, presença, libertação, visita providente.
Ele está perto. Sua proximidade nos causa espanto: Deus possibilita cada um “entrar” em sua casa e captar em profundidade a sua realidade, perceber a raiz do seu ideal de vida (cada vez mais atraente-convincente-exigente), como também suas contradições, ilusões, medos...
Neste “mergulho” interno, cada um pode construir uma espécie de mapa da própria casa, com as regiões fortes e fracas, vulneráveis e criativas, transparentes e ainda misteriosas...
- Como me sinto em minha casa? Preciso abri-la, arejá-la? Modificá-la? Iluminá-la? É acolhedora? Humanizadora?... Tem mais espelhos ou janelas?
- Como está minha casa interior? Preparada para acolher o Senhor que me visita constantemente?
- Há um “lugar sagrado” para Ele? há espaço para os outros?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
21.12.2024
A primeira palavra da liturgia deste domingo, na antífona de entrada tirada da segunda leitura, é um convite à alegria. Não se trata de uma alegria que procede do exterior, fruto de uma conquista ou de um presente; ela brota da tomada de consciência de que “Deus é Emmanuel”.
Essa alegria, no AT, está baseada na salvação que vai chegar. Hoje estamos em condições de dar um passo a mais e descobrir que a salvação já chegou, porque Deus não tem que vir de nenhuma parte; Ele já veio, está vindo e virá sempre. Nós é que precisamos ativar uma atitude de atenção e vigilância para entrar em sintonia com esta Presença, sempre nova e surpreendente.
Fazendo de todos nós sua morada, Deus nos comunicou tudo o que Ele mesmo é. Não devemos estar alegres “porque Deus está próximo”, mas porque Deus já está em nós. A alegria é como a água de uma fonte: nós só a vemos quando aparece na superfície. Mas antes, ela percorreu um longo caminho que ninguém pode conhecer, através das entranhas da terra. A alegria não é um objetivo a conquistar; é, antes de tudo, uma consequência de um estado de ânimo que se alcança depois de um processo. Esse processo começa pela experiência de “sentir-se habitado”, ou seja, tomada de consciência de nosso verdadeiro ser. Se descobrimos que Deus habita nosso ser, encontraremos a absoluta felicidade dentro de nós.
No evangelho deste domingo (3º dom do Advento), surge uma repetida pergunta: “Que devemos fazer?” As respostas a estas perguntas manifestam muito bem a diferença entre a pregação de Jesus e a de João Batista.
Segundo a mentalidade do AT, Deus estava mais preocupado com o cumprimento de sua vontade expressa na Lei. O Batista segue nessa direção, porque acreditava que a salvação que esperavam de Deus dependia da conduta de cada um. Esta era também a atitude dos fariseus; daí sua escrupulosidade e rigor no cumprimento de todas as leis e normas.
A partir da perspectiva da religiosidade judaica, o Batista pede àqueles que o escutam, uma determinada conduta moral para escapar do castigo iminente. Essa conduta não se refere ao cumprimento de normas legais, como faziam os fariseus, mas manifesta uma preocupação para com os outros. Todas as propostas apresentadas por João Batista estão encaminhadas a melhorar as relações entre as pessoas, a tornar essas relações mais humanas, superando todo egoísmo.
No entanto, o evangelho de Jesus propõe uma motivação mais profunda. O objetivo não é escapar da ira de Deus, mas prolongar a atitude do próprio Jesus, numa vida de entrega aos demais. Ele nos convida a descobrir o amor, que é Deus, dentro de nós mesmos e, como consequência, dedicar-nos a agir conforme às inspirações dessa presença. Para o Batista, a aceitação de Deus depende do que nós fazemos.
O Evangelho, por sua vez, nos diz que a sintonia com essa Presença divina é ponto de partida, e não a meta. Continuar esperando a salvação de Deus é a prova de que não descobrimos ainda essa presença dentro de nós, e continuamos desejando que chegue de fora. S. Agostinho expressou isso com clareza: “Ame e faça o que quiseres”. Este é o melhor resumo da mensagem de Jesus.
A certeza de ter Deus presente em nós não depende de nossas ações ou omissões. É anterior à nossa própria existência. Não ter isto claro, pode nos fazer cair no “ativismo religioso”, onde o centro passa a ser o nosso falso eu que realiza ações em favor dos outros; caímos no perfeccionismo das ações morais, onde transparece o nosso ego inflado, que espera recompensas tanto da parte de Deus como dos outros (elogios, admiração...). Com esta atitude estamos projetando sobre Deus nossa maneira de proceder e nos afastamos dos ensinamentos do evangelho que nos diz exatamente o contrário.
A salvação não está em satisfazer os desejos de nosso falso eu.
Nem sequer a resposta de João Batista pode nos tranquilizar, pois na realização de uma série de obras pode entrar em cena o nosso ego que busca projeção. Não se trata de “fazer” ou deixar de fazer, mas, movido pela Presença que nos plenifica, fortalecer uma atitude oblativa que nos leve a responder, em cada momento, às necessidades concretas do outro que clama por ajuda. O decisivo é que, a partir do centro divinizado de nosso ser, flua humanidade em todas as direções, na mais pura gratuidade.
A experiência de sentir-nos habitados pelo Deus de Amor desperta em nós o sentimento humano mais nobre que é a gratidão; e este sentimento se expressa numa atitude constante de abertura e serviço aos demais.
Na vivência cristã, sempre corremos o risco de transformar o “fazer” em simples ativismo, ou seja, uma ação desprovida de sentido e de direção. De fato, vivemos mergulhados numa cultura de resultados, distraídos e perdidos na variedade de luzes, cores, sensações fugazes, vivências superficiais... A existência inteira faz-se maquinal e rotineira. Caímos numa pura “fazeção”, ou seja, fazer por fazer, fazer para afirmar-nos, fazer para brilhar, fazer para produzir, fazer para nos impor...
Falta uma referência e um horizonte que unifique tudo, que possibilite reorientar e canalizar nossas potencialidades, impulsos, inspirações, que desperte nossa paixão e dê novo sentido à nossa missão.
Para integrar bem os diversos dinamismos da vida, é decisivo centrar no horizonte que inspira nossa vida e nos motiva a fazer o que fazemos e como fazemos. E o horizonte é “ajudar”.
“Ajudar” é, para a espiritualidade do Advento, o horizonte e a chave de integração de nossa vida.
“Ajudar”, como atitude pessoal e comunitária, é o equivalente evangélico “servir”. Um “ajudar” (servir) que brota da experiência de ser “ajudado” (servido) por um Deus servidor.
No “ajudar” dão-se as mãos o amor a Deus e o amor à pessoa humana, a experiência interior e a ação cotidiana, a ação e a contemplação; nele se expressa a profundidade e o enraizamento da pessoa nas exigências cotidianas da vida; nele convergem a busca de Deus e o compromisso com o mundo.
“Ajudar” é oposto do ativismo, que é um fazer “insensato”, sem sentido e sem direção. “Ajudar” é fazer com inspiração, com horizonte de sentido; é perguntar-se continuamente: “por que faço isso? para quem faço?... “Em que posso ajudar?” (D. Luciano M. de Almeida)
“Ajudar” não vai na linha do impor, senão do propor. Tal atitude requer presença gratuita, desinteressada, centrada no bem da outra pessoa, sem criar dependências, mas fazendo-a crescer em liberdade.
“Ajudar” implica possibilitar ao outro ser protagonista de seu processo, devolver a ele a autoria, a autonomia... No “fazer” o centro somos nós, no “ajudar” é o outro; no “fazer” medimos a quantidade, no “ajudar”, a qualidade de nossa ação. No “ajudar” há parceria (mão dupla): na medida em que ajudamos, somos ajudados; na ajuda há um enriquecimento e crescimento mútuo.
“Ajudar” não é substituir os outros naquilo que eles podem e tem de fazer, ou dizendo o que tem de ser feito, mas colocá-los em condição para que eles mesmos se experimentem ajudados, descubram o Deus que ajuda a todos e sintam o impulso para ajudar como ideal de suas vidas.
“Ajudar” os outros, inspirados e animados pelo Espírito de Jesus, é o que torna “espiritual” nossos atos, nossos pensamentos e orações, nossos trabalhos, nossa vida inteira.
“Ajudar” torna “espiritual” nossa vida, toda nossa vida.
Texto bíblico: Lc 3,10-18
Na oração: - Não pergunte a ninguém o que você tem de fazer. Descubra seu verdadeiro ser e encontrará seu modo original de proceder na relação com os outros. Sua meta deve ser a de ativar e expandir o que você já é na sua essência.
Só poderá expandir seu verdadeiro ser se suas relações com os outros são cada dia mais humanas, sem nenhum resquício egóico.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
12.12.2024
“Ficai despertos e orai a todo momento...” (Lc 21,36)
Com a liturgia deste domingo inicia-se o “tempo do Advento” e um novo “ano litúrgico” (Ano C – centrado no evangelista Lucas).
Mais uma vez nos disponibilizamos, através da oração e da celebração litúrgica, a viver mais intensamente o Tempo do Advento e alargar nossas vidas para nele caber o mistério do Natal.
Advento nos revela a presença da eternidade no coração do tempo. O Eterno continua vindo, pelos caminhos mais imprevisíveis, iluminando a dura rotina e a sequência do cotidiano.
Advento é tempo de espera, de preparação e de chegada. Tempo forte carregado de sentido, que nos faz ter acesso àquilo que é mais humano em nós: o sentido da esperança, a travessia, o encontro com o novo..., tempo que nos arranca de nossas rotinas e modos fechados de viver.
Viver o Advento é o grande evento que agita os corações, sacode as inteligências, inquieta as pessoas, move as estruturas... Toda a nossa vida se transforma na história de uma espera e de um encontro surpreendente.
Nós cristãos, nas festas de Advento e Natal, celebramos o Deus que está em nós e conosco; Ele é a presença libertadora de tudo o que nos desumaniza. Celebramos a fé no Deus encarnado e fé na humanidade que nos faz presente a Deus. Celebramos o valor divino do humano e o valor humano do divino. Celebramos que Jesus, o Emanuel, é nosso salvador, nossa referência de vida; Ele veio nos ensinar a ser e viver como Ele.
Caminhamos para o “Senhor que veio, que vem e que virá” à medida que mais nos adentramos ao fundo de nós mesmos e da realidade. Advento convida a deixar-nos “contaminar” pela realidade; e isso nos humaniza.
O Evangelho deste domingo nos chama a estar alertas, a ter o coração livre de vícios, da libertinagem e das preocupações da vida; nos chama a “estar despertos e orando”, porque o Espírito se des-vela em nossa atitude de fé e de esperança viva: ponto de encontro entre as promessas da fé e os sinais dos tempos presentes e vindouros.
A chegada de Deus se identifica com a chegada do “novo ser humano”, da nova humanidade, do novo mundo. Preparar a chegada do ser humano novo, isso é o Advento.
Diante do surgimento de um novo tempo e de um novo mundo requer “estar desperto” e “levantar a cabeça”; e a pessoa “desperta” é, justamente, aquela que vê a novidade em tudo, que tem a cabeça erguida e vislumbra novos horizontes. Ao contrário, quem permanece adormecido, move-se no terreno da rotina, com o coração atrofiado e a mente embotada pelos vícios e preocupações vazias.
Quem permanece adormecido, debate-se entre o passado que se foi e o futuro que nunca chega, escravo da ansiedade que o faz viver fora do presente.
O Advento vem nos dizer que não há outra coisa a fazer senão viver intensamente o momento presente. A plenitude está na consciência do instante presente, onde o “Filho do Homem” se revela.
No presente pleno, tudo tem sabor de novidade, a percepção da própria identidade se amplia sem limites, a consciência da comunhão com tudo e com todos se alarga...
Não é estranho que, ao longo dos Evangelhos, escutemos tantas vezes o chamado insistente: “vigiai”, “estai atentos à sua vinda”, “vivei despertos”. É a primeira atitude daquele que decide viver a vida como Jesus a viveu. Essa é a primeira atitude que devemos fortalecer para seguir seus passos.
E o que significa “viver despertos”?
- “Viver despertos” significa não cair no ceticismo e na indiferença frente à marcha do mundo; não deixar que nosso coração se endureça; não cairmos nas queixas, críticas e condenações; despertar ativamente a esperança.
- “Viver despertos” significa sermos mais lúcidos, sem deixar-nos arrastar pela insensatez que, às vezes, parece invadir tudo; atrever-nos a ser diferentes; não deixar que se apague em nós o desejo de buscar o bem para todos.
- “Viver despertos” significa viver com paixão a pequena aventura de cada dia; não darmos as costas a quem precisa de nós; continuar realizando os “pequenos gestos” que aparentemente não têm grande significado, mas que sustentam a esperança das pessoas e tornam a vida um pouco mais amável.
- “Viver despertos” significa reacender nossa fé, nossa experiência contemplativa, ou seja, buscar Deus na vida e a partir da vida; senti-Lo muito próximo de cada pessoa; descobri-Lo atraindo a todos para a feli-cidade; viver não só de nossos pequenos projetos, mas atentos ao Projeto amoroso de Deus.
- “Viver despertos” significa sair da normose (normalidade doentia) e da ignorância para vir à luz da compreensão. É uma arte e um caminho, e isso significa um deslocamento para uma amplitude maior na maneira de viver.
- A arte de “viver despertos” é ativada na medida em que diminui ou cessa a identificação com o ego, para deixar emergir nosso “eu profundo”, graças ao silêncio e à tomada de distância com respeito aos conteúdos doentios da mente (remorsos, culpas...). Aqui encontra o seu lugar a prática contemplativa, na qual nos mobilizamos para acessar a “outro lugar”, para além da mente, que abre a porta à amplitude da vida.
Advento, portanto, é o momento de escutar o chamado que Jesus dirigido a todos: “levantai-vos”, animai-vos uns aos outros”, “erguei a cabeça” com confiança. Deus é Salvação e já está em nós. Basta despertar-nos e descobri-Lo. Esta descoberta nos descentra de nós mesmos, nos projeta para os outros, para o infinito e nos identifica com tudo e com todos.
O momento do encontro com “Aquele que vem” nos introduz na soleira de um futuro novo e carregado de esperança, aquela esperança que dá sentido às nossas atividades, liberta o coração da preocupação, expulsa toda ansiedade e impulsiona a buscar o Reino.
O fundamento da segurança e da serenidade reside na consciência de estar nas mãos providentes de Deus.
O fiel discípulo de Jesus, descobrindo-se amado e protegido pela ternura providente, se sente sempre a caminho, isto é, pronto a acolher cada fragmento de luz e de vida, que fala da presença e da passagem de Deus. O presente, tecido de partilha, solidariedade, misericórdia, mansidão, reveste o futuro de luz.
A verdadeira segurança cresce no coração e na confiança de sermos protegidos por um Deus que sabe o que precisamos e nos aguarda. É esta a relação fundamental, fecunda e criativa, que possibilita o “êxodo” de nós mesmos e a acolhida do “advento” do Outro e dos outros.
Texto bíblico: Lc. 21,25-28.34-36
Na oração: “Advento”: o Senhor vem... em sua direção! Ou melhor, já chegou! Basta despertar-se para descobri-Lo e descobrir-se n’Ele.
Por isso, o Advento deveria ser um tempo para retornar ao interior em meio à agitação, e olhar para dentro de si mesmo. Aí, no seu interior, há tanto de eterno. A eternidade dialoga com a gente, fala por dentro.
- Tome consciência do momento presente, deste único instante, aqui e agora, carregado de Presença e permaneça nele. Deus é Salvação que se dá a todos em cada instante.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
28.11.2024
“Tu o dizes: eu sou rei. Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade” (Jo 18,37)
Com a festa de “Cristo Rei” encerramos mais um ano litúrgico. O Evangelho indicado para esta festa nos introduz numa cena muito constrangedora da vida de Jesus. O contexto no qual ela se desenvolve é o processo de julgamento político ao qual Ele foi submetido, denunciado pelas autoridades judaicas. Como podemos observar, não estamos diante de um diálogo distendido entre dois iguais; é um procurador romano frente a um acusado que deve responder e dar razão daquilo que o levou a esta situação.
Condição mais inapropriada para Jesus se declarar “rei”.
Frente a isto, o evangelho de hoje revela-se surpreendente e até escandaloso, porque nos apresenta esse título numa situação de humilhação e impotência extrema: na Paixão, com insultos, escárnios e zombarias dos chefes judeus, de Pilatos, dos soldados romanos...
Jesus, rei atípico. Qualquer conotação que o título tenha com o poder, deturpa a mensagem evangélica. Uma coroa de ouro na cabeça e um cetro de brilhantes nas mãos é uma ofensa ao mesmo Jesus.
Jesus não se apoia na força das armas, nem se move no interior do sistema que se sustenta na injustiça e na mentira. Sua realeza tem um fundamento completamente diferente; ela provém do amor de Deus ao mundo. Ele reina entregando sua vida. Os reis deste mundo vivem às custas de seus súditos.
Jesus reina perdoando, amando, a partir de uma situação de humilhação e impotência. João nos diz onde e como Jesus ganha este título de rei: na entrega de sua vida até a morte. Um rei crucificado é uma contradição. Seu senhorio é de amor incondicional, de compromisso com os pobres, de liberdade e justiça, de verdade, de solidariedade e de misericórdia.
Jesus é rei desta forma e não da forma triunfalista como querem muitos cristãos “fundamentalistas”. Um rei que toca leprosos, que prefere a companhia dos excluídos e não dos poderosos das nações. Um rei que lava os pés dos seus, um rei despojado de poder, de riqueza e que não pode se defender.Jesus crucificado é um estranho rei: seu trono é a cruz, sua coroa é de espinhos. Não tem manto, está desnudo. Não tem exército, nem armas. Até os seus o abandonaram. Mísero rei!
Jesus não quis fazer-se rei militar, pois a violência pertence ao nível dos poderes de um mundo onde a verdade se encontra pervertida pela mentira dos poderosos. Jesus quis ser Rei, mas de maneira que todos pudessem ser reis, “testemunhas da verdade”. Assim respondeu a Pilatos dizendo-lhe que “seu reino não era deste mundo”. Pilatos só conhecia um tipo de reino, aquele que se fundamentava na espada do império, que se apoiava e se defendia com as armas, de maneira que a verdade como tal tornou-se secundária.
Meu Reino está em “ser testemunho da verdade”. Como Pilatos vai entender isso se está acostumado a fazer da verdade o que a ele lhe interessa e lhe convém?
Esta é a proposta: ser Rei sem tomar o poder, sem exercê-lo com a força das armas, nem por algum tipo de justiça legal, nem por dinheiro... Esta é a tarefa da nova humanidade, a promessa de um Reino do conhecimento verdadeiro, da igualdade, da fraternidade e não violência... para que todos sejam “reis”, no sentido radical da palavra.
Portanto, a festa de “Cristo Rei” revela-se como uma boa oportunidade para o encontro com a nossa verdade: n’Ele, todos somos “reis”, ou seja, quando nos identificamos com Ele, também somos reis. Reis servidores devemos ser todos. Comprometemo-nos com o “Reinado de Deus” porque, como reis, estamos todos a serviço de todos.
“Sou rei..., e vim ao mundo para dar testemunho da verdade”. É neste mundo que Jesus quer exercer sua realeza, mas de uma forma surpreendente: veio ser “testemunha da verdade”, introduzindo o amor e a justiça de Deus na história humana.
Esta verdade que Jesus deixa transparecer não é uma doutrina teórica. É um chamado que pode transformar a vida das pessoas. Ele já tinha afirmado antes: “Se permanecerdes na minha palavra... conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8,31-32). Ser fiéis ao Evangelho de Jesus é uma experiência única pois nos leva a conhecer uma verdade libertadora, capaz de tornar nossa vida mais humana.
Diante de Pilatos, mais uma vez aparece a palavra “verdade” (“aletheia”), que Jesus considera como a razão de seu ser e de sua missão. A verdade da qual Ele fala não é um argumento carregado de afirmações fechadas para ter razão. Não se trata de possuir a verdade ou estar na verdade, de ter direitos sobre os outros, de se impor sobre alguém. Longe disso.
Jesus fala da “verdade” no sentido de uma atitude diante da vida, de uma opção de vida: viver na verdade é buscar a verdadeira essência que somos, nossa possibilidade de plenitude, nossas raízes mais profundas; é conectar-nos com esse Reino que traz à luz a bondade humana como imagem da bondade divina.
Só tomamos consciência de nossa realeza quando acessamos à nossa verdade mais profunda. Enquanto isso não ocorra, viveremos como mendigos, buscando nos apropriar e nos identificar com tudo aquilo que possa nos conferir certa sensação de identidade. No entanto, ao compreender o que somos, tudo se ilumina: o suposto “mendigo” se descobre “rei”.
Verdade é a realidade existente; ela salienta a dignidade de cada pessoa, reivindica liberdade e igualdade, sustenta o significado essencial do ser humano, preserva os valores consistentes.
A verdade descobre o que está encoberto, desvela o que está velado, des-oculta o que está escondido, des-lumbra o que está ensombrado, des-mascara o que está camuflado, des-emudece o que está calado, des-cativa o que está algemado.
A verdade retira o mundo (interno e externo) da escuridão. Quando a verdade habita a consciência, o ser humano ilumina-se. Onde há verdade há humanidade transparente. Há rosto fascinante.
Ser “testemunha da verdade” requer “viver na verdade”, não em algumas crenças. E viver na verdade inclui o reconhecimento e a aceitação da própria verdade e da verdade presente no outro. Não pode estar na verdade quem não se aceita com toda sua verdade, com suas luzes e suas sombras; não pode estar na verdade quem vive identificado com seu ego ou com sua imagem idealizada.
Pelo contrário, quando alguém se aceita assim, começa a viver na humildade e isso é já “caminhar na verdade”. Afirmando de um modo mais claro: só conhece a verdade quem é verdadeiro, transparente, sem máscara ou disfarces. Quando se é verdade, conhece-se a verdade.
É significativo que os antigos gregos entendessem a verdade como “a-létheia” (“sem véu”): quando “tiramos o véu” é quando emerge a Verdade do que somos, a nossa essência.
Importa “des-velar” a verdade, ir à morada da verdade, encontrar a verdade.
Isso é o que Jesus viveu. Porque chegou a experimentar a verdade profunda de si mesmo, pode dizer: “Eu sou a verdade”. Essa não era uma afirmação egóica, tampouco se referia a nenhuma crença ou ideia em particular. Era a proclamação-constatação humilde e jubilosa de quem des-velou e viu o “segredo” último de sua vida.
É aqui que se revela como Rei.
Texto bíblico: Jo 18,33-37
Na oração: Revele-se diante de Deus e deixe transparecer a verdade de sua vida.
- A verdade que somos nunca pode ser algo que temos e possamos transmitir ou impor aos outros, mas a Presença que a todos sustenta e a todos abraça. Só a presença d’Aquele que é a Verdade ativa a verdade escondida em nosso interior.
- Sua vida está centrada no des-velamento de sua verdade, de sua essência? Ou ela se deixa determinar pela cultura da aparência, da vaidade, da mentira...?
“Quando os ramos da figueira ficam tenros e as folhas brotam, sabeis que a primavera está próxima”
A natureza se renova continuamente através dos brotos; muitas vezes nos fixamos na velha árvore e temos a sensação de que ela está morta. Mas, de repente, das profundezas das raízes, uma nova seiva vai emergindo, fazendo aparecer novos brotos que apontam para os frutos vindouros.
O que a vida cristã precisa claramente, neste momento de desânimo e de abatimento, não é resignação diante do contexto no qual vivemos, mas de vida e vitalidade. Precisamos alimentar a esperança para empreender novos caminhos com entusiasmo renovado e sem temor.
O seguimento de Jesus, mais que prudência, conformidade ou conservadorismo que pretende preservar as coisas do passado em lugar de sua sabedoria, requer audácia, precisa de membros adultos que resistam ao envelhecimento da vida, e jovens que resistam ao envelhecimento da alma.
Muitas vezes, onde deveria reinar a ousadia, reina a resignação e a passividade, onde deveria reinar a criatividade, reina a repetição doentia, onde deveria reinar a “narrativa” da vida de Jesus, reina a doutrina pesada e o legalismo estéril. A tentação consiste em fazer da sobrevivência a nossa máxima aspiração, em vez de vivermos a vida plenamente, com toda profundidade e o entusiasmo que nossa vocação cristã exige.
A capacidade de arriscar situa a vida cristã deste tempo perante o desafio de confiar ao máximo em Deus. A capacidade de arriscar é a virtude que fará a ponte entre a vida cristã atual e a que está para vir. Pertencer a uma antiga instituição não é desculpa para não ter ideias jovens e não fazer coisas novas. Ao contrário, é precisamente a idade da instituição que exige isso. É a virtude de viver plenamente até a morte que se exige da vida cristã atual, se quisermos que os brotos voltem a surgir.
É a virtude do risco que precisamos alimentar de novo: risco nos mais velhos que acreditam que os grandes riscos de sua vida já tinham passado; e risco nos novos membros que pensam que uma vida fundada no seguimento de Jesus e no serviço é uma vida sem nenhum risco.
A revitalização do seguimento de Jesus não consiste em redefinir suas formas, sua doutrina, seus dogmas, seus ritos... senão em reavivar seu significado, seu direito a continuar tendo sentido diante das novas inquietudes e das realidades atuais.
O mundo que está mudando ao nosso redor provoca mudanças em nós também. O importante é que cheguemos a “ser” o que devemos ser num mundo que nos arrasta com ele.
“Eu não teria gostado de viver sem haver inquietado alguém alguma vez” (Catherine de H. Doherty)
A questão é se a vida cristã provoca e inquieta o suficiente em nosso atual momento. A verdadeira questão é esta: na velha árvore do cristianismo, ainda surgem brotos para suscitar a energia necessária a fim de tornar mais autêntico o nosso compromisso com o Reino?
Estamos num tempo de mudança, mas também emocionante e santo, para a vida cristã.
Há uma poderosa seiva presente por debaixo das raízes. O único que temos a fazer é não impedir o seu deslocamento em direção aos ramos, para que novos brotos de vida possam aparecer. A impressão que temos é que a vida cristã parece ter muito mais “galhos secos e sem vida” do que folhagem e frutos novos.
Por isso, de tempos em tempos precisamos passar por “abalos sísmicos”, tanto no nível interno de nossas vidas quanto na instituição eclesial, para derrubar o que está seco e caduco e deixar emergir o broto vital, que alimenta nossa esperança e abre um horizonte de sentido.
O “sol” do ego inflado precisa se esvaziar no escurecimento; a “lua” da vaidade precisa deixar de brilhar para si mesma; as “estrelas” do auto-brilho precisam cair... É do meio do “cosmos”, interno e institucional, renascido e reordenado, que poderá emergir o “Filho do Homem”.
Sabemos que o ciclone tem uma violência enorme e gira velozmente, mas seu centro é calmo, imóvel.
É preciso retornar ao centro do ciclone onde está o “Filho do Homem”, onde está o coração, onde está o Cordeiro. Esta vida nova está no centro da situação que vivemos, no centro desse mundo que é o nosso.
É a partir do interior que algo pode mudar.
O evangelho deste domingo tem profundas ressonâncias apocalípticas, ou seja, uma revelação, um desvelamento, um desnudamento dos múltiplos véus que revestem o palco, lúdico e trágico, da encenação do drama humano, com suas contradições, incertezas, promessas e esperanças.
Devido às imagens que este gênero literário utiliza, com frequência atribui-se ao termo “apocalipse” um significado de “catástrofe” ou “destruição”. A realidade, no entanto, é diferente. Etimologicamente “apo-kalypsis” significa “destapar o que está escondido”, “tirar o véu”, “des-velar”, ou seja, “re-velação”.
Assim pois, etimologicamente, “apocalipse” equivale a “verdade” (“aletheia” = sem véu). E, como consequência, o escrito apocalíptico pretende “retirar o véu” que nos impede reconhecer as coisas como são, ou seja, revelar-nos o que se encontra por debaixo da superfície, em um nível mais profundo. É como se o autor do evangelho quisesse nos dizer: “as coisas não são o que parecem ser”.
Em cada momento histórico o texto do Apocalipse é lido e interpretado em função dos acontecimentos. Este gênero literário é uma luz que nos ajuda a “ler” a realidade (interior e exterior), desvelando tudo o que acontece nela e assim poder assumir uma atitude mais coerente com a proposta do Evangelho.
Nesse sentido, podemos “ler” o texto do evangelho como se escutasse um sonho revelador. O Apocalipse, portanto, é um empenho da comunidade cristã em dar sentido a tudo o que está acontecendo, reencontrando sua dignidade no coração das situações mais difíceis.
A revelação que ocorre no interior de cada um e na realidade que nos envolve é o des-velar (tirar o véu) de uma Presença. No centro de nossa solidão e de nosso exílio não estamos sozinhos, mas temos a visão de Alguém, que vem ao nosso encontro.
A partir de um imaginário “catastrofista”, o evangelho aponta à esperança, exige atenção e responsabilidade com os sinais menores e cotidianos para indicar que o presente tem futuro, porque Deus não abandona a criação e a humanidade mais ferida; Ele está enraizado no mais profundo dela como uma potência surpreendente que pede nossa responsabilidade e ousadia.
Na verdade, os discursos escatológicos e os anúncios apocalípticos, apesar de sua aparência, são sempre um chamado à esperança. Esperança que não é uma projeção para um futuro incerto e que serve para fugir do presente ou para poder “suportá-lo”.
A autêntica esperança, no entanto, não só não nos afasta do presente, senão nos enraíza nele. Porque, realmente, só há uma esperança: aquela que corresponde ao desejo de viver intensamente o “Agora”. Essa é a única coisa que aspiramos: reconhecer-nos e viver na Plenitude do que é, no presente pleno, na presença que somos. Presente que se abre ao novo futuro. E para este “novo tempo” nos dirigimos quando nos permitimos viver no coração do presente, quando nos deixamos encontrar por ele. Presente carregado de uma Presença providente.
Para meditar na oração:
Como muitos mestres e mestras, cujas vidas são testemunhas da esperança, nos perguntamos:
- É possível “esperançar” quando sinto que a realidade é um “beco sem saída”?
- Como “esperançar” em meio a tanta violência, destruição, preconceito, indiferença?
- Qual tem sido meu suporte e ajuda nesses momentos da vida e como posso oferecê-lo aos
outros?
- Que ou quem me ajudou a despertar a esperança nos momentos mais obscuros?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
15.11.2024
“Tomai cuidado com os mestres da Lei!
Eles gostam de andar com roupas vistosas...” (Mc 12,38)
No evangelho deste domingo, os mestres da Lei (escribas) e a viúva constituem dois símbolos que encarnam maneiras de viver diametralmente opostos. Os primeiros se movem sob o impulso do poder e da vaidade, querendo oferecer uma imagem ostentosa e buscando reconhecimento, privilégios e dinheiro através de qualquer meio, inclusive usando da religião. Jesus denuncia as “largas túnicas” que costumam utilizar, nos ambientes mais diferentes, como sinal distintivo de superioridade.
No nível mais profundo, podemos considerar os “mestres da Lei” como símbolos do ego (religioso) que, carentes de interioridade, vivem em função de suas próprias necessidades e interesses narcisistas.
Por outro lado, a imagem da viúva representa a pessoa capaz de doar e de entregar-se (“tudo o que possuía para viver”), de maneira generosa e desapegada.
O contraste que o relato realça deixa transparecer o que cada um de nós vive em nosso interior. Em nós convivem o melhor e o pior, e em diferentes “doses”, tanto o “escriba” (o ego que gira constantemente em tono a si mesmo), como a “viúva” (a dimensão profunda que vive na compreensão e se expressa no amor que se entrega).
O evangelista Marcos só precisou de sete versículos para mostrar duas realidades de alto contraste e que põem em evidência duas formas de situar-se na vida e na religiosidade. O relato deste domingo começa situando Jesus em seu ministério pedagógico. Como verdadeiro Mestre, ensinava às pessoas, ensinava com transparência e a partir da liberdade que o caracterizava. Nesta ocasião, seu ensinamento se converte em um conselho imperativo: “tomai cuidado com os mestres da Lei”. E dá razões pelas quais é preciso proteger-se das atitudes deles.
Certamente os escribas eram os “experts” e intérpretes oficiais e lícitos da Escritura. Gozavam de grande autoridade; buscavam sempre serem vistos e admirados; vestiam de forma especial; Jesus os denuncia porque eles gostavam de andar pelas praças com vestes exuberantes. Não é casualidade que também os denuncie como aqueles que “devoravam os bens das viúvas”, pois costumavam persuadi-las demonstrando serem muito devotos para administrar seus bens e aproveitar-se delas.
Eles são justamente o contrário daquilo que Jesus vem pregando; o conflito está armado. Estes líderes religiosos revelam a superficialidade na vivência e no compromisso de sua fé. Uma religiosidade baseada na aparência, na conservação de uma posição sociocultural, em manter um lugar visível e hierárquico, em alimentar um ego inflado e enaltecido que os conduz a viver de modo egocêntrico e egoísta.
O seguimento de Jesus, no entanto, é um modo de viver descentrado, um compromisso existencial, onde não prevalece a ambição do ego, mas o esvaziamento e a saída de si mesmo para centrar-se no cuidado e no serviço aos demais.
A ambição e a atitude dos “mestres da Lei” não se extinguirão nunca, nem sequer nas comunidades cristãs. Ainda hoje, a figura do “mestre da lei” continua atuante, sobretudo quando os “ministros” (ordenados e não-ordenados) insistem no uso exagerado de vestimentas exóticas que tem sua origem no modo de vestir dos poderosos do império romano. Tal insistência parece indicar a necessidade, consciente ou inconsciente, de manifestar posição de poder ou uma carência de interioridade. A “cultura da exterioridade” e da busca do reconhecimento revelam o “complexo de pavão”, quando predomina a preocupação com as aparências, o espetáculo visual, a insistência em ser o centro das atenções nas celebrações, em buscar o elogio e serem admirados por todos.
Diante do espetáculo visual dos “mestres da lei”, o evangelista Marcos apresenta uma nova situação: a viúva que colocou duas moedinhas no cesto das ofertas e que servirá de contraste para compreender a mensagem de Jesus. Esta mulher é muito mais que uma viúva que depositou uma insignificância no cesto. Jesus realça esta figura simbólica que rompeu os esquemas patriarcais e religiosos dos poderosos judeus e, neste caso, dos escribas. Um simples gesto recuperou a dignidade de uma mulher que, por ser mulher, não tinha nenhuma visibilidade e, por ser viúva, estava numa posição de indigência absoluta, segundo a visão judaica.
O gesto dela desvela a essência do coração da nova comunidade de Jesus: um abandono e confiança em Deus, uma gratuidade plena, um amor solidário, generosidade. Ela não tem poder algum, nem cargos, nem possui “dignidade eclesiástica” alguma; a única coisa que possui é um coração generoso, mas isso conta pouco nas instituições de poder. Para Jesus, o centro da comunidade cristã não é o poder e nem são os poderosos, mas as pessoas simples, a fé e o bom coração dos humildes e misericordiosos.
Jesus admira a pobre viúva. Eles não se conheciam; ela não é discípula, nem cristã..., ela é uma mulher, dos pés à cabeça, que fiel à sua consciência, deposita tudo no Templo, cujo “deus”, manipulado pelas autoridades religiosas, a exclui de quase tudo por ser mulher; no entanto, ela sabe, no fundo de suas entranhas, que Deus não é como propagam aqueles que a oprimem e alimentam uma vaidade vazia, mas é Aquele revelado pelos profetas e salmos, e a Ele se entrega e confia totalmente.
A generosidade desta mulher não está baseada numa obrigação moral, nem em um gesto público para ser aplaudido, mas se apoia na consciência de sua dignidade que a mobiliza a entregar tudo o que ela considera que deve doar.
Jesus já tinha estado no Templo, purificando-o e expulsando aqueles que ocupavam o lugar de Deus. No relato de hoje tudo é diferente; Ele não está irado e tenso, mas se admira da viúva despojada; isso lhe dá força e convoca os seus discípulos para clarear as ideias deles e dizer-lhes onde está o verdadeiro amor e a autenticidade de vida cristã; e que não se enganem, porque o discípulo e a discípula devem ter em Deus seu tesouro.
Ao contemplar a pobre viúva, talvez Jesus pensasse em sua mãe, em todas as mulheres pobres que, ao longo da história, mantém os lares, as comunidades cristãs, visitam os doentes, partilham o pão com famintos e, sempre com um detalhe nobre: com ternura, com dignidade, com compaixão. Esta viúva, contemplada por Jesus, continua caminhando por nossas ruas e paróquias, anônimas, mas com um coração generoso. Porque é essa capacidade de entregar tudo sem medida que converte uma pessoa em discípula de Jesus.
Jesus nos convida a olhar este exemplo vivo para ilustrar o modo de nos situar no seu seguimento, em contraste com os escribas e fariseus. Critica estes personagens, certamente, mas propõe uma alternativa: a de uma vida conectada à dignidade e que tem como consequência gestos de entrega, de simplicidade e liberdade. O modo de viver a vida e a fé não é questão de quantidade, das vezes que repetimos os ritos, das vezes que fazemos gestos generosos, do dinheiro que doamos ou outros atos repetitivos que vão se esvaziando de sentido. É muito mais uma questão de qualidade, de uma autoconsciência de nos percebermos enraizados numa Presença Providente que nos mobiliza a colocar toda a nossa realidade humana sob a influência da sua energia criadora.
Texto bíblico: Mc 12,38-44
Na oração: O Evangelho desvela dois personagens que habitam nosso interior; o doutor da lei, centrado em si mesmo, vive da aparência, usa da religião para se projetar, para brilhar... É a cultura da vaidade, da exterioridade... Por outro lado, a pobre viúva representa aquilo que em nosso interior não valorizamos ou rejeitamos, mas que, na sua pobreza e humildade, desvela-se diante de Deus com um coração generoso. Não pensa em si, mas nos outros; partilha tudo o que tem. Não busca a glória e o elogio.
- Qual dos dois personagens eu alimento? Vivo da aparência e da vaidade ou do descentramento e serviço?
- O que em mim é “doutor da lei”? O que em mim é “pobre viúva”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
09.11.2024
“Quem quiser entre vós ser grande, que se faça vosso servidor” (Mc 10,43)
Enquanto fazem o caminho de subida a Jerusalém, Jesus vai anunciando aos seus discípulos o desenlace trágico de sua missão na capital. Mas os discípulos não o compreendem, pois estão disputando entre eles os primeiros lugares. Tiago e João, discípulos de primeira hora, se aproximam d’Ele para pedir diretamente que, no Reino, pudessem sentar-se “um à sua direita e outro à sua esquerda”.
Tiago e João pedem privilégios a Jesus e, diante deste pedido atrevido, os outros dez discípulos ficam indignados contra eles. O grupo está mais agitado que nunca. A ambição está dividindo o grupo. Ninguém no grupo dos discípulos entende que seguir Jesus de perto, colaborando em seu projeto de vida, nunca será um caminho de poder, de grandezas e ambição, mas de doação e compromisso fiel. Por isso, Jesus reúne a todos para deixar claro seu modo de ser e pensar. Recorda-os que aqueles que são reconhecidos como chefes utilizam seu poder para “tiranizar” os povos, e os grandes “oprimem” seus súditos. Jesus é taxativo: “entre vós, não deve ser assim”.
Jesus dá tanta importância ao que está dizendo que se apresenta a si mesmo como exemplo, pois não veio ao mundo para exigir que lhe sirvam, mas “para servir e dar sua vida em resgate de muitos”. Ele não ensina ninguém a triunfar em sua nova comunidade, nem alimentar uma ambição que acaba envenenando as relações entre seus seguidores. A atitude essencial no seu Reino é o serviço, desgastando-se em favor dos mais fracos e necessitados.
O ensinamento de Jesus não é só para os dirigentes religiosos. A partir das funções e responsabilidades diferentes, todos devemos nos comprometer a viver com mais entrega no serviço de seu projeto. Na Igreja, não precisamos de imitadores de Tiago e João, mas de seguidores(as) de Jesus. Quem quiser ser importante, que desça do pedestal do poder e se coloque no lugar mais baixo, para trabalhar e colaborar com o Reino.
É muito próprio do ser humano o impulso egóico por sobressair sobre os outros, ter privilégios, conquistar fama. Esta é uma das grandes tentações que afloram, sobretudo em muitos membros das comunidades cristãs, ou seja, o avassalador desejo de serem protagonistas, de se imporem sobre os outros, de subirem o pedestal para serem o centro das atenções; essa é a desejada posição onde possam ser vistos, serem obedecidos e receberem algum tipo de bajulação. Todos estamos expostos à tentação de nos sentirmos indispensáveis, insubstituíveis e únicos.
E grande parte das tensões nos relacionamentos nas comunidades cristãs surge da confusão que fazemos entre “poder” e “autoridade”. Poder: é a faculdade de forçar, coagir ou pressionar alguém a fazer sua vontade, por causa de sua posição ou força; exige submissão ou obediência cega.
Autoridade: é a capacidade de convencer, atrair, seduzir..., pelo seu modo de ser e viver, pelos seus valores, pela sua causa mobilizadora. Desperta “seguimento”.
O poder é definido como uma “faculdade”, enquanto autoridade é definida como uma “habilidade”. Uma pessoa pode estar num cargo de poder e não ter autoridade sobre as pessoas. Ou, ao contrário, uma pessoa pode ter autoridade sobre os outros sem estar numa posição de poder.
Outro modo de diferenciar “poder” e “autoridade” é lembrar que o poder pode ser vendido e comprado, dado e tomado. A autoridade, por sua vez, não pode ser comprada nem vendida, nem dada ou tomada.
A autoridade diz respeito àquilo que a pessoa é em sua essência, em sua identidade original; diz respeito ao seu caráter, à sua interioridade nobre e à sua presença inspiradora junto aos outros.
Acontece que, muitas vezes, aqueles que não vivem a autoridade descentrada, se apoiam no poder. Deixam de convencer e passam a se impor; perdem o apreço pelos outros e se mantém à base de força e opressão.
O poder é uma tentação permanente, inclusive nas comunidades cristãs; isso se manifesta pela quantidade de vezes que encontramos no NT advertências às lideranças eclesiásticas para que não corrompam sua autoridade, convertendo-a em poder (1Ped 5,1-4).
O poder encontra sua expressão visível e sua força numa instituição de estrutura piramidal, hierárquica. Neste paradigma “de cima para baixo”, todos estão olhando para cima, tentando agradar aqueles que ocupam cargos, e não dirigem o olhar para os lados, onde a verdadeira realidade de uma instituição está acontecendo.
A estrutura hierárquica-piramidal fortalece a estrutura de poder, controle, vigilância, supervisão...; tal estrutura acaba por afetar e asfixiar a liberdade interna, a motivação e o compromisso dos membros da instituição; além disso, ela suprime iniciativas, criatividade e incentivos, em relação aos novos projetos.
O poder religioso é o mais tóxico, pois manipula consciências, alimenta culpa e medo de Deus, centraliza as decisões, é incapaz de escuta e de discernimento... Quão distante está da “sinodalidade”, modo original de ser e proceder das primitivas comunidades cristãs! Na Igreja não há poderes, e sim funções diferentes. Nela, a autoridade é exercida como um serviço fraterno.
Assim sendo, Jesus não se situou, diante de seus discípulos como o superior que exige “obediência” de seus súditos, mas como o amigo exemplar que desperta “seguimento” de seus fiéis “amigos” (Jo. 15.15). Jamais se disse dos discípulos ou de qualquer outro ser humano que se relacionasse com Jesus mediante a obediência ou a sujeição, que é a resposta obediente a uma ordem. Portanto, os Evangelhos não falam de “obediência” a um poder que se impõe, submete e manda. A relação que se estabelece entre os discípulos e Jesus é a do “seguimento”.
De fato, nos evangelhos o verbo “obedecer” nunca é aplicado a indivíduos ou grupos que se submetem a um superior. Com efeito, o verbo “obedecer” aparece nos Evangelhos apenas três vezes: quando se diz que “o vento e o mar obedecem” a Jesus (Mc. 4,41); quando o próprio Jesus diz aos discípulos que, se tiverem fé, até uma amoreira silvestre lhes obedeceria (Lc. 17,6); e, quando as pessoas ficam espantadas ao verem que Jesus “manda até nos espíritos impuros e eles lhe obedecem” (Mc. 1,27).
No entanto, o verbo “seguir” aparece 67 vezes para expressar a relação entre Jesus e aqueles(as) que creem e confiam n’Ele.
A autoridade de Jesus, portanto, não se fundamenta na submissão e nem se sustenta no poder que manda, que controla e que dá ordens, mas suscita seguimento, pois Ele se apresenta numa atitude exemplar que atrai e dá sentido à vida das pessoas que o circundam.
A partir deste pano de fundo, o evangelho deste domingo aparece como um manual de uma Igreja de servidores (as), onde a vida adquire seu mais profundo sentido, onde surgem relações novas, fundadas na gratuidade, na compaixão, na acolhida...
Já é tempo de uma revolução. Há de ser uma revolução original e não violenta que brota do evangelho. Uma revolução de gente boa, simples, inteligente, sábia, que pratica a empatia, a ética e o sentido comum, que valoriza o silêncio e a palavra, que acolhe a todos, brancos ou negros, homens ou mulheres...
Falamos da revolução do serviço. Jesus não atua por meio do poder, mas do serviço. Por isso, seus seguidores devem renunciar o poder (isto é, a imposição sobre os outros). Aqui se expressa a Nova Comunidade que nasce do coração do Compassivo e Servidor, invertendo o desejo de poder dos “filhos de Zebedeu” e dos outros dez que queriam organizá-la a partir de cima. Por isso, frente à manipulação messiânica dos “filhos de Zebedeu”, Jesus estabeleceu as bases de uma fraternidade onde não existe poder, senão serviço, exercido pelo “diakonos” (servidor libre).
Texto bíblico: Mc 10,35-45
Na oração: Diante de Jesus servidor deixe que Ele desvele sinais de “zebedeus” presentes em sua vida, quando busca poder, alimenta vaidade, tem desejos de imposição e controle sobre os outros, manipula consciências...
- Na sua comunidade (paroquial, religiosa, familiar...) predomina o poder que cria subservientes ou a autoridade que alimenta subsidiariedade (partilha, confia serviços e ministérios...).
Pe Adroaldo Palaoro sj
17.10.2004
“Bom Mestre, o que devo fazer para herdar a vida eterna?”
Uma pergunta fundamental que brota de nossa interioridade: como chegar a viver uma vida que tenha o sabor de “eternidade”, ou seja, para além das limitações do tempo, da fragilidade e da caducidade das relações humanas; em outras palavras, uma vida plena, livre, profunda, transbordante... Todos desejamos dar um sentido à nossa vida, vivê-la com intensidade e com inspiração. Não nos satisfaz a explicação de que viveremos essa vida “na eternidade”: não poderemos começar a vivê-la já agora, em meio às carências, desafios, perdas, fracassos, crises... que vão se fazendo presentes em nossa existência cotidiana?
Aqui não se trata uma aspiração a mais; é o desejo de toda pessoa conseguir uma existência digna e feliz. Quem deseja uma vida vazia? Preenchê-la parece ser a meta, mas a questão é: de quê. Alguns mais, outros menos, mas todos aspiram uma vida plena, intensa, completa...
O “quê” da questão surge quando alguém descobre sua mochila vital transbordante de objetos, riquezas, ansiedades, pressas e vivências que, enganosamente, se mostram valiosos, mas que na realidade não o são. E quão cheia parece estar essa vida! E quão vazia a pessoa podem se sentir! Essa é a “síndrome existencial” onde o acumular embota os sentidos, atrofia o interior e não deixa lugar para o que é verdadeiramente importante. Uma vida cheia? Cheia de quê? De Vida!
Aqueles que seguiram Jesus de perto fizeram a experiência de estar junto de alguém que vivia intensamente, sem colocar sua segurança na posse de bens ou no apego às pessoas, títulos, prestígio, poder... Seu único tesouro era a confiança em seu Pai, e seu projeto, como Mestre, era ensinar as pessoas a viverem a partir da liberdade e da alegria de servir, sem se deixar determinar pelo apego e preocupação em possuir e acumular.
É nesse contexto que alguém, de maneira inesperada, interrompe o caminho de Jesus, ajoelha-se diante d’Ele, chama-o de “Bom Mestre” e manifesta uma pergunta existencial, presente em todo ser humano: “que devo fazer para herdar a vida eterna? Chamou Jesus de “Bom Mestre”, não tanto como um reconhecimento de sua bondade, mas porque intuía nele uma autoridade capaz de orientar-lhe à hora de conseguir essa vida que tanto buscava. Mas Jesus, sem maiores explicações, remeteu-o à vivência dos mandamentos. Quando o homem lhe respondeu que os havia guardado desde sua juventude, Jesus fixou nele seu olhar com amor, acentuando a comunicação pessoal com alguém que andava buscando a Deus.
Jesus intui que o homem que está prostrado diante de si é bom, religioso e pratica os mandamentos; ele tem uma consistência humana; por isso, Jesus quer ajudá-lo a ir mais além da simples observância dos preceitos. A vivência dos mandamentos é necessária, mas não basta. Realizar o que está previsto pode ser até fácil e cômodo, mas não há muito mérito nisso; é preciso ser criativo e descobrir caminhos novos, e não apenas cumprir leis e preceitos. Para Jesus, não basta ser apenas cumpridores de normas, por mais recomendáveis e santas que sejam. A cada um Ele diz o que ainda “falta”.
Jesus não se fixa na situação atual daquele homem, preocupado em acumular riquezas, mas vislumbra nele uma outra possibilidade de vida e que estaria esperando em seu interior para nascer, para iluminá-lo nesse novo percurso existencial ao qual o “Bom Mestre” o convida a empreender. Para “herdar a vida eterna” é preciso investir os próprios recursos internos numa vida descentrada, oblativa, comprometida e que se expressa na partilha dos bens com os mais necessitados.
Jesus revela um olhar profundo capaz de vislumbrar o melhor que está presente naquele homem que veio correndo ao seu encontro, esperando uma ocasião para se expressar. Seu olhar contemplativo não permanece na superficialidade da pessoa, nas suas limitações e apegos.
Jesus viu, em profundidade, que o rico corria o risco de sufocar os desejos de liberdade, justiça e fraternidade presentes no mais íntimo do seu ser.
No diálogo com ele, Jesus o ajuda a discernir. Propõe-lhe que olhe o seu interior, à luz do amor com o qual Ele mesmo, olhando-o, o ama; é com esta luz do amor que o homem deve verificar a que seu coração está apegado verdadeiramente. Ele deve descobrir que seu bem maior não é acrescentar outros atos religiosos, talvez mais difíceis, mas, pelo contrário, esvaziar-se de si mesmo, vender o que ocupa sou coração para ampliar espaço para Deus. Esta é a chave que o abre à vida e que se encontra justamente na atitude de deixar, soltar, abandonar, desapegar-se, descentrar-se, partilhar... Viver esta vida com sabor de eternidade está longe de acumular, reter, colocar a segurança nos bens...
É uma indicação preciosa também para todos nós. Onde investimos o melhor de nós mesmos? Qual é o “tesouro” que nos seduz? Para onde estão orientados nossos “afetos”?
A “pressa” do homem do relato deste domingo, que veio correndo ao encontro de Jesus, parece que expressa uma falsa inquietude, uma má consciência, a necessidade de perfeição, de ser maior ou o melhor que os outros. Em todo caso, ele não está preocupado com a situação dos outros, mas com sua própria situação, com sua vida futura. Que importa a ele a situação dos camponeses, dos sem-teto, dos doentes... ou dos excluídos com os quais Jesus mais se preocupa?
Jesus o desafia a romper com seu mundo fechado, com seu modo legalista de viver... O desafio consiste em ir além da prática dos mandamentos, radicalizando-a. Como? Vivendo a solidariedade com os pobres e o desapego, numa experiência real da centralidade de Deus em sua vida, sem resquícios de idolatria. E, além disso, dar o passo do discipulado do Reino, no seguimento de Jesus.
Tal desafio deixa o homem contristado. O apego aos bens torna árido o seu coração, fecha-o no egoísmo, impede que ele se abra na direção de Deus e dos irmãos.
O “homem rico” do evangelho de hoje é o nosso espelho: nele nos vemos; nele Jesus nos desafia a sair de nossa acomodação, a romper nossa prática rotineira das leis, do apego aos bens, prestígio, poder... (falsos ídolos que nos desumanizam).
Jesus “olhou aquele homem com amor” e viu em seu interior ricas possibilidades, impulsos para algo maior, o desejo do “mais” ... Ele também dirige o seu “olhar” para cada um de nós e capta a grandeza e a nobreza presentes no nosso coração. Somos seres de travessia, de largos horizontes... Somos, por natureza, expansivos, em contínuos deslocamentos nos projetos, nos relacionamentos, na maneira de viver...
Nós nos humanizamos à medida que nos deixamos mover pelos sonhos, projetos, desejos profundos...
Ao mesmo tempo, Jesus, com seu olhar, “lê”, no mais escondido de nosso interior, os mais diferentes medos e apegos que minam a força e a coragem do seguimento.
Carregamos em nosso coração um “gérmen de vida” que busca desenvolver-se e chegar à plenitude.
S. Inácio nos diz que “Deus pôs grandes desejos em nosso coração”. O desejo é desejo de vida. O desejo não é a posse, mas a expectativa. Como explica S. Agostinho, o desejo escava no nosso interior uma capacidade maior de receber.
Quem se julga saciado ou pouco interessado em aceitar um esvaziamento de si, apaga dentro dele este desejo que tem sabor de eternidade e embarca numa vida medíocre e sem criatividade.
Texto bíblico: Mc 10,17-30
Na oração: diante de Jesus, que desafia a todos a “fazer estrada com Ele”, deixar ressoar estas perguntas: “há vida na minha maneira de viver atualmente? Há algum “afeto desordenado” que atrofia as potencialidades presentes em meu interior? Quem é o “senhor” que move meu coração? A quê me dedico a investir os melhores recursos que recebi como dons? O mundo dos pobres e excluídos desperta uma sensibilidade solidária em mim, ou permaneço “indiferente” frente a esta cultura do consumismo e do esbanjamento?...”
Pe Adroaldo Palaoro sj
11.10.2024
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“Desde o início da Criação, Deus os criou homem e mulher” (Mc 10,6)
Os fariseus apresentam a Jesus uma pergunta para pô-lo à prova. Desta vez não é uma questão sem importância, mas uma situação que alimenta muito sofrimento às mulheres da Galileia e é motivo de acaloradas discussões entre os seguidores de diferentes escolas rabínicas: “É lícito o marido separar-se de sua mulher?”.
Não se trata do divórcio moderno que conhecemos hoje, mas da situação em que vivia a mulher judia dentro do casamento, controlado absolutamente pelo homem. Segundo a Lei de Moisés, o marido podia romper o contrato matrimonial e expulsar sua esposa de casa. A mulher, pelo contrário, submetida em tudo ao homem, não podia fazer o mesmo.
A resposta de Jesus surpreende a todos. Não entra nas discussões dos rabinos. Convida a descobrir o projeto original de Deus, que está acima de leis e normas. Esta lei “machista”, em concreto, se impôs no povo judeu pela dureza do coração dos homens, que controlavam as mulheres e as submetiam à sua vontade.
Jesus aprofunda no mistério do ser humano a partir de sua origem, quando Deus “os criou homem e mulher”. Os dois foram criados em igualdade. Deus não criou o homem com poder sobre a mulher. Não criou a mulher submetida ao homem. Entre homens e mulheres não deve haver dominação por parte de ninguém.
A partir desta visão do ser humano, já presente na origem, Jesus oferece uma visão do matrimônio que vai mais além de tudo o que foi estabelecido pela Lei. Mulheres e homens se unirão para “serem uma só carne” e iniciar uma vida compartilhada na mútua entrega, sem imposição nem submissão.
Este projeto matrimonial é para Jesus a suprema expressão do amor humano. O homem não tem direito algum para controlar a mulher como se fosse seu dono. A mulher não deve aceitar viver submetida ao homem. É Deus mesmo que os atrai a viver unidos por um amor livre e gratuito. Jesus conclui de maneira clara: “O que Deus uniu, o homem não separe”.
Com esta posição, Jesus está destruindo na raiz o fundamento do patriarcado e do machismo, sob todas as suas formas de controle, submissão e imposição do homem sobre a mulher. Não só no matrimônio, mas em qualquer instituição, civil ou religiosa.
O evangelho de hoje nos convida a retornar ao início da criação do ser humano, homem e mulher, chamados a viver a vocação da união mútua. O homem deve deixar seu pai e sua mãe, deve abandonar o sistema patriarcal e empreender um novo caminho, não já em solidão, mas na união maior imaginável: “se unirá à sua mulher e serão os dois uma só carne”. A identidade não é uma soma, mas a comunhão crescente que busca a unidade.
Esta proposta original de Deus é vivida sempre entre os casais, de ontem e dos tempos atuais?
Hoje descobrimos, talvez com mais claridade que em outros tempos, o quão difícil para muitos casais manter a unidade amorosa, que no princípio de sua relação parecia ser tão forte.
São muitos os fatores dissonantes que impedem o “concerto amoroso”, são muitos os distanciamentos, as incompatibilidades, as divisões..., que esfriam o romance entre os casais. Hoje também, mais conhecedores da biologia e da psicologia humana, somos mais sensíveis e compreensivos para com aqueles que vivem profundos conflitos na relação matrimonial e, no entanto, sentem o chamado para a unidade.
A partitura que o Criador nos oferece de comunhão entre o homem e a mulher é belíssima, é “imagem e semelhança do mesmo Deus”, mas também é difícil interpretá-la como projeto de vida e de aliança sem volta atrás.
Jesus, na sua vida oculta e pública, encontrou uma realidade de muitos casais que não correspondia àquela desejada por seu Abbá Criador: “no princípio não foi assim!”. Ele que tem palavras de vida (transmissoras de vida), afirma taxativamente: “O que Deus uniu, o homem não separe”.
Estas palavras não são uma lei fria, mas uma promessa, uma realidade possível. O ser humano pode bloquear, com sua falta de fé e seu compromisso, o dom que lhe foi concedido. É preciso deixar o protagonismo para Deus na relação de casal.
Jesus convida a deixar-se unir por Deus, a descobrir aquela pessoa, na qual cada ser humano encontra sua “ajuda semelhante”. É preciso saber discernir que é “o que Deus uniu”. Bendizer aquilo que Deus “não uniu” é uma profanação. A beleza do Sacramento do Matrimônio está precisamente em deixar transparecer a benção de Deus diante daquele casal que Ele foi unindo através da aventura e do romance amoroso.
Ou seja, “serão uma só carne” quando realizam essa união ao longo da vida; tal realidade não se revela de forma automática ou mágica no instante de dizer “sim, quero”. Demora toda uma vida em realizá-la; às vezes não se consegue, o vínculo se interrompe ou se fragiliza. Requer, em alguns casos, sanação; em outros, refazer o caminho da vida.
O Evangelho de Jesus Cristo não é um código canônico, mas a Boa Nova da misericórdia. Deus nos ama também e, sobretudo, em nossas falhas e fracassos. A Igreja não é alfândega, mas casa paterna-materna onde há lugar para cada um com sua vida, carregada de recursos e de fragilidades.
Não se trata de pôr em discussão a visão cristã do matrimônio, mas de ser fiéis a esse Jesus que, ao mesmo tempo que defende o matrimônio, se faz presente a todo homem ou mulher, oferecendo-lhes sua compreensão e sua graça. Nunca se deixa determinar pela lei que julga e condena; mas, deixa transparecer um coração compassivo e acolhedor para com aqueles(as) que fracassaram em seu projeto de amor mútuo.
O próprio Jesus, que condena o adultério, se apresenta como defensor de uma mulher surpreendida em adultério, quando se encontra com ela cara a cara, cuja vida as autoridades religiosas queriam eliminar, Jesus, com sua atitude misericordiosa, longe de destruí-la, a perdoa e lhe oferece um novo futuro: “Nem eu te condeno. Vai e de agora em diante não peques mais”. Esta é a atitude mais humana e humanizadora: crítica exigente frente a uma sociedade que chama “amor” a qualquer coisa. E toda a compreensão do mundo diante de quem tem que viver situações de dor e de sofrimento, porque seu amor se rompeu ou fracassou.
Os fracassos matrimoniais não são sempre e nem fundamentalmente um problema jurídico que se possa resolver com determinadas leis. São problemas pessoais, emocionais, psíquicos, de raízes e consequências muito profundas, que as leis não podem nunca solucionar.
Temos de redescobrir atitudes mais próximas para com os casais rompidos, independentemente de soluções jurídicas, civis ou eclesiais. Como cristãos, não podemos fechar os olhos diante de um fato profundamente doloroso. Os(as) divorciados(as), geralmente, não se sentem compreendidos pela Igreja, nem pelas comunidades cristãs. A maioria só escuta a aplicação de leis e disciplinas que não conseguem entender. Abandonados(as) em seus problemas e sem a ajuda de que necessitam, não encontram na Igreja o lugar da acolhida.
É precisamente nestas circunstâncias quando deveríamos nos perguntar o que podemos fazer, como cristãos, para ajudar tantos homens e mulheres que vivem situações de profundas dores, provocadas por conflitos e incompatibilidades na vivência matrimonial. Não basta defender teoricamente a indissolubilidade matrimonial e impor mais pesos sobre os ombros dos casais católicos que não podem carregar.
Temos de nos perguntar: que ajudas as comunidades cristãs podem oferecer a tantas pessoas que fracassaram em seu matrimônio, devido a uma opção não amadurecida, a uma falta de conhecimento mais profundo do(a) parceiro(a), a uma deterioração em sua comunicação, a incompatibilidades psicológicas, ou simplesmente por uma atitude egoísta?
É injusto que, levados por um rigorismo e legalismo excessivo, marginalizemos e esqueçamos muitos homens e mulheres que se esforçaram por salvar seu matrimônio, e que já não tem mais forças para enfrentar sozinhos(as) seu futuro.
Mais misericórdia e menos rigorismo!
Texto bíblico: Mc 10,2-16
Na oração: fazer memória de muitas pessoas que sofrem por causa do fracasso matrimonial e que não encontram apoio na comunidade cristã.
- Qual sua atitude diante delas? Rigidez na aplicação de leis ou acolhida misericordiosa?
Pe Adroaldo Palaoro sj
02.10.2024
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“Eles ficaram calados, pois pelo caminho tinham discutido quem era o maior” (Mc 9,34)
Continuamos o percurso contemplativo, deixando-nos ensinar pelo Mestre Jesus. No evangelho deste domingo, Ele atravessa a Galileia, a caminho de Jerusalém; e faz isso de maneira reservada, sem dar publicidade. Ele deseja se dedicar inteiramente à instrução dos seus discípulos. É muito importante o que Ele quer gravar em seus corações: seu caminho não é um caminho de glória, de êxito, de poder. Pelo contrário: é o caminho da fidelidade à causa da vida, do compromisso em aliviar o sofrimento humano, da entrega radical em favor dos últimos.
Jesus frustra os planos e as expectativas de seus discípulos e lhes propõe como critério de grandeza o serviço aos outros; estabelece como critério de honra o cuidado dos pequenos. Esta é a lógica do Reino: esvaziamento de toda pretensão de poder e vaidade, que envenenam as relações entre as pessoas, para poder construir a fraternidade sobre outros fundamentos: serviço solidário, atenção compassiva, cuidado amoroso.
Ao chegarem em casa, Jesus sentou-se; quer ensinar aos discípulos algo que eles nunca deverão esquecer. Desmascara a competição entre eles para saber quem era o “maior”. Chama os “Doze”, aqueles que estão mais intimamente associados à sua missão e os convida a que se aproximem, pois os vê muito distanciados d’Ele. Para seguir seus passos e identificar-se com Ele, é preciso aprender duas atitudes fundamentais.
Primeira atitude: “se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos!”. O discípulo de Jesus deve renunciar toda pretensão de ambição, de ser importante, de honras e vaidades. Em sua comunidade ninguém deve pretender estar acima dos outros. Pelo contrário, deve ocupar o último lugar, descer ao nível daqueles que não tem poder e nem ostentam título algum. E, a partir daí, ser como o próprio Jesus: “servidor de todos”.
A segunda atitude é tão importante que Jesus ilustra com um gesto simbólico provocativo: coloca uma criança no meio dos Doze, no centro do grupo, para que, aqueles homens ambiciosos deixassem de se preocupar com honras e grandezas, e centrassem seus olhos nos pequenos, nos frágeis, nos mais necessitados de defesa e cuidado.
Deste modo, Jesus denuncia nossas tendências egóicas que estabelecem hierarquias de mando, divisão entre “superiores e inferiores”, vaidade religiosa. Para Ele, a atitude de serviço não é questão meramente ascética, mas uma proposta profética que quebra qualquer pretensão de divinizar estruturas, de justificar privilégios, de compactuar com os poderosos deste mundo.
Jesus tem plena consciência de que nenhum poder é mediação de salvação; e o pior poder é o “religioso”, pois alimenta medo e culpa, cria dependência doentia e trava toda autonomia pessoal. A cultura do poder suga o “espírito” da vida de uma comunidade, minando sua criatividade e fragilizando seus laços de convivência. O poder não constrói comunidade, pois quem tem poder se cerca de subservientes que cumprem suas ordens, dizem amém às suas ideias ou calam-se coniventes. Por seu caráter impositivo, o poder deteriora relacionamentos, resvalando-se para o terreno pantanoso da competição, da suspeita, da intriga. Quem tem “poder” o centro está em si mesmo; por isso é que toda expressão de poder é violenta, exclui, impõe-se ao outro, domina...
O poder “mata a criança” que todos carregam em sua essência, impedindo-a de se expandir.
A verdadeira grandeza consiste em servir. Para Jesus, o primeiro não é aquele que ocupa um cargo de importância, mas quem vive servindo e ajudando os outros. Os primeiros na Igreja não são os hierarcas, mas as pessoas mais simples que vivem ajudando àqueles que encontram em seu caminho.
O poder é uma das forças mais sedutoras e que sempre exerceu grande fascínio nas pessoas. Não há ser humano que não tenha sido “tentado” pelo canto desta sereia. Sabemos que o poder nos infla como balões, com desejos de subir, e estar no mais alto, longe de tudo o que é humano, onde as fragilidades e sofrimentos das pessoas não nos afetam, onde possamos vencer, distinguir-nos dos outros...
A palavra “poder” indica sempre uma relação de dependência, manifesta uma desigualdade. Aquele que exerce o poder está acima daquele que se submete a esse poder. Jamais, nem se insinua nos evangelhos, que Jesus se relacionasse com o ser humano a partir da superioridade de quem manda sobre o inferior que obedece. A relação de Jesus com os discípulos e com as pessoas se expressa sempre, nos evangelhos, mediante a experiência do “seguimento”, que nasce da “exemplaridade”, nunca da “submissão”, que é a resposta do fraco ao forte, do pequeno ao grande.
Jesus nunca teve “poder” e nunca transmitiu “poder” aos seus discípulos. Ele deu-lhes “autoridade”, o que é bem diferente. E o evangelho destaca que se trata de uma autoridade “para expulsar demônios e curar enfermos”. Não é um poder doutrinal e, menos ainda, judicial. É uma autoridade terapêutica, para aliviar sofrimentos e fazer felizes as pessoas em suas relações com os demais e sua relação com Deus.
Quem tem poder, o centro está em si mesmo; quem tem “autoridade” o centro está fora, no outro. Significa despertar a autonomia, a autoria do outro; não alimenta dependência, mas ativa o melhor que há no outro.
Jesus, que foi tão tolerante com os discípulos em outras coisas, neste ponto foi taxativo: “Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e o servidor de todos!”
Ao abraçar carinhosamente uma criança, diante de todos, Jesus indica que o centro de sua comunidade não deve estar ocupado pelos grandes e poderosos que se impõem aos demais, a partir de cima. Em sua comunidade precisa-se de homens e mulheres que “desçam” para acolher, servir, abraçar e bendizer os mais fracos e necessitados.
O Reino de Deus não se expande a partir da imposição dos grandes, mas a partir da acolhida e defesa dos pequenos. Onde estes se convertem no centro de atenção e cuidado, aí está chegando o Reino de Deus, a nova sociedade humana que o Pai quer.
Entrar no Reino significa acolher e compartilhar o Projeto de Jesus; isso torna-se impossível para quem fundamenta sua vida por critérios de poder, prestígio, ambição...
Nesse contexto, o fato de Jesus propor as crianças como paradigma das relações da comunidade do reino, supõe uma mudança radical, eliminando hierarquias. Isso implica identificar-se com os mais desfavorecidos, de considerar dignos aqueles que não são contados, a “massa sobrante”; é preciso uma mudança de mentalidade e compreender que, para os seguidores e seguidoras do Mestre, os primeiros e mais importantes lugares são para os últimos; e não é só por um gesto de compaixão, mas porque essa é a chave para abrir o sentido da conduta no seguimento de Jesus e para compreender o coração do próprio Deus.
O caminho para Deus passa pela descida em direção aos outros, pelo compromisso com os pequenos e últimos, pela compaixão para com os mais carentes... O Deus que Jesus nos revela é o Deus que se faz presente no pequeno, no simples, naqueles que não tem voz e nem vez neste mundo. Não é o Deus do poder absoluto, nem o Deus que exige obediência e submissão àqueles que se apresentam como seus representantes.
A estrutura da “nova comunidade” não é piramidal ou hierárquica, mas circular. O centro já está ocupado por uma “criança” nos braços de Jesus. Ao redor deles estamos todos, com serviços e ministérios diferentes.
Aqui não há lugar para alimentar “egos inflados”, prepotentes, autoritários...
A casa cristã é o lugar de benção, onde todos são acolhidos, começando pelas crianças, por serem as mais frágeis e necessitadas. Jesus funda a “comunidade da ternura”.
Texto bíblico: Mc 9,30-37
Na oração: A palavra-chave do evangelho deste domingo é “acolhida”: ela expressa uma atitude de descentramento e sensibilidade diante dos mais vulneráveis; ela quebra toda tendência de imposição sobre os outros e revela que é anti-evangélico alimentar competição para saber quem é mais importante ou mais poderoso.
- Seu espaço familiar, sua comunidade, seu ambiente de trabalho... se revela como lugar de acolhida e de bênção ou ambiente que alimenta competição e ativa o apetite de poder e de vaidade?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
20.09.2024
“Quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, vai salvá-la” (Mc 8,35).
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, sacerdote jesuíta, comentando o evangelho do 24° Domingo do Tempo Comum - Ciclo B que corresponde ao texto bíblico de Marcos 8,27-35.
O Seguimento é tema central em todos os evangelhos, ou seja, “fazer o caminho” com Jesus, identificando-se com Ele na entrega aos outros, sem buscar para si poder ou glória.
Ao longo de todo seu escrito, Marcos manifesta uma prevenção especial frente a qualquer ideia de um messianismo triunfalista, centrado no poder e na glória. O caminho do Messias – repetirá diversas vezes – passa pela entrega e pela cruz. Os discípulos, pelo contrário, aparecem obcecados, “surdos e cegos”, discutindo habitualmente por questões de poder, de importância e de privilégio, enquanto que Jesus lhes fala de serviço e doação.
Neste sentido, é sumamente significativo o contraste que Marcos apresenta, intencionalmente, entre o caminho de Jesus e o caminho dos discípulos: nos três anúncios da paixão, quando Jesus lhes fala de seu caminho de entrega, eles manifestam uma clara resistência. O choque é grande: Jesus e seus discípulos caminham em direções diametralmente opostas: o caminho serviço X o caminho da ambição.
Mas, para Jesus, trata-se de uma questão não negociável: seu caminho reflete o “pensamento de Deus”.
A vontade do Pai nunca passará pelo caminho do poder sobre os outros, senão pelo caminho do serviço.
No evangelho deste domingo, a divergência entre ambos caminhos fica explicitada tanto na reação de Pedro como na resposta dura de Jesus. O caminho dos discípulos reflete os mecanismos próprios do ego, que não busca outra coisa a não ser a autoafirmação a qualquer preço, apegando-se ao ter, ao poder e ao aparentar, ao mesmo tempo que foge de tudo o que soa a desapego e entrega.
Para o ego, a entrega desinteressada é uma loucura, que é preciso evitar a todo custo. Para Jesus, pelo contrário, o impulso do ego se opõe frontalmente a Deus.
A resposta de Jesus a Pedro é a mesma que Ele deu ao diabo nas tentações; nem aos fariseus, nem aos letrados, nem aos sacerdotes dirige Jesus palavras tão duras. Quer com isso indicar que a proposta de Pedro era a grande tentação, também para Jesus. A verdadeira tentação não vem de fora, mas de dentro. O difícil não é vencê-la, mas desmascará-la e tomar consciência de que ela é a que pode arruinar a Vida.
Pedro é “Satanás” na medida em que espera que Jesus siga o caminho do messianismo convencional, glorioso, vencedor dos inimigos do povo, que estabelece seu próprio reinado, e não aceita o caminho que Jesus começa a propor, o do serviço que acaba na cruz.
Mas Jesus não rejeita Pedro e nem pede a ele simplesmente que se vá ou se afaste (costuma-se traduzir por “aparta-te de mim...”). Diz-lhe “põe-te detrás de mim”; a mesma expressão que utiliza no versículo seguinte: “se alguém quiser vir atrás de mim...”. Ou seja, Jesus está repropondo a Pedro e aos discípulos o seguimento e que se ponham atrás d’Ele, agora que o caminho vai passar pela cruz.
E aqui vem a frase que fecha, como chave de ouro, toda a cena: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga”.
Uma consideração superficial destas palavras deu margem a uma apresentação do cristianismo como a religião que preconizava a dor e a negação da própria vida e da própria identidade.
Jesus vive na sabedoria de onde brota a fidelidade. Não vive para o ego, que busca sempre seu interesse e comodidade, mas está ancorado naquela identidade profunda, na qual permite que a Vida flua, numa atitude de serviço ou de entrega sábia.
Aquele que quer salvar seu ego, perde a Vida, porque se fecha numa jaula estreita e se introduz em um labirinto de inevitável sofrimento e, em último termo, de vazio e sem-sentido. Uma existência egocentrada, embora aparentemente satisfatória para o ego, não pode evitar uma sensação de profunda insatisfação.
Todos os caminhos autênticos de espiritualidade começam por um esvaziamento do ego, uma renúncia de si mesmo, não para negar-se como pessoa, mas, pelo contrário, para crescer ao recuperar sua verdadeira identidade na totalidade. Quando “eu me perco”, então me encontro; quando meu ego diminui, descubro que faço parte de algo maior, que pertenço a Deus. A “renúncia a si mesmo”, que Jesus propõe, não é um exercício de masoquismo, mas uma maneira mais profunda de realização humana.
Portanto, a expressão “renunciar a si mesmo” faz referência ao nosso falso “eu”, aquilo que, iludidos, acreditamos ser: o “eu” que busca poder, prestígio, riqueza... O desapego do falso “eu” é imprescindível para poder entrar no caminho de vida que Jesus propõe.
“Renunciar a si mesmo” é não se reduzir ao eu superficial ou ego. Só quando nos desapegamos do eu, tomamos consciência de nossa identidade mais profunda, a vida que somos.
Essa é a Vida de que fala o Evangelho, a mesma Vida que Jesus viveu, com a qual Ele estava identificado (“Eu sou a Vida”) e que buscava despertar em todos os seus seguidores(as).
O ego compara-se com os outros e compete pelos elogios e pelos privilégios, pelo amor, pelo poder e pelo dinheiro. É isso que nos torna invejosos, ciumentos e ressentidos em relação aos outros. Também é isso que nos torna hipócritas, dominados pela duplicidade e pela desonestidade.
Aquele que não é capaz de superar o “ego” e nem da centralidade em si mesmo), frustra toda sua existência; mas, aquele que, superando o egocentrismo, descobre seu verdadeiro ser “des-centrado e oblativo”, vivendo em favor dos outros, dará pleno sentido a toda sua vida e alcançará sua verdadeira plenitude humana.
Precisamos reconhecer que, aquilo que para nosso ego é “perda” e perigo, para nosso Eu verdadeiro é ganho profundo e libertação.
“Renunciar a nós mesmos” não é cair em um auto-menosprezo, nem anulação daquilo que somos, mas descobrir que há valores que estão mais além de nós mesmos. É tomar consciência que há recursos e capacidades superiores pelos quais vale a pena investir a vida, assumindo as consequências.
“Tome sua cruz e me siga”: tampouco Jesus quer apresentar-nos um cristianismo e um seguimento doloroso. A verdadeira cruz do cristão não está no sofrimento, não está na dor de privar-nos de tudo, não está nas penitências e sacrifícios... A verdadeira cruz do seguimento de Jesus é a da fidelidade ao evangelho, ao amor, ao compromisso, à própria vocação de serviço.
A cruz do cristão não pode ser outra que a Cruz do mesmo Jesus. Ele nunca amou a cruz como cruz. Mas tampouco fugiu dela por manter-se fiel ao Reino e ao Evangelho que anunciou. Ele nunca amou a dor pela dor, ao contrário, sempre buscou aliviar a dor dos outros. Mas tampouco fugiu, negando sua própria verdade, sua própria missão e sua própria identidade.
A cruz para todo(a) seguidor(a) nunca pode ser uma meta; ela é sempre uma consequência. A cruz para o cristão não é algo que se busca, mas uma realidade que chega a partir de fora, como consequência da verdade e da autenticidade evangélica.
Texto bíblico: Marcos 8,27-35
Para meditar na oração
Nosso coração se encontra diante da revelação do “eu original”, porque está en-raizado na identidade do próprio Jesus (“quem sou eu para vocês?”).
A contemplação de Jesus é também revelação do eu “escondido com Cristo em Deus” (Col. 3), ou seja, revelação da verdade do meu eu profundo, onde descubro os traços de minha própria fisionomia.
Não posso responder a essa pergunta – “Quem é Jesus para mim” – se não me pergunto ao mesmo tempo: “Quem sou eu, diante do Senhor”? Sem identificação não haverá um encontro profundo com o Senhor. O encontro comigo mesmo me aproxima do encontro com o Senhor e o encontro com o Senhor revela minha própria identidade.
Sua vida cotidiana: Descentrada? Oblativa? Aberta ao diferente?... Ou: Auto-centrada, “buscando o próprio amor, querer e interesse”?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
13.09.24
“Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (Mc7,6)
O relato do evangelho deste domingo se abre com a apresentação dos personagens. Jesus aparece como ponto de referência frente a dois grupos de indivíduos (“os fariseus e alguns mestres da lei”), representantes do poder religioso oficial, ou seja, grupos de piedosos que exerciam uma pressão religiosa sobre o povo em sua pretensão de submetê-lo a uma existência marcada pelo rigorismo religioso e pelo legalismo.
Como se explica esse fenômeno do farisaísmo religioso, tão frequente também entre nós? Estamos falando da eterna tentação, de ontem e de hoje: apresentar-se em nome de Deus para impor pesados fardos sobre as pessoas, ameaçando-as e impedindo-as de viver com mais leveza. Segundo o Papa Francisco, trata-se do terrível “poder de consciência”, exercido por autoridades religiosas, e que são profundamente manipuladoras e destruidoras da verdadeira identidade das pessoas. Na verdade, percebemos nas comunidades cristãs um florescer de práticas devocionais vazias, ritos estéreis, normas inúteis..., que só alimentam medo de Deus e culpa doentia.
Quando a religião (no sentido original de “re-ligar”) se transforma em culto vazio, em palavras ocas que são levadas pelo vento, em simples rotina..., esvazia-se a vida, fragiliza-se o compromisso com o outro e se distancia do verdadeiro Deus revelado por Jesus. De fato, para o Mestre de Nazaré, “Deus é leve”, não complica a vida humana com mais cobranças e ameaças; basta ser transparência do Seu Amor.
Aqui está a chave para compreender o conflito de Jesus com os homens mais religiosos e observantes de seu tempo. Tal conflito se centrou em questões relativas à imagem de Deus, ao caráter absoluto das leis e normas religiosas, descendo inclusive até às chamadas “normas de pureza”. De um modo esquemático, o conflito poderia resumir-se nestas contraposições: a gratuidade frente ao mérito; o valor da pessoa acima da lei; o cuidado da interioridade frente à absolutização das tradições.
De um lado, encontramos o “ritual” e o “sagrado” como componentes essenciais da religião dos sacerdotes, fariseus e mestres da lei; de outro, encontramos nos evangelhos que o central na vida e na mensagem de Jesus não foi nem o “ritual”, nem o “sagrado”, mas o “humano”. O centro da mensagem e da atividade d’Ele não estava no templo, nas observâncias das normas e leis, na preservação da tradição religiosa..., mas na saúde dos enfermos (curas), na alimentação das pessoas (refeições), nas sadias relações humanas.
Jesus viu claramente que a religião dos ritos e do sagrado (com seus poderes, privilégios e dignidades) gerava exclusão, culpa, medo... Tal realidade era o impedimento mais imediato e mais forte para as pessoas entenderem e viverem o que significava o “Reinado de Deus”.
O Evangelho deste domingo nos situa, portanto, diante desta desumana realidade provocada por uma falsa compreensão da religião. Para Jesus, nada do que vem de fora contamina o ser humano. Isso significa que toda pessoa possui uma interioridade impoluta e resguardada, que nada nem ninguém de fora poderá destruir. No mais profundo de cada ser humano há um “sacrário”, dotado de recursos e beatitudes originais que não podem ser alcançados pela “mancha” externa do legalismo e do moralismo. Dessa forma, Jesus declara o valor absoluto da pessoa humana como portadora de valores que ninguém poderá atingir.
O que mancha a pessoa é o que sai de dentro dela. Ninguém pode manchá-la, mas ela pode manchar-se a si mesma, porque “é” um ser de coração do qual brota o bem, a verdade, o amor..., mas pode brotar também o mal, o ódio, a intolerância... O ser humano é um “ser interior” que pode desenvolver-se de forma criativa, mas também de maneira destruidora. Esta é a maior revelação de Jesus, que anuncia o Deus que quer salvar a todos, mas a partir do lugar da verdadeira interioridade. O que decide o ser humano é o coração; se este estiver petrificado, é preciso arrancá-lo e colocar em seu lugar um coração de carne, capaz de crer e amar.
Este “princípio da interioridade”, indicado por Jesus, é que define e marca a novidade do evangelho; por isso, como Libertador, empenha-se por livrar as pessoas de tudo aquilo que lhes podia oprimir e destruir a vida. Jesus interpreta a pureza ou impureza como realidade que brota do coração e, dessa forma, devolve ao ser humano sua autoria, sua autonomia. A missão da verdadeira religião é facilitar para que homens e mulheres sejam autônomos na linha do bem, que ativem seus recursos internos, que sejam livres no compromisso e no serviço da vida dos outros.
Nenhuma religião pode ter a pretensão de anular a consciência das pessoas. Seria um fatal erro atrofiá-la com ritualismos, preceitos e normas, impedindo a manifestação da voz de Deus, única e original, no interior de cada um. Despertar essa consciência é a tarefa de todo ser humano para chegar à plenitude de seu próprio ser. Daqui nasce a verdadeira sabedoria, unindo mente e coração. Nessa proximidade de Deus, que habita em nós e nos conecta com o universo, se forja nossa verdadeira identidade de filhos(as) d’Ele e irmãos(ãs) de todos. Quando conectamos com esta realidade interior toda nossa vida se equilibra e adquire sentido. Esbarramos na fonte não contaminada e que nos humaniza.
Nós vivemos a fé dentro da religião cristã, com raízes judaicas. A fé é nossa adesão de coração a um Deus que nos cria e nos ama, a um Pai que nos salva em seu Filho. Sem essa experiência fundante, nossa religião torna-se vazia, fica restrita a uma aparência vistosa, sujeita a manipulações de todo tipo.
Quanto “farisaísmo” há em nossos costumes cristãos! Quanto ritualismo, tradição, conservação e normas sem sentido! Quando perdemos a relação com a pessoa de Jesus Cristo tudo se converte em doutrina e ritualismo que nos conduzem a uma religião intimista e egóica. O que vem depois se enche de pré-juizos, julgamentos e sentenças. Esquecemos a medida do amor de Deus para impor a nossa medida moralista, excessivamente pobre, egoísta e insensata. Isso atenta contra nós mesmos e envenena as relações sadias que deveriam sustentar nossa vida.
O texto de Marcos nos situa, portanto, diante de duas maneiras opostas de entender e viver a religião: a estéril (ou perniciosa), que coloca a lei acima das pessoas, e a de Jesus, centrada no compromisso com os mais pobres e excluídos. Esta dicotomia na forma de entender a religião acontece em todos as épocas e culturas da história; por isso, a religião tem sido a mediação que fez emergir tanto o melhor quanto o pior da humanidade; ela tem possibilitado o surgimento de experiências sadias e profundas como também tem gerado tantas “doenças” nas pessoas, provocadas pela culpa e pelo medo.
Uma religião absolutizada, carregada de normas, leis, penitências, tradições... se faz indigesta e provoca automaticamente rejeição nas pessoas mais livres, lúcidas e abertas; estas se rebelam contra a imposição, o autoritarismo e qualquer pretensão exclusivista. E, na medida em que as pessoas crescem em espírito crítico, descobrem com facilidade que, detrás da fachada de solenidade com a qual muitas “autoridades religiosas” costumam se apresentar, se esconde uma incoerência humana que elas mesmas condenam. Jesus as chama de “hipócritas” e os desmascara porque manipulam Deus e usam da religião em proveito próprio.
Como cristãos, somos seguidores(as) de um Homem tremendamente livre diante das leis, das tradições, dos ritualismos..., pois o centro de sua missão está em despertar a vida e vida em plenitude. Suas palavras e seus gestos ousados despertam em nós uma atitude de sentinela diante deste “vírus” de aparência inofensiva, que entra em nós sob a forma de mero cumprimento de leis e sai com uma pesada carga de julgamento, de imposição, de condenação e controle sobre aqueles com quem convivemos. Um vírus antigo e contagioso, uma “covid do espírito”.
Texto bíblico: Mc 7,1-8.14-15.21-23
Na oração: Reze tuas “mãos”. Tuas mãos... sacramento de Deus, pois tornam presentes e visíveis as mãos d’Ele.
Tens no coração o Amor de Deus. A força que te leva a amar o outro como Deus o ama. Serás a mão amiga de Deus, tua mão terna e carinhosa, tua mão forte e libertadora, tua mão criadora de vida, tua mão generosa que protege e cuida a vida.
Mãos para unir, criar, curar, abençoar... como as de Jesus.
Mãos abertas para compartilhar. Mãos que não retém o que o irmão necessita. Abrir a mão, abrir o coração, abrir as entranhas de misericórdia. Caminhas tu pela vida com tuas mãos abertas?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
27.08.2024
“Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la” (Jo 6,60)
O ser humano precisou de milhares de anos para desenvolver um sistema de comunicação tão complexo como a escrita e a palavra que manejamos hoje em dia, muito provavelmente, como parte de sua busca de transcendência, de seu interesse por deixar pegadas, por sobreviver em sua memória. Essa memória falada e escrita, pessoal e coletiva, é riqueza para continuar avançando. Somos o que somos pelo que falamos e pelo que escrevemos.
As palavras, por sua natureza, são ambíguas; podem brotar das profundezas mais sadias de nosso ser (palavras de vida) ou das regiões mais petrificadas e fétidas de nosso interior (palavras de morte); com elas nos humanizamos ou nos desumanizamos; através da palavra criamos ou destruímos, nomeamos ou eliminamos. Com a palavra podemos estabelecer um diálogo construtivo ou envenenar toda possibilidade de encontro e acolhida. As palavras elevam e afundam, constroem e destroem. Com elas se movem os sentimentos, os corações, as vontades. Podem ser usadas para formar ou deformar, para informar, manipular ou coagir. As palavras reforçam e fazem o outro sentir forte ou aumentam a fragilidade e o sentimento de vulnerabilidade. As palavras aproximam as pessoas construindo pontes ou afastam construindo muros e abismos. As palavras podem ser um canto que embeleza e estimula o coração ou podem provocar consequências devastadoras nas relações.
Com as palavras acompanhamos o outro em processos de pacificação e reconstrução de si mesmo, ou alimentamos o rancor e o ressentimento. Com pouco arsenal, as palavras são uma arma com imenso poder de destruição como as “fake News”, o ódio, a intolerância e o preconceito.
Hoje as palavras estão se enfraquecendo cada vez mais, feridas de morte. Palavras como participação, ética, democracia, povo, liberdade, amor, justiça... são usadas e abusadas tanto, conferindo a elas significados tão diversos, dispares e interessados que terminam convertendo-se em meros fetiches, palavras infladas e ocas, sem nada dentro. Quê quantidade de palavras costumamos dizer para, em muitas ocasiões, não dizer nada!
Vivemos cercados por uma aluvião de palavreado crônico que tem seus efeitos colaterais, ou seja, não só a palavra do outro acaba perdendo seu valor, como também a nossa própria palavra, que passa a ser uma a mais em meio a este oceano de vozes e palavras; torna-se “palavra líquida”, pois escapa pelos dedos sem deixar marcas. Palavras que sobram, palavras que faltam, palavras que dizem, palavras que escondem
Há palavras que é melhor não dizer, porque não são necessárias, porque julgam sem tentar compreender, porque são falsas; palavras de maledicência ou de crítica injusta, de fofoca e de condenação; palavras desnecessárias, ou conversa-fiada para preencher silêncios que assustam; palavras de zombaria que ignoram a dor do mais frágil; palavras que apunhalam pelas costas.
Para que a palavra dê fruto, não podemos nos contentar só com o fato de purificar a motivação quando a usamos, pronunciá-la no momento adequado, torna-se oportuna para aliviar, lubrificar, confrontar...; mas, também é preciso também apurar os ouvidos para escutá-la, acolhê-la com respeito, abrir espaço para que desperte ressonâncias em nosso interior. A palavra deve ser acolhida com disposição para deixá-la que se faça fecunda. E escutar, princípio de toda palavra, pede tempo, paciência, ausência de protagonismo e levar a sério o outro. Como dizia Amado Nervo, “o sinal mais evidente de que se encontrou a verdade é a paz interior”, ou, como dizia Jesus, “a verdade vos libertará”. A verdade liberta das próprias falsidades e arrogância, dos medos e ataduras.
O Evangelho de hoje pode ser uma estupenda ocasião para esquecer velhas palavras desgastadas pelo uso, pronunciadas para afirmar nosso ego ou para conseguir aprovações alheias... e substitui-las por palavras essenciais, nascidas do espírito, que saem do coração e se dirigem ao coração dos outros, fazendo ressoar neles um eco da expressão proferida por Pedro: “A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna”.
Ele sente que as palavras de Jesus não são palavras vazias nem enganosas. Junto a Jesus descobriram a vida de outra maneira. Sua mensagem lhes abriu à vida eterna. Com que poderiam substituir o Evangelho de Jesus? Onde poderiam encontrar uma Notícia melhor de Deus?
Pela primeira vez Jesus experimenta que suas palavras não têm a força desejada. No entanto, não as retira senão que reafirma mais ainda: “As palavras que vos falei são espírito e vida. Mas entre vós há alguns que não creem” (Jo 6,63). Suas palavras parecem duras, mas transmitem vida, fazem viver, pois contém Espírito de Deus.
Jesus não perde a paz; o fracasso não lhe inquieta. Dirigindo-se aos Doze, faz uma pergunta decisiva: “Vós também quereis ir embora?”. Não os quer reter pela força; deixa-lhes a liberdade de decidir. Seus discípulos não devem ser servos, mas amigos. Se quiserem, podem voltar às suas casas.
Também hoje, as palavras de Jesus continuam nos provocando, nos chamando, desvelando nossas incoerências e contradições internas. Elas podem nos assustar quando nos sentimos incapazes de segui-lo com mais intensidade; elas nos inquietam quando pedem renúncia de nosso próprio ego. São palavras que falam de seguimento e radicalidade, de paixão e entrega, de morte e de Vida. Palavras inspiradoras e, ao mesmo tempo, provocativas, pois nos arrancam de uma vida estreita e petrificada. Palavras que despertam o melhor que há em nosso interior, humanizando-nos e humanizando nossas relações. Palavras que fazem brotar uma “palavra nova e original” de nosso ser profundo, revelando nossa verdadeira identidade. Por isso, as palavras nobres de Jesus não podem ser domesticadas e manipuladas segundo nossos interesses.
É preciso valentia para deixar que cada palavra d’Ele cale fundo, para vivermos com mais seriedade, para deixar que nos desnude um pouco mais, para revestir-nos do modo de proceder d’Ele.
É no encontro com as palavras de Jesus que temos a chance de recuperar a força e o sentido de nossas palavras, de torná-las oblativas, abertas e portadoras de vida. “Palavras cristificadas”, pois revelam a força da cura, do cuidado, da benção, do perdão...
É preciso unir Palavra e silêncio, para que cheguem ao mais profundo de nosso núcleo essencial, sempre insondável, buscando a Fonte que mana em abundância e sai à superfície, cantarolando e fecunda.
Assim, nossa palavra, viva em Jesus, sussurrada pelo mesmo Espírito d’Ele, torna-se como um rio caudaloso que salta qualquer obstáculo, leva vida às margens e nos impulsionam em direção ao Grande Oceano. Uma palavra que se revela como um bálsamo relaxante, remédio doce que acalma, embeleza e faz recordar sadiamente, que insufla ânimo e vida no nosso próprio corpo. Palavra que se manifesta como um grito de envio que nos lança em direção às pessoas, para partilhar, amar, curar...; uma revelação que ilumina nossas incertezas ou que nos enche de alegria. Só assim, o Evangelho se torna sempre boa notícia que fala dos outros, de nós, de Deus, de tudo...
Texto bíblico: Jo 6,60-69
Na oração: Cave palavras nas minas do seu silêncio, palavras carregadas de sentido e de ânimo.
Silêncio para poder dialogar com seu eu profundo, para ver o que há por detrás de suas palavras, de seus sentimentos, de suas intenções... Silêncio para tentar ir ao coração de sua verdade. Pois somente o silêncio poderá germinar as palavras portadoras de vida.
- Em que me inquieta, me sacode e me provoca a Palavra de Jesus?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
23.08.2024
“O Todo-Poderoso fez grandes coisas em meu favor” (Lc 1,49)
A Assunção de Maria foi, durante muitos anos, uma verdade de fé aceita pelo povo simples. Só em meados do século passado proclamou-se como dogma de fé.
É preciso levar em conta que uma coisa é a verdade que se quer definir e outra, muito diferente, a formulação em que se introduz esta verdade. A Assunção é uma “realidade” que quer balbuciar algo que se encontra mais além dos conceitos e das palavras: que Maria entra plenamente na Vida de Deus.
Certamente soaria estranha para a mentalidade bíblica a definição do dogma (“A Imaculada Mãe de Deus, a sempre Virgem Maria, terminado o curso de sua vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celeste” - 1º. nov. 1950). Simplesmente porque foi formulada a partir de conceitos filosóficos e teológicos completamente alheios à sua maneira de pensar. Para a antropologia bíblica o ser humano não é um composto de “corpo e alma”, mas uma única realidade que se pode perceber sob diversos aspectos, mas sem perder nunca sua unidade.
Não podemos entender “literalmente” o dogma da Assunção. Pensar que um ser físico, Maria, que se encontra em um lugar, a terra, é transladada localmente a outro lugar, o céu, não tem sentido. O próprio papa João Paulo II afirmou que o céu não é um lugar, mas um estado. Em linguagem bíblica, “os céus” significam o âmbito do divino; portanto, Maria está já “nos céus”; Maria “desapareceu em Deus”.
Quando o dogma fala de “corpo e alma”, não devemos entendê-lo como o material ou biológico por uma parte, e o espiritual por outra. O dogma não pretende afirmar que o corpo biológico de Maria está em alguma parte, mas que todo o ser de Maria chegou à mais alta meta. Realiza-se em Maria a situação final, já dentro da história, situação prometida a toda humanidade: “ser um dia de Deus e para Deus”; Maria o é desde o início (imaculada) até o final (assunção), através de uma fidelidade de toda a sua vida.
A Assunção de Maria é considerada, também, como antecipação da nossa ressurreição, que seremos ressuscitados em Cristo. Portanto, a glória de Maria não a separa de nós, mas se une mais intimamente a nós. Maria na glória concretiza, de modo eminente, nosso próprio destino futuro; ela vive agora em plenitude aquilo que nós, um dia, iremos viver. A Assunção é realidade compartilhada, solidária.
Ela foi “assunta” porque assumiu tudo o que é humano, porque “desceu” e se comprometeu com a história dos pequenos, dos pobres e excluídos... Maria foi glorificada porque se fez radicalmente “humana”.
Crer na Assunção de Maria implica crer na exaltação dos pequeninos e humilhados, dos pobres esquecidos, dos injustiçados sem voz, dos sofredores sem vez, dos abandonados sem proteção, dos misericordiosos descartados, dos mansos violentados...
O mistério da Assunção vem, portanto, afirmar que a biografia de Maria começa na eternidade. Maria “cheia de eternidade”, vivendo na mente e no coração de Deus. Vem de Deus e volta para Deus. Ela está situada na encruzilhada da história salvífica: AT e NT. Com seu “sim” radical, a distância entre Deus e o ser humano foi quebrada, o divino se humanizou e o humano se divinizou. Mulher nova e livre, em Maria ouvimos a resposta perfeita, o “fiat” da criatura dito ao Criador; ela é a mulher da oblação. Nela a Trindade vê sua obra levada à plenitude. Seu “sim” tornou possível a Encarnação. Nela, a ação da liberdade humana e da graça divina harmonizam-se perfeitamente.
O “Amém” de Maria, seu “Fiat”, é um Amém ao “Sim” de Deus à humanidade. Deus é para nós o “Sim” eterno, ativo e criativo.
Nosso “Abbá” é aliança fiel, permanente, definitiva. Sua oferta de Aliança de amor sempre paira sobre a humanidade. Por isso, derrama seu Espírito com abundância sobre toda a terra e sobre “todo ser vivente”.
Maria disse “fiat” (“faça-se”) a essa oferta. Nela, a humanidade, cada um de nós, é chamado a dizer “fiat”. O “sim” proferido por ela é o melhor que a humanidade apresentou a Deus e desencadeou outros inúmeros “sins oblativos” na história.
Maria é o verdadeiro Templo, é espaço de presença do Espírito, lugar sagrado onde habita a divindade para, a partir dela, expandir-se depois a todo o povo. Ela é lugar de plenitude do Espírito, “Terra” da nova criação, Templo do Mistério. Evidentemente, esta presença é dinâmica: o Espírito de Deus está em Maria para fazê-la mãe, lugar de entrada do Salvador na história. Ela não é um instrumento mudo, não é um meio inerte que Deus se limitou a utilizar para que fosse possível a Encarnação. Maria oferece ao Espírito de Deus sua vida humana para que, através dela, o mesmo Filho Eterno pudesse entrar na história.
Em Maria descobrimos aquilo que, na essência, todos somos. Não devemos nos conformar em olhar Maria para ficarmos extasiados diante de sua beleza. O que descobrimos nela, devemos também descobrir em nosso próprio ser. O que importa realmente é que em Maria e em todo ser humano há um núcleo intocável que nada nem ninguém poderá manchar. O que há de divino em nós será sempre imaculado. Tomar consciência desta realidade, seria o começo de uma nova maneira de entender a nós mesmos e de entender os outros.
Maria é grande em sua simplicidade e não temos nada que acrescentar ao que ela foi desde o princípio. Basta olhar para o seu verdadeiro ser e sua maneira original de se fazer presente junto aos outros para, então, descobrir o que há de Deus em seu interior; isso é que sempre será puríssimo, imaculado. Se descobrimos isso nela, é para tomar consciência de que também está presente em cada um de nós.
De nada nos servirá descobrir a pérola em Maria se não a descobrimos também em nós mesmos. Somos milhões de diamantes que habitamos esta terra, embora cobertos de terra e barro.
Contemplar Maria, assunta ao céu, é des-velar (tirar o véu) a nobreza humano-divina escondida em nosso interior.
Porque se fez presente a Deus, Maria se faz também presente na vida das pessoas, através da atitude de serviço, de uma maneira sempre mais criativa e atenta; presença que se faz manancial de vida para os outros, tornando-se, ao mesmo tempo, amiga, irmã e mãe de todos.
A presença silenciosa, original e mobilizadora de Maria desperta e ativa também em nós uma presença inspiradora, ou seja, descentrar-nos para estar sintonizados com a realidade e suas carências. Tal atitude nos mobiliza a encontrar outras vidas, outras histórias, outras situações; escutar relatos que trazem luz para nossa própria vida; ver a partir de um horizonte mais amplo, que ajuda a relativizar nossas pretensões absolutas e a compreender um pouco mais o valor daquilo que acontece ao nosso redor; escutar de tal maneira que aquilo que ouvimos penetre na nossa própria vida; implicar-nos afetivamente, relacionar-nos com pessoas, não com etiquetas e títulos; acolher na própria vida outras vidas; histórias que afetam nossas entranhas e permanecem na memória e no coração.
Texto bíblico: Lc 1,39-56
Na oração: Deus continua enviando mensageiros para comunicar-nos sua vontade; o que nos falta é ter o espírito desperto para discernir e reconhecê-los. As pessoas dispostas, os cristãos vigilantes, os santos e santas se encontram com muitos mensageiros que lhes comunicam mensagens do Senhor. Discernir é realizar uma limpeza de ouvidos para escutar cada vez mais fielmente os mensageiros (anjos) do Senhor.
- “Sentir Maria” é reencontrar em nós mesmos aquilo que diz sim à vida, quaisquer que sejam as formas que esta vida tomar. “Sentir Maria” é superar toda expressão de desconfiança, de dúvida, de temor diante daquilo que a vida vai nos oferecer para viver.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
17.08.2024
“Eu sou o pão da vida” (Jo 6,48)
Jesus Homem se faz “pão”, Humanidade convertida em alimento para os outros. A Vida Eterna não se revela num gesto de pura interioridade, mas no encontro e comunhão de uns com outros... Quem crê nos demais, quem compartilha com eles a vida (fazendo-se eucaristia) tem a vida eterna, porque Deus é Comunhão de Vida e porque Jesus é a revelação mais alta desse Deus entre nós.
Jesus deseja e se faz para nós um alimento substancioso. É preciso que tenhamos acesso a um alimento que possa nutrir nossa identidade essencial. É preciso nutrir em nós o que não morrerá.
Existe em nós algo que se alimenta de ternura, que se alimenta de poesia, que se alimenta da qualidade de nossas relações. O silêncio, a luz, a gratuidade, o encantamento, a simples presença... alimentam nosso ser espiritual
Portanto, não podemos transformar a Eucaristia em um rito puramente cultual, ou numa pesada obrigação que pesa sobre as pessoas, nem convertê-la em uma cerimônia rotineira, que demostra a falta absoluta de convicção e compromisso. Cada vez que participamos, devemos fazer com profunda gratidão e veneração, e, sobretudo com compaixão pelos que dela não podem participar.
Nesse contexto é preciso dizer que o verdadeiro alimento é a vida mesma do ser humano: Jesus se fez alimento para os outros, saciou a fome de justiça e amor. Ele é o alimento que gera vida nova no mundo, vida oferecida e compartilhada. Um alimento “subversivo” porque subverte a tradicional “ordem” das coisas. “Eu sou o pão da vida”. Antes de partir o pão, Jesus parte-se a si mesmo, faz-se alimento. Toda sua vida foi entrega. Sua vida inteira dá significado ao partir, compartilhar e repartir o pão da vida.
Jesus, desde pequeno, admirava o milagre do pão; sabia sua história: os minúsculos grãos de trigo semeados na terra, desaparecidos, mortos; a surpresa do pequeno broto verde, tão tímido; o prodígio da espiga, esbelta e frágil, que vai amarelando ao sol; a abundância contida, apertada, das dezenas de pequenos grãos, filhos renascidos do velho grão, enterrado e morto; o moinho implacável, que parece matar sem piedade os grãos indefesos; a farinha, a flor da farinha tão pura que podia ser apresentada como oferenda ao Senhor; o milagre do pão.
Em sua casa, certamente Jesus tinha visto, inúmeras vezes, sua mãe amassar o trigo, pôr na massa uma pitada de fermento, deixá-la em repouso. Quando criança, Jesus levava a massa já fermentada ao forno comunitário; esperava um pouco ou saía a brincar, ou ajudar José na oficina; depois, voltava à casa cantarolando, abraçado ao pão para sentir seu calor, embriagado de seu aroma, com vontade de tirar um pedacinho enquanto subia à sua casa.
O milagre do pão, nascido da morte do grão de trigo; nascido para morrer e dar a vida.
Partir o pão e reparti-lo antes de começar a refeição. Isto fazia José, bendizendo o Senhor pelo dom tão precioso. E Jesus, com seu pedaço de pão na mão, pensava, sem dúvida, no grão desaparecido meses antes na terra, multiplicado pela força sagrada em seu interior, pelo poder e sabedoria do Pai dos Céus, que agora, com a primeira mordida, iria desaparecer para sempre e transformar-se em seu próprio corpo.
Não sabemos quando nem como Jesus soube que para isso estava no mundo: para ser semeado, para morrer no inverno debaixo da terra, para ser pisado e apertado até que morresse para multiplicar a vida.
E, algumas horas antes de morrer, na ceia que Ele sabia que ia ser a última, Jesus se viu a si mesmo, em cima da mesa, em forma de pão. E disse: “meu corpo entregue é pão”. E Ele sabia que ia ao moinho para ser triturado e se tornar pão para muitos. “Fazei isto em memória de mim”. “Isto” se refere ao partir e partilhar o pão em torno à mesa; “isto” significa comungar com Jesus e com todos que O comungam, formar um só Pão para alimento do mundo.
Porque Jesus é “pão descido do céu” e porque compartilhamos sua vida, também nós podemos e devemos “descer” e sermos comunhão de vida. Neste sentido, todos somos pão de Eucaristia.
Cada ser humano é “pão vivo, descido do céu” para outro ser humano; cada homem, cada mulher é revelação de Deus, pão de vida eterna para os outros. Por viver neste nível, por entregar-se e compartilhar a vida neste plano, os homens e mulheres “não morrem”, tem vida eterna.
E é isso que, no nível mais profundo, somos todos. Todos somos Vida, todos somos “pão de vida”.
O pão da vida não se encontra fora de nós; é o que “somos” em profundidade; é nossa essência.
Somos pão quando alimentamos o outro na esperança, no perdão, na acolhida, na compaixão, no compromisso... Sim, podemos multiplicar o pão da festa, da alegria, o pão da justiça, o pão da ajuda fraterna...
Quanto pão para ser dividido! “Tornar-nos pão” significa “descer” em nossa própria condição humana para expandi-la em atitudes de serviço, partilha, solidariedade... Já estamos saturados do “pão venenoso” do ódio, da intolerância e do preconceito...
Ser “pão para a vida” é confessar que ser seguidor(a) de Jesus é ser-para-os-demais, é comprometer-se a ser fermento de unidade, de amor, de paz, é consumir-se para que outros vivam. Se nossa participação no “pão da mesa” não colocar em questão nossos egoísmos, nossos preconceitos, nossas rivalidades, nossos complexos de superioridade..., não tem nada a ver com o que Jesus quis expressar com o “discurso do Pão da Vida”.
Aproximar-nos do Pão da Vida para sermos “pão de vida” constitui-se como o momento mais “subversivo” (subverte nossa maneira petrificada de ser e viver) que podemos imaginar: fazemos memória do que Jesus foi durante sua vida (pão para os outros) e nos comprometemos a viver como Ele viveu (“fazer-se pão para os outros”). N’Ele, também nós tornamos “pão” para o mundo.
Por isso Jesus Cristo, em sua oração messiânica, nos motiva a dizer: “o pão nosso de cada dia nos dai hoje”. Este continua sendo o “pão nosso”, pão de todos, produto do trabalho de homens e mulheres, que deve ser compartilhado. Mas, ao mesmo tempo, é “pão de Deus”, dom a ser multiplicado. Enquanto houver fome no mundo, a Eucaristia não está completa.
Ao comer o pão e beber o vinho “fazendo memória”, estamos prolongando um “estilo de vida”, fundamentado no modo de viver de Jesus. Isso quer dizer que fazemos nossa Sua vida e nos comprometemos a nos identificar com o que Ele foi e fez. Tomar o pão e o vinho na Eucaristia é fazer memória de uma presença que nos devolve à realidade, faminta de sentido, de esperança, de comunhão...
Texto bíblico: Jo. 6,41-51
Na oração: Ao “amassar” a minha vida para querer ser pão... de que sou feito?
A massa de minha vida é constituída, em primeiro lugar, de farinha; é ela que dá consistência e firmeza ao pão, brindando-o com diferentes formas e aromas. A farinha é a minha verdadeira identidade, minha essência; é nela que minha vida se sustenta; ela é constituída dos meus recursos, dons, capacidades...
- A água me dá maciez e elasticidade; é também aquela que me dá unidade, que une os diferentes ingredientes, transformando a mistura numa autêntica massa. Significa o afeto que me revitaliza, me devolve a ternura, me faz terno como o pão recém-assado. E, assim, me dá um sentido na vida, um “para que”.
- O sal é o que torna saboroso o pão, aquele que lhe realça sua característica. Meu sal é meu próprio sabor, o mais original e único em mim.
- O fermento é o que faz aumentar o tamanho do pão. Meu fermento é aquilo que me faz crescer, o que me impulsiona a sair de mim mesmo, a superar meus limites, me desafia a ser mais, a ir mais além, a transcender-me. É constituído de meus sonhos e minhas esperanças, para alcançar aquilo que “quero e desejo”. É a força criadora que me habita, que potencia tudo o que sou e tenho, para que cada dimensão de meu ser se faça plena.
- Por fim, o forno. Não é exatamente um ingrediente, mas é igualmente imprescindível para eu deixar de ser massa, e revelar minha identidade de pão. Não há verdadeiro pão sem forno, assim como não há homem ou mulher sem paixão, sem amor, sem o calor daquilo que me faz vibrar, que me comove, que me transforma.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
08.08.2024
“Pois o pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo” (Jo 6,33)
Com o evangelho de hoje (18º Domingo do Tempo Comum) iniciamos a reflexão sobre o Discurso do Pão da Vida, que se prolongará durante os próximos domingos. Depois da multiplicação dos pães, o povo foi atrás de Jesus; tinha visto o milagre, comeu com fartura e queria mais! Procurou o milagroso e não buscou o sinal e o apelo de Deus que nele se escondia. Quando o povo encontrou Jesus em Cafarnaum, teve com ele uma longa conversa, chamada “Discurso do Pão da Vida”, um conjunto de sete pequenos diálogos que explicam o significado da multiplicação dos pães como símbolo do novo Êxodo e da Ceia Eucarística.
O milagre da multiplicação dos pães provocou um sério mal-entendido. O povo viu o que aconteceu, mas não chegou a entendê-lo como um sinal de algo mais alto ou mais profundo. Buscou pão e vida, mas parou na superfície: a fartura de comida. No entender do povo, Jesus fez o que Moisés tinha feito no passado: deu alimento farto para todos no deserto.
Indo atrás de Jesus, eles queriam que o passado se repetisse. Mas Jesus pede que o povo dê um passo adiante. Além do trabalho pelo pão que perece, deve trabalhar também pelo alimento não perecível. Este novo alimento será dado pelo Filho do Homem; Ele traz a Vida que dura para sempre. Ele abre para todos um novo horizonte sobre o sentido da vida e sobre Deus.
No longo diálogo com a multidão, no outro lado do mar, João recolhe as palavras de Jesus e que sua comunidade considerava como as chaves do seguimento. Jesus não responde à pergunta: “como e quando chegaste aqui?”, mas responde às verdadeiras intenções das pessoas, trazendo o diálogo para o seu terreno. O que tem importância de verdade é o compromisso de entrega, de “fazer-se pão” para os outros. Tais palavras de Jesus põe em questão as religiões de todos os tempos, ou seja, o perigo de manipular Deus para colocá-lo a serviço e interesse próprios.
Segundo o evangelista João, a necessidade de “passar para a outra margem do mar” foi provocada porque a multidão faminta ficou saciada de pão, graças à ação de Jesus que lhe deu de comer, multiplicando os poucos pães e peixes que um menino levava consigo. Neste contexto, segundo o final do evangelho do domingo passado (Jo 16,15), as pessoas pretendiam proclamar Jesus como rei. O pão é um bom símbolo da riqueza e a realeza um instigante símbolo do poder. Estas são as “margens” nas quais a multidão e os discípulos queriam se instalar.
Infelizmente, estes também são nossos desejos ocultos: o poder e o dinheiro que, no fundo, são as duas caras da mesma moeda. Este é o “pão” venenoso que alimenta divisão, competição e ódio. Compreende-se assim, o apelo de Jesus a passar para a outra margem, deixando de lado as solicitações do ter, para buscar o caminho do compartilhar. Em algumas determinadas circunstâncias é preciso dar alimento a quem está com fome; mas, ao mesmo tempo, é preciso ativar a liberdade e a autonomia para que ele possa buscar o pão e aprenda a partilhá-lo.
O Pão partido e preparado para ser comido é o sinal daquilo que foi Jesus em toda sua vida. O sinal não está no pão como “coisa” perecível, mas no fato de que Ele é partido e repartido, ou seja, na disponibilidade na qual se encontra para poder se tornar alimento de todos. Jesus esteve sempre preparado para que todo aquele que dele se aproximasse pudesse assimilar Sua Vida, revestindo-se de seu modo de ser e fazer: ser tudo para todos. Deixou-se partir, fez-se alimento, deixou-se assimilar; embora essa atitude terá como consequência que fosse aniquilado pelos encarregados da religião.
O sinal de Jesus é pão partilhado. Não o alimento das purificações e dos ázimos rituais, que só os judeus piedosos podiam comer, mas o pão de cada dia, aludido no Pai-Nosso: a refeição que se oferece aos pobres e excluídos, se compartilha com os pecadores e se expande em forma universal.
Este é seu sinal: tudo que disse, tudo o que fez se condensa e se expressa na forma de alimento que sustenta e reforça os vínculos entre as pessoas.
O pão suscita e cria Corpo. Jesus não anuncia uma verdade abstrata, separada da vida, uma lei puramente social, um princípio religioso... Ao contrário, Jesus, Messias de Deus, é Corpo, isto é, Vida expandida, sentida, compartilhada. O Evangelho nos situa, desta forma, no nível da corporalidade próxima, acolhedora e compassiva. Aqui não há mais castas e nem exclusão.
Na Eucaristia se concentra toda a mensagem de Jesus, que é o Amor. O Amor é Deus manifestado no dom de si mesmo e que Jesus deixou transparecer durante sua vida. Isto somos nós: dom total, amor total, sem limites. Ao comer o pão e beber o vinho, estamos completando este sinal. Isso quer dizer que fazemos nossa Sua vida e nos comprometemos a nos identificar com aqueles que Jesus se identificou.
O pão que nos dá Vida não é o pão que comemos, mas o pão no qual nos convertemos quando vivemos de modo oblativo, ou seja, quando vivemos descentrados, voltados para os famintos que suplicam o pão da amizade, da presença solidária e comprometida.
“Eu Sou” em João é a suprema manifestação da consciência de quem era Jesus. Cada um de nós deve descobrir o que verdadeiramente somos, como Jesus descobriu. Somos o mesmo que era Jesus.
“Quem vem a mim não terá mais fome, e quem crê em mim nunca mais terá mais sede”. Que significa “ir a Ele, crer n’Ele”. Aqui se encontra o núcleo do discurso. Não se trata de receber nada de Jesus, senão de descobrir que tudo o que Ele tinha, também nós temos. Temos um “celeiro” interior, dotados dos mais diversos pães: recursos, dons, sonhos ... O que Jesus quer dizer é que se os seres humanos descobrissem que se pode viver a partir de uma perspectiva diferente, que alcançar a plenitude humana significa descobrir o que Deus é em cada um, responderíamos como respondeu Jesus.
Jesus não nos convida a buscar a nossa própria perfeição, nem nos limitar a práticas piedosas egóicas e estéreis, mas a ativar a capacidade de vivermos descentrados, partilhando o que somos e temos.
Buscar nossa própria “perfeição” significa edificar nosso próprio pedestal, para colocar ali nosso “ego” que se alimenta do pão do poder, do prestígio, do consumismo, do preconceito e da intolerância.
“Ser pão para os demais”, pelo contrário, significa esvaziamento das fomes egóicas para despertar fomes humanizadoras: pão da comunhão, da festa, do encontro. Só assim é possível alcançar a unidade e a plenitude de vida. A Páscoa do pão sinaliza para a Páscoa da vida que se faz pão e do pão que permanece para sempre.
Texto bíblico: Jo 6,24-35
Na oração: Somos profundamente gratos quando temos pão sobre a mesa de nossas casas; no entanto, “nosso pão de cada dia” nos provoca: qual é o alimento que mais precisamos? Qual é o pão cotidiano nos faz falta? Com que saciamos nossa “fome” de cada dia? O pão vem de Deus ou mendigamos migalhas de coisas que não nos satisfazem?...
- Descubra na sua mesa o seu pão; na sua jornada, o seu chão; no seu cotidiano, o inesperado que vem, o outro em sua fome, em busca de mãos abertas que saibam partilhar.
- Com o pão nas mãos viva em contínua ação de graças.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
03.08.2024
Em todo momento histórico, quando a Igreja e a sociedade são sacudidas por grandes mudanças, surgem homens e mulheres que rompem com esquemas e seguranças envelhecidos e se deixam conduzir pelo Espírito ao deserto, às margens, às fronteiras... rompendo um ambiente e uma ordem asfixiantes.
A fronteira, para eles, passa a ser terra privilegiada onde nasce o “novo” por obra do Espírito.
Eles(elas) descobrem na realidade do mundo e da história os “sinais dos tempos” e entram em comunhão com tudo, porque tudo é “diafania” (transparência) de Deus. Enraízam sua convicção nesta visão, nesta mística da presença de Deus em sua obra, na contemplação de um mundo chamado a se transformar em justo e belo, verdadeiro e pacífico, unido e reconciliado, entranhado em Deus, como no primeiro dia da Criação.
Foi num contexto assim que o “peregrino” Inácio de loyola, “sozinho e a pé” pelos caminhos da Europa, situou-se nas fronteiras da humanidade em busca da comunhão universal; aqui se situa o seu processo original da vivência da santidade.
Depois de cinco séculos, S. Inácio continua sendo uma figura única e paradigmática. O que é marcante nele está no fato de ter sido capaz de situar-se, de maneira original, no contexto das mudanças de seu mundo e de seu tempo. Ele é considerado o santo dos “tempos novos” que despontavam perante seus olhos deslumbrados. Novos valores emergiam, novos modos de pensar e sentir, de viver.
S. Inácio é o homem da mudança, da transição no tempo, dos tempos novos, agitados, turbulentos, de transbordantes novidades que colocavam em questão tudo o que até então era recebido. Ele não se fechou e nem resistiu a elas, mas abriu-se ao diferente e surpreendente.
O itinerário da sua vida foi um processo constante de “leitura orante da realidade”. Por isso, S. Inácio foi um homem de síntese: num mundo em mudança e até contraditório, ele assumiu com abertura total, sem preconceitos, sem nostalgias estéreis, a mudança de tempo que lhe coube viver. Isso lhe abriu horizontes culturais novos, nos quais vai deixar sua marca original.
Até à época de S. Inácio, todo aquele que se sentisse chamado à santidade deveria naturalmente afastar-se do mundo e de seus “perigos” e buscar refúgio no deserto, nas montanhas ou nos mosteiros.
S. Inácio não se afastou do mundo para encontrar a Deus; ele fez a “experiência” do Deus agindo no mundo; aí O encontra e caminha com Ele. O mundo não é só o “habitat” da sua missão: é sobretudo a fonte da sua espiritualidade, o lugar certo para encontrar a Deus e escutar o Seu chamado.
Da experiência de “amar a Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus”, nasce uma espiritualidade radicalmente “mundana”, de contemplação do mundo e de ação no mundo.
A partir de então as velhas fronteiras geográficas e políticas pelas quais Inácio lutou apaixonadamente, serão substituídas por outras, aquelas do coração humano.
A santidade, para ele, passa a significar experiência de fronteira: rendição de uma fortaleza, troca de bandeira e de senhor no próprio coração, esvaziamento de si mesmo como “ego inflado” e oferecimento de sua pessoa ao verdadeiro “Senhor” que o chama a segui-lo, ou seja, situar-se com Ele nos “extremos” humanos. Falamos da admirável aventura espiritual de um homem que, dia após dia, aprende, tenaz e apaixonadamente, a viver para Deus no cenário do tempo que lhe coube viver, sacudindo e abalando as consciências daqueles que o rodeavam.
Mas, ao longo de todas as mudanças, de lugar e de horizontes, bem como as profundas transformações ocorridas no interior do próprio Iñigo, notamos que nele permanece idêntica a abertura ao surpreendente e idêntico o discernimento como instrumento para deixar-se interpelar pelos novos mundos e pelos novos desafios que se abriam diante dele. De maneira original e inspiradora, Iñigo assume com intensidade e abertura total a mudança de tempo e de cultura que lhe coube viver.
Isso lhe abriu horizontes culturais novos, nos quais ele vai se fazer presente criativamente.
E a “Narrativa do Peregrino” (autobiografia) nada mais é do que o relato da admirável aventura espiritual e cultural de um homem sincero e obstinado, livre e aberto, sempre empenhado em discernir, nos “sinais dos tempos”, aquilo que vêm de Deus (para acolhê-lo), e aquilo que vem do mal (para rejeitá-lo).
O itinerário de Inácio não é unicamente geográfico. Mais que um simples deslocar-se, trata-se de um modo de viver e de situar-se no mundo. Depois de ter posto literalmente seus pés sobre as “pegadas” de seu Senhor e beijar o solo que Ele havia pisado, Iñigo de Loyola compreende que a terra de Cristo era o vasto mundo de seu tempo. Desde então, para além do deserto e da peregrinação a Jerusalém, abre-se diante de seus olhos, outro caminho. Decididamente, ele se volta para o mundo, esse borbulhar de acontecimentos sócio-político-religiosos, no qual reconhece o lugar da Encarnação.
Buscando considerar todas as coisas em sua referência a Deus, Inácio quer serví-Lo em toda circunstância. Dado que seu Criador e Senhor está presente e ativo em todo e qualquer lugar, ele se dirige ao mundo sem temor a nada, seguro de que cada um de seus passos o conduz ao lugar da adoração e do serviço.
Inácio contempla o mundo com Deus; longe de representar um espaço de tentações e de dispersão, o mundo é para ele o lugar do serviço. O olhar que pousa sobre a realidade reacende nele a saudade de Deus e o sentimento de sua presença. A partir de então, o mundo o aproxima de Deus e a saudade de Deus não o afasta do mundo.
O olhar de S. Inácio para seu tempo e seu mundo pode nos ajudar a nos situar melhor e mais lucidamente no nosso. Também nós estamos vivendo profundas mudanças sociais, religiosas, culturais… que provávelmente não são de menor porte que as do Renascimento.
Ouve-se dizer hoje, com frequência, que estamos assistindo o fim de uma época e o princípio de outra; emergem novas formas de cultura, entendida como novos modos de relacionamento do ser humano com os outros e com o mundo. Os modos de pensar e de sentir em que vivíamos e estávamos instalados parecem decompor-se aos nossos olhos, ao passo que emergem por todos os lados, dispersos, sem que se veja claramente o perfil, mundos novos, novas visões, novas maneiras de se situar na realidade, novas culturas que nos interrogam, solicitam e inquietam.
Estes nossos tempos, novos e turbulentos, pedem de todos nós, críticos, inquietos e vigilantes, uma constante re-leitura dos novos “sinais” que surgem, a necessidade de viver em estado de atenção permanente, capacidade de re-analizar tudo o que vemos, e decidir a seu respeito no discernimento.
Se alguém se mantém constantemente de olhos abertos diante do que está vivendo, como fez S. Inácio, encanta-se em meio às grandes descobertas da ciência que ampliam o conhecimento do ser humano, às novas formas de socialização que estão transformando o nosso mundo, às novas formas e funções do saber, aos novos desafios que se apresentam diante de seus olhos, às novas esperanças de uma humanidade que é diferente, às novas formas de expressar a experiência religiosa... Este, certamente, estará assumindo uma atitude ativa e acolherá tudo o que humaniza e rejeitará tudo o que desumaniza.
Pondo-nos na escola de Inácio, é aqui, neste mundo, que Deus nos chama a estender o seu Reino, trabalhando cada dia como amigos(as) de Jesus que passam, observam, curam, se compadecem, ajudam, transformam, multiplicam os esforços humanos.
O(a) santo(a) dos tempos modernos é aquele(a) que na liberdade, afirma: “Fora do mundo não há salvação”.
Textos bíblicos: Mc 4,35-41 Ex 33,7-17 Ex 3,1-10 Jo 6,1-15
Na oração: Para viver em atitude de “travessia” é preciso estar em eterna vigilância; e, ao mesmo tempo, abrir-nos a um constante assombro e gratidão, porque cada manhã é um milagre.
- A nossa vida é um êxodo, um sair constante de uma realidade para entrar em uma outra realidade nova. O peregrinar é o elemento determinante e com maior valor simbólico para toda a vida.
- Existem ainda céus por explorar, aventuras por empreender, pensamentos por experimentar e experiências por aceitar; falta-nos ainda muito por saber, por ver, por sentir, por desfrutar...
- No “mapa espiritual” do meu interior, ainda existe uma “terra desconhecida”, que desperta interesse, suscita curiosidade, me põe a caminho...?
- Vivo uma atitude de busca permanente (discernimento)? Minha presença no mundo faz diferença?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
30.07.2024
“Jesus tomou os pães, deu graças...” (Jo 6,11)
São João situa na Última Ceia o mandamento do amor e o lava-pés (serviço); mas, a Eucaristia – “Eu sou o pão da vida” – ele a situa no cap. 6º. de seu Evangelho, no relato da multiplicação dos pães – “Eu sou o pão que desceu do céu”. O acontecimento da “multiplicação dos pães” ficou muito gravada na memória e no coração dos primeiros cristãos, pois aparece seis vezes nos quatro evangelhos.
De fato, a partilha dos alimentos é uma das mais sólidas e atrativas mensagens evangélicas.
Certamente, nós cristãos, devemos atender ao que Jesus prega quando nos revela que Deus é nosso Pai e fonte de misericórdia; mas, é preciso também nos deixar inspirar pelos seus atos quando dá de comer aos famintos, atos que dão suficiente fundamentação à sua pregação.
Jesus sempre se preocupou com as necessidades dos enfermos, dos marginalizados e, no relato deste domingo, deixou clara sua sensibilidade diante da fome daquela multidão que fora ao seu encontro para escutá-lo. Afinal, todo ser humano precisa comer, no amplo sentido do termo “alimentar-se”.
Seguramente, o problema mais grave que a humanidade padece, em todos os tempos, está no fato de não saciar a fome de tantos milhões de seres humanos, deserdados da possibilidade de se alimentarem. Diante desta triste realidade sentimo-nos impotentes e incapazes de encontrar uma solução.
Os critérios, profundamente egóicos, que regem nossas sociedades, dificilmente resolverão o problema da fome. O milagre da multiplicação dos pães é um forte apelo a nos libertarmos de nossa indiferença diante daqueles que morrem de miséria e fome. Quando somos solidários, há pão para todos, inclusive sobra. Nesse sentido, a multiplicação dos pães significa também multiplicar o trabalho, acolher os imigrantes, dividir os bens... Na terra há alimento para todos; inclusive sobra, quando não é especulado.
O pão de vida não vem do dinheiro ou da compra abundante, que não sacia; o pão de vida vem do coração, da boa relação, da solidariedade e da partilha entre os seres humanos. O pão de vida é um dom, uma graça (gratuidade) do Senhor. Jesus sabe disso: aqueles que tem dinheiro não resolverão nunca o problema da fome no mundo, porque, para resolver este problema é preciso algo mais que o dinheiro: partilha, solidariedade, boa vontade, sensibilidade oblativa... É muito difícil ensinar a partilhar quando unicamente sabemos comprar com ansiedade.
Diante da fome, Jesus propõe uma solução diferente daquela do comprar. Fala da partilha dos poucos pães e peixes que um menino anônimo levou consigo e que dispõe para saciar a fome dos outros. O menino põe seus pães de cevada (pão do pobre) e peixes a serviço dos demais, como a pobre viúva do evangelho que deposita seus poucos centavos na urna da coleta do Templo: era tudo o que tinha para viver.
Ao tomar os pães e peixes em suas mãos, Jesus, cheio de gratidão, dirige-se ao Pai; não é possível crer n’Ele como Pai de todos e continuar deixando que seus filhos e filhas morram de fome.
Por isso, profere a benção de ação de graças. A Terra e tudo o que nos alimenta, recebemos de Deus. É dom do Pai destinado a todos os seus filhos e filhas. Ninguém tem o direito de acumular e especular os alimentos. Se vivemos privando os outros daquilo que necessitam para viver é que já nos distanciamos de Deus e atrofiamos nossa sensibilidade solidária.
No evangelho deste domingo podemos também perceber uma profunda conexão entre a cena da multiplicação dos pães e peixes e o relato da Última Ceia; também nessa multiplicação “Jesus tomou os pães, deu graças e os repartiu entre aqueles que estavam sentados à mesa”. Aqui, Jesus acrescenta um pedido para que a ceia fosse celebrada “em sua memória viva”, ou seja, que todos recordassem que Ele passou neste mundo fazendo o bem, servindo e amando a todos.
Diante de tudo isso, sem refeição compartilhada, sem serviço efetivo e sem amor incondicional, não pode haver Eucaristia em sentido pleno. Percebemos, nas atuais “missas católicas”, que há muito culto, muita genuflexão, muita adoração..., mas, pouca partilha, pouca vivência do amor e reduzido serviço; “missas” que não deixam transparecer a “memória viva” da vida de Jesus, nem é o lugar do cumprimento das recomendações tão caras que Ele nos fez no momento mesmo de sua partida.
A Eucaristia nos recorda que o pão é dom de Deus a receber; se ele leva a marca do dom, ele convida à partilha. A ação de comer deixa de ser somente um ato biológico, mas um ato social e, portanto, um ato espiritual.
Alimentar-se é também uma questão moral e teológica. É preciso examinar como nossa atitude diante do alimento foi superficializado pela narrativa moderna e pela redução dele a uma mercadoria. O entendimento espiritualmente empobrecido do alimento só poderá ser corrigido se começarmos a pensar na alimentação como um “exercício espiritual”.
O alimento é uma dádiva de Deus oferecida a todas as criaturas para fins de nutrição, partilha e celebração da vida. Quando se realiza em nome de Deus, a alimentação é a realização terrena do eterno amor de comunhão de amor do Pai com todos os seus filhos e filhas. A consciência do dom nos convence que o alimento não é um simples punhado de nutrientes que simplesmente precisamos ingerir nas quantidades, variedades e proporções certas; o alimento é muito mais que um combustível de que necessitamos para manter nosso corpo funcionando, como uma máquina, em um nível ideal. Nessa visão falta aquela atitude para o maravilhamento e reverência.
Normalmente as pessoas costumam parar e dizer uma oração antes de tomar uma refeição, mas grande parte das pessoas aprendem que o alimento é apenas um produto manufaturado que é controlado e especulado.
O pão tem sido, há muito tempo, um elemento central para o coração e a vida das culturas ocidentais e do Oriente Próximo. Por gerações, as pessoas têm associado pão com alimento, e a disponibilidade de pão com tempos bons e segurança alimentar. A ausência de pão, ou medo da escassez dele, com frequência, eram suficientes para causar revoltas. Na mente de muitos, ao longo do tempo, sem pão simplesmente não há vida.
A importância do pão ainda permanece em nossa imaginação quando nos referimos ao dinheiro como o “pão nosso de cada dia” ou aos salários como o “ganha-pão” dos trabalhadores.
O aroma do pão saído do forno é suficiente para fazer que as pessoas queiram se sentar, se acomodar e se deliciar com várias fatias. A presença visível, aromática e tátil de um pão quentinho convida ao compartilhamento e ao companheirismo (“companheiro” – do latim “cum-panis” é alguém que “compartilha o pão”).
Além de proporcionar nutrição, o pão comunica aconchego, hospitalidade, fraternidade, compartilhamento de nossa vida juntos. Podemos olhar para uma refeição e ver apenas uma variedade aleatória de nutrientes, inconscientes da graça de Deus que nela se manifesta. Podemos esquecer que o alimento é um dos meios básicos e duradouros de Deus expressar a providência e o cuidado divinos.
Compartilhar uma refeição é participar de uma comunicação divina (cf. Sl 104,10-15).
Recebido à mesa eucarística como o corpo de Cristo, é nossa nutrição para reforçar nossos laços comunitários.
Texto bíblico: Jo 6,1-15
Na oração: Não é possível reconhecer o Corpo do Senhor presente na Eucaristia se não reconhecemos o Corpo do Senhor na comunidade onde alguns passam necessidades. Pois, se fechamos os olhos às divisões e às desigualdades mentimos ao dizer que Cristo está presente na Eucaristia.
Enquanto não nos mobilizamos a mudar nossa sociedade de maneira que mais pessoas aceitem a alegria de compartilhar o pão e a vida, faltará algo em nossa Eucaristia. Essa “ferida” o cristão deve sempre tê-la presente.
- Sua participação na Eucaristia desperta uma sensibilidade solidária diante das diferentes “fomes” que afetam tantas pessoas?
Pe. Adroalao Palaoro sj
26.07.2024
“Vinde sozinhos para um lugar deserto, e descansai um pouco” (Mc 6,31)
A vida, toda vida, tem sua dose de cansaço. Também Jesus experimentou isso: “Fatigado da caminhada, sentou-se junto ao poço” (Jo 4,6).
De que estava habitado o cansaço de Jesus? Marcos nos conta que eram muitos que chegavam e saiam, e não lhes sobrava tempo nem para comer. É um cansaço perpassado de rostos, que tem a ver com a vida que se gasta e se põe a fadigar por outros: “Levavam a eles todos os enfermos e endemoniados” (Mc 1,32).
De fato, de acordo com o evangelho deste domingo, as jornadas de Jesus se revelavam esgotadoras: muitos enfermos eram levados até Ele para que os tocasse e os curasse; muitas pessoas se aproximavam para escutá-lo; era muito exigido em todos os lugares por onde passava; os conflitos desgastantes com os fariseus...
Jesus sentia os cansaços e as pressões, mas, ao mesmo tempo, sabia fazer “paradas” para recuperar as forças, para retomar o contato com o sentido de sua vida e de sua missão, para ser Ele mesmo.Ele possuía uma lucidez que proporcionava uma visão profunda das coisas, no clima de uma paz sempre buscada. Para Jesus, o descanso, entre outras coisas, era um momento de restauração e reabilitação pessoal que lhe permitia mergulhar de novo na sua missão com maior criatividade.Talvez, por isto, nunca perdia o norte, sempre estava preparado, pronto, disposto a investir o melhor de si e a responder na direção adequada.
De que estão feitos nossos cansaços?
Todo esforço precisa seu descanso, toda atividade pede uma parada.Não há tensão que não exija um relaxamento, nem atividade continuada que não peça um repouso reparador. Os cansaços acabam nos revelando que, em nossa vida ativa, estamos amputando certas dimensões do humano. Assim, o descanso, em seu sentido nobre, impede que nos convertamos em meros trabalhadores estressados; ele nos arranca de nossa existência maquinal.
É sintomático o fato de recorrermos frequentemente ao uso da linguagem da máquina para expressar o que buscamos com o descanso: “desconectar”, “tirar da tomada”, “recarregar a bateria”, “recuperar a energia”, “reabastecer o motor” ... Sutilmente, expressamos deste modo como nos percebemos em nossa realidade cotidiana e até que ponto estamos suportando níveis intoleráveis de saturação, de ativismo, de stress...
Descansar tornou-se uma necessidade do planeta. A terra, nós e todos os seres vivos precisamos da pausa que revigora, do repouso que nos faz criativos. Prazer, vitalidade e criatividade dependem dessas pausas que estamos negligenciando. Devemos buscar, em cada circunstância, fazer do descanso uma ocasião de subversão de valores, de questionamento de nossa prática cotidiana, de enraizamento de nossa missão... enfim, de vivê-lo à maneira de Jesus Cristo.
O descanso nos conserva humanos; ele nos ajuda a recuperar um ritmo de vida mais humanizante, ou seja, recuperar a capacidade de estabelecer relações gratuitas com outras pessoas, com a natureza e seus ritmos, com o Criador... Não basta simplesmente poder folgar; ter acesso ao verdadeiro descanso é recuperar o sentido da gratuidade das nossas atividades e que melhoram a vida e a convivência.
O descanso pode ser um bom tempo para retomar a vida com mais liberdade e para realizar atividades mais humanizantes. Nesse sentido, o objetivo principal do descanso é recuperar nosso lugar e nossa condição de homens e mulheres, afastando de nós o endeusamento e as fantasias de onipotência. No descanso, voltamos a pisar a terra (húmus – humildade) para recuperar uma relação desinteressada e sadia com os outros, com o mundo e com Deus. A vida tem necessidade de “con-sideração”, “avaliação”, “fundamentação” ... Do contrário, ela perde densidade e, sobretudo, desperdiça sua própria beleza.
Por mais descansos que tenhamos, há cansaços que só se aliviam através do encontro consigo mesmo, e há descansos que só se conseguem quando nos reconciliamos com o que somos e vivemos.
Precisamos de “paradas”, mas paradas com argumento interior. Elas devem ser algo assim como um retorno contemplativo, uma “re-flexão” em direção à raiz de nossas motivações.
O descanso permite sintonias profundas conosco mesmo e com a profundidade das circunstâncias habituais que fazem parte do nosso cenário cotidiano. Ele desperta uma predisposição pessoal que pode ser decisiva para redescobrir o valor e o sentido do cotidiano no qual voltamos a mergulhar. O descanso inspira, nos faz criativos, porque toca as profundezas de nós mesmos e das atividades rotineiras.
Nesse sentido, o descanso se assemelha muito a uma certa ressurreição; não é um simples reabastecimento, mas uma regeneração na qual se recompõe a interioridade, o espírito criativo, a disposição de coração... “Vinde sozinhos para um lugar deserto...” O descanso não é uma “des-conexão”, senão uma “cone-xão” com aquilo que é o impulso fundamental de nossa vida cotidiana. O descanso nos possibilita afastar do rotineiro e nos faz caminhar ao deserto interior, onde podemos dirigir um olhar contemplativo sobre a vida cotidiana. Nele nos desprendemos do presente e de sua urgência tirana.
No deserto nos personalizamos, resgatamos nossa identidade; nele temos a chance de ver a realidade sem instrumentalizá-la, gratuitamente. E só no gratuito é que descansamos. Deste modo, o descanso também pode se constituir como um “tempo” privilegiado para uma intimidade com o Senhor, um espaço em nossa existência para estar gratuitamente com Ele, para saborear sua presença em nossa vida, para alegrar-nos com sua ação providente e cuidadosa. “Tempo sagrado” para dirigir nosso olhar para o Pai, para compreender, a partir d’Ele, o sentido das coisas e da história. “Tempo” para Deus, para mergulharmos no mistério que pulsa no profundo da vida e render-nos diante d’Ele, para descalçarmos diante do sagrado e contemplar.
A mística inaciana tem muito a nos revelar sobre esta atividade tão divina e tão humana: o descanso.
“Viver descansadamente” (S. Inácio), é encontrar um descanso, uma paz interior, uma quietude, uma consolação, uma satisfação na vida e nas atividades, e que tem sua raiz na comunhão com Deus que trabalha e descansa. A vida do “contemplativo na ação” é uma vida ativa vivida “descansadamente”, ou seja, na presença de Deus, com o coração centrado n’Ele, fazendo somente Sua Vontade...
Viver uma vida ativa descansadamente é viver com os pés na terra e contemplando as “coisas do alto”. Como homem pragmático, Inácio de Loyola mandou construir casas de descanso para os jesuítas, pois sabia, por experiência, que uma atividade forte pede relaxamento. Ele compreendeu que os ambientes tensos e atividades estressantes não são desejáveis nem para a vida espiritual, nem para o trabalho, e recomenda “recreação” e “relaxamento” na atividade, seja corporal ou espiritual.
Texto bíblico: Mc. 6,30-34
Na oração: Também na vida espiritual, necessitamos de pausa para um encontro profundo conosco e com Deus, e assim poder retomar a vida com mais dinamismo. A pausa é que dá sentido e inspiração à caminhada.
- Na perspectiva do discernimento, devemos, depois de cada descanso, nos perguntar:
“o que ele nos trouxe de novidade? ajudou a nos dignificar como pessoas? me-lhorou a relação com os outros? facilitou ao outro sentir-se bem? quê possibi-lidades novas nos apresentou?”
“Descansar é uma arte. Viver descansadamente, uma arte ainda mais delicada” (J.A. Guerreiro)
- seu descanso: tempo de humanização ou mais um stress na sua agenda?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
19.07.2024
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