Os 12 anos de pontificado do Papa Francisco ficarão, com certeza, marcados na nossa memória afetiva e intelectiva, por tudo o que ele nos marcou com seu carisma pessoal de pastor que sempre buscou se aproximar das suas ovelhas e de não deixar ninguém de fora do rebanho de Cristo, como também por meio dos seus ensinamentos, caracterizados por uma forte teologia e espiritualidade do encontro, da escuta e do discernimento.
Contudo, tendo chegado aos 67 anos de vida consagrada como membro da Companhia de Jesus, não é de admirar que durante os seus 12 anos de pontificado, muito do que o Papa nos comunicou com gestos e com palavras tenha origem na espiritualidade dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola. De fato, é possível identificar no jeito como Francisco viveu o seu pontificado alguns traços marcantes da espiritualidade inaciana. Ele mesmo fez questão de ressaltar isso em julho de 2013, no voo de volta da viagem que fizera ao Rio de Janeiro para a Jornada Mundial da Juventude, quando perguntado se ainda se sentia jesuíta como Papa, assim respondeu: “Eu me sinto jesuíta na minha espiritualidade, na espiritualidade dos Exercícios, a espiritualidade que eu tenho no coração”.
Mas, como reconhecer no pontificado do Papa Francisco esse carisma inaciano? Para responder a esta pergunta eu destacaria três características centrais deixadas por Santo Inácio em seus Exercícios Espirituais, que moldaram a espiritualidade e o carisma dos jesuítas e que acompanharam Francisco diariamente na sua experiência de Deus e na sua missão como bispo de Roma e sucessor de Pedro.
A primeira característica é a de sentir-se chamado a ser um “contemplativo na ação”, expressão criada por Jerônimo Nadal, um dos primeiros jesuítas e estreito colaborador de Santo Inácio em Roma. Isto significa que, para um jesuíta (e todo inaciano ou inaciana) existe uma harmonia total entre a vida espiritual e a vida apostólica, pois em tudo aquilo que fazemos e em qualquer ambiente onde estivermos podemos (e devemos) buscar e encontrar a Deus, ou seja, não apenas nos momentos formais de oração ou no interior dos templos ou conventos. Isso faz com que seja o Espírito de Cristo a guiar tudo aquilo que faço ao longo do meu dia, para que se cumpra a vontade de Deus na minha ação apostólica. E, por outro lado, permite que o meu ministério e serviço não seja um mero ativismo ou rotina profissional, mas seja fruto da minha oração, como um encontro íntimo com o Senhor que não me fecha em mim mesmo, mas abre sempre para a missão e para os demais.
Ora, não temos dúvidas do quanto o Papa Francisco souber viver e ensinar essa necessária harmonia entre oração e ação, tendo sido ele mesmo um grande “contemplativo”, alguém que deu sempre um profundo testemunho do valor da oração e da vida espiritual, mas sem jamais abandonar a vida de serviço a Deus e ao próximo. De fato, ele mesmo em uma de suas catequeses alertou que “alguns mestres de espiritualidade do passado compreenderam a contemplação em oposição à ação, e exaltaram aquelas vocações que fogem do mundo e dos seus problemas, a fim de se dedicarem inteiramente à oração. Na realidade, em Jesus Cristo, na sua pessoa e no Evangelho não há oposição entre a contemplação e a ação, não. No Evangelho, em Jesus não há contradição” (Catequese – 32. A oração contemplativa).
A segunda característica da espiritualidade que os membros da Companhia de Jesus buscam viver, como vimos o Papa Francisco fazer ao longo da sua vida, tem a ver com a nossa postura no mundo e no modo de viver a nossa fé e espiritualidade cristã de forma encarnada e em constante relação e diálogo com a realidade, com as diferentes culturas e com todas as criaturas que conosco habitam a mesma casa comum, que é o nosso planeta. De fato, nos Exercícios Espirituais meditamos e contemplamos a criação divina como obra do amor que Deus para com cada uma de suas criaturas, de modo muito especial o ser humano. E, quando pelo pecado pessoal e estrutural essa criação é ameaçada e destruída, afastando-se do plano divino, meditamos e contemplamos como a Santíssima Trindade resolve enviar ao mundo o Redentor, não para condenar, mas para salvar o mundo, por meio de Jesus, caminho, verdade e vida.
Desse modo, quando vemos a preocupação que teve o Papa pelas criaturas de Deus, ao escrever uma encíclica (Laudato Si’ – 2015) nos chamando a atenção para a necessidade de cultivarmos uma ecologia integral, que cuide melhor de tudo aquilo que Deus criou e nos chama a uma mudança de hábitos e uma verdadeira “conversão ecológica” para assegurar às futuras gerações um mundo melhor, ele certamente estava expressando uma espiritualidade que não nos deixa indiferente ao que se passa ao nosso redor e com os nossos semelhantes e outras criaturas de Deus, pois nos Exercícios inacianos rezamos que Cristo deseja ter colaboradores que o ajudem em sua missão redentora e salvífica, o que implica também viver uma espiritualidade que se preocupe com a dimensão ambiental, social, política, cultural e cotidiana da vida, já que em tudo isso o Espírito de Cristo age. Da mesma forma, Francisco mostrou a fonte inaciana da sua espiritualidade quando escreveu “Fratelli Tutti”, encíclica que nos recorda que somos todos irmãos e, portanto, temos que ter cuidado pelo outro, como queria Santo Inácio que fosse as relações fraternas nas comunidades jesuítas, chamando a seus membros de “amigos no Senhor” e levando-os a praticar a solidariedade e a justiça do Reino em favor dos que sofrem injustiças e abandono.
Finalmente, a terceira característica marcante do carisma inaciano que facilmente identificamos na vida e na mensagem do Papa Francisco foi o de sempre ter buscado o “discernimento” espiritual em tudo o que fazia e em todas as decisões que tomava. De fato, este é um dos maiores dons deixado pelos Exercícios Espirituais, não apenas para os membros da Companhia de Jesus, mas para todos os cristãos. Como afirmou o superior geral dos jesuítas, Pe. Arturo Sosa, SJ, “os Exercícios Espirituais Inacianos são um tipo de escola do discernimento. Seguindo os Exercícios Espirituais, toda pessoa pode ser ajudada a escutar a voz de Deus chamando a totalidade da vida humana a decidir pelo seguimento dessa voz – para fazer uma escolha”.
Se observarmos bem, todo o pontificado de Francisco foi uma constante escola de discernimento apostólico e eclesial, como se verificou recentemente com o Sínodo da sinodalidade, cujo tema foi Por uma Igreja Sinodal: Comunhão, Participação e Missão. Tendo participado da comissão de espiritualidade de preparação ao sínodo e, posteriormente, das duas sessões da assembleia sinodal em outubro de 2023 e 2024, pude perceber claramente o desejo do Papa de que nós nos puséssemos em um caminho de reflexão no qual todos as vocações da Igreja — leiga, religiosa, sacerdotal, diaconal — se sentissem chamadas a participar ativamente, escutando-se mutuamente e discernindo a voz do Espírito Santo falando por meio de todos os batizados e batizadas.
Muitas outras características do modo de ser, de pensar e de agir do Papa Francisco poderiam ser identificadas como oriundas das fontes inacianas dos Exercícios Espirituais, que ele conheceu desde cedo na sua formação jesuítica e que procurou viver até o fim da sua vida terrena, agora chegada ao fim. Que neste momento em que ele nos deixa, seja esse legado espiritual que nos deixa, um tesouro que saibamos preservar e aumentar, como Igreja verdadeiramente discípula, missionária e sinodal.
Pe. Adelson Araújo dos Santos SJ
Sacerdote jesuíta, brasileiro, professor da Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma
In: redeservir.com.br
A chama é talvez a imagem que melhor traduz o sentido da inspiração de Francisco. “Nós, jesuítas”, escreveu o padre Jorge Mario Bergoglio quando jovem, ”sabemos bem que o fogo da maior glória de Deus nos invade, envolvendo-nos numa chama interior, que nos concentra e expande, nos alarga e encolhe.
Por vezes, o seu próprio corpo, quando podia, experimentava uma torção que o tornava tenso, extrovertido, perante o que para ele era sempre “o povo de Deus a caminho”. Por isso, Francisco enredou-se na história, nos acontecimentos do mundo, torceu-se, inflamou-se, por vezes desesperando aqueles que tendiam a normalizá-lo. Há uma chama que sempre o moveu por dentro: a “paz da inquietude”, que é o oximoro jesuíta por excelência, fruto do “discernimento”.
Esta é a senha inaciana, que significa captar interiormente a voz de Deus, reconhecendo por instinto a sua presença no mundo, mesmo quando tudo nos diz que deveria estar noutro lugar. É tipicamente jesuítico não considerar nada do que é humano como estranho ao divino: “Procura e encontra Deus em todas as coisas” era o lema de Santo Inácio. Isto tornava Francisco aberto, curioso, dialético.
E assim Francisco não abriu, mas escancarou as portas da Igreja a todos, todos. Não para que as pessoas ficassem cá dentro, como ele dizia repetidamente, mas para que o Senhor pudesse sair, indo para a rua. E o caminho - outra imagem fortemente jesuítica e do próprio Inácio, que se chamava "o peregrino ” - para Bergoglio foi sempre acidentado. Ele nunca contemplou estradas suaves. Para ele, era melhor cair e até ferir-se do que ficar ao abrigo de uma varanda, observando a vida a partir da varanda. Neste sentido, sempre teve uma visão “apostólica” e não simplesmente “pastoral”.
O jesuíta sabe que a sua tarefa não é pastorear o rebanho, tosquiar as ovelhas e penteá-las, mas ir à procura da ovelha perdida. Com o esclarecimento realista bergogliano de que, neste momento, já só resta uma ovelha no curral, enquanto parece que as outras noventa e nove já saíram. A sua Igreja, portanto, foi sempre uma Igreja em saída.
É por isso que pregou uma Igreja inclusiva; é por isso que comunicou mais com jornalistas de jornais seculares do que com religiosos; é por isso que quis falar com qualquer pessoa, mesmo com pessoas e líderes que outros sempre mantiveram à distância. Políticos e religiosos: desde Min Aung Hlaing, chefe do exército de Myanmar, responsável pelas operações contra os seus queridos Rohingya, até ao Patriarca russo Kirill, a quem não poupou duras críticasmas a quem manteve sempre a porta aberta.
É por isso que Bergoglio postulou um pensamento aberto e “incompleto”. É preciso sair dos esquemas (Yalta foi um deles para ele), do raciocínio lógico rigoroso. É preciso debordar, sair da caixa, “debordare”, movido pelo génio do espírito e não pelo rigor da ideia. Quando era jovem jesuíta, escreveu que não se devia olhar para a história “com um distanciamento científico marcado pela curiosidade sobre as coisas que aconteceram, ou ansioso por impor uma ideologia pré-definida”. Estava a falar da história dos jesuítas, mas o mesmo se aplica à história em geral.
Francisco nunca quis fazer planos quinquenais inspirados em ideias ou ideologias, nem cedeu a utopias. Também estava empenhado na organização, é certo, mas sempre pronto a improvisar, porque movido pela sua oração e pela“consolação”, isto é, a perceção da vontade de Deus que dá paz à alma. Como quando, por exemplo, se inclinou para beijar os sapatos dos dirigentes do Sudão do Sul que tinham vindo ao Vaticano para tentar a paz. Disse-me que, assim que entrou na sala onde eles estavam, sentiu uma vontade interior muito forte de o fazer. É apenas um exemplo, mas muito indicativo de uma forma de atuar.
O seu modelo era Pedro Favre, um dos primeiros companheiros de Inácio de Loyola, beato durante séculos e que Bergoglio tornou santo. Era muito amado por Michel de Certeau, um grande jesuíta que era “anómalo” à sua maneira.
Anomalia era outra forma de jesuitismo de Francisco. A sua relação com a ordem no passado foi complicada, anómala. Os seus escritos, que basicamente diziam o mesmo sobre o seu pontificado, chegaram a ser queimados em fogueiras. A sua figura pastoral foi mal compreendida ou contrariada. Devemos a profunda religação dos fios entre Bergoglio e a sua ordem à sabedoria de um Padre Geral como Adolfo Nicolás. E nisso La Civiltà Cattolica desempenhou durante vários anos um papel claro. Durante a Congregação Geral da ordem, após a demissão de Nicolás, apareceu uma certa desorientação da ordem perante a profecia de Bergoglio, mas também um desejo de procurar uma postura correta, de acordo com o espírito das suas Constituições. Bergoglio permaneceu sempre, de uma forma ou de outra, uma batata quente. E nunca perdeu a oportunidade de se declarar filho da Companhia de Jesus e de cultivar um diálogo profundo com os jesuítas, que teve uma expressão singular nas conversas privadas durante as viagens apostólicas. A sua transcrição - que o papa me permitiu de vez em quando - compõe uma espécie de bastidores do pontificado.
O caminho de Francisco foi também o mundo inteiro. Francisco percorreu-o por todo o lado, ele que nunca gostou de viajar. Mas sentiu que tinha de o fazer, sim, para confirmar a fé do povo católico, mas também para tocar nas feridas abertas deste mundo. Basta pensar na República Centro-Africana e no Iraque, para dar apenas dois exemplos. Não se toca com o pensamento, mas com a mão.
A Igreja é um “hospital de campanha depois de uma batalha”, disse-me na primeira entrevista que lhe dei em 2013, apenas três meses após a sua eleição. Como uma mãe não visita os seus filhos numa “caixa de vidro”, impondo-se quando queria ser forçado a entrar num papamóvel todo fechado ou mesmo blindado. Viajava como um jesuíta, que proverbialmente considera o bilhete de avião ou de comboio como a verdadeira chave de casa.
Também em jovem, Bergoglio escreveu que o olhar do jesuíta “percorre pátios vislumbrando pradarias, olha fragmentos mas contempla formas”. Do seu pequeno escritório em Santa Marta tinha o horizonte do mundo e de lá observava sempre os fragmentos que os ligavam para compreender as formas, como no caso da “guerra mundial em pedaços”, já amargamente profetizada em 2014. Sempre detestou o termo “geopolítica”, que lhe fazia lembrar o Risco, mas sempre amou a “diplomacia”. E acrescentava: “dos joelhos”. Porque considerava o diálogo político (e sobretudo o diálogo multilateral) necessário e, para um crente, uma espécie de lugar sagrado de oração e contemplação. E, nisto, moveu-se pelo lema jesuíta contemplativus in actione. Este era o Papa Francisco, de facto, um contemplativo em ação.
Pe. Antonio Spadaro sj - La Repubblica, 22-04-2025
22.04.2025
in: imissio.net
Uma telespectadora sugeriu ao Jô Soares que o seu programa deveria constar apenas dos melhores momentos. Muitas vezes, seguindo a telespectadora do Jô, o que nós pedimos a Deus é que a vida nos chegue apenas com os bons momentos. O que é mais do que compreensível dada a intensidade da dor causada pelo sofrimento e da extensão que ele costuma adquirir. Seja em geral, atinente a muita pessoas, seja no sofrimento de cada um de nós, nas perdas e nas dores inevitáveis da vida. Nenhuma palavra, mesmo a mais generosa, nos consolará de todo. É tamanho o paradoxo do sofrimento que, tendo aparecido no livro de Jó, veio, noutro contexto, o da história da cultura ocidental, a constituir uma das razões alegadas pelo ateísmo contra a existência de Deus. O argumento é conhecido: ou Deus não é onipotente e não pode suprimir o sofrimento ou, sendo onipotente, não quer suprimi-lo, o que impede que o consideremos bom. A glosa do argumento aparece quando diante de um grande mal nós nos perguntamo:s onde está Deus?.
Há respostas habituais, diversamente respeitáveis, mas que não atenuam a nossa dor. Haveria um sentido, inteiramente desconhecido para nós no nosso sofrimento, ou o nosso sofrimento seria um resgate de algum mal por nós praticado no passado, ou ainda o sofrimento constituiria uma oportunidade de ascensão espiritual, mas nada disso afasta a nossa inquietação. É fato que compreendemos pouco ou que podemos aprender com o sofrimento, mas anda assim nossa inquietação perdura.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
21.08.2025
A metáfora da vida humana como uma peregrinação de um lugar onde estamos para onde um desejo, arraigado e enigmático, nos aponta é antiga, presente nas mais diversas culturas, objeto de inúmeras narrações. E talvez a dor do nosso tempo tenha a ver justamente com a ausência de narrações que iluminem essa peregrinação e impeçam assim que o inevitável sofrimento se transforme num desespero silencioso. Uma narração conta uma história de alguém que é deslocado de onde está, sabe-se lá porque, e que é impelido a caminhar. A cada passo no caminho um antigo hábito é abandonado, um olhar revela seus limites, um gesto perde sua importância. Se é inevitável a solidão, já que a caminhada é singular, conta-se com sinais, quase sempre sussurrados, que dizem que devemos continuar, que o silêncio à nossa volta tem lá seu significado, que tudo espera que prossigamos. E assim, nós, os que estão à escuta da narrativa, percebemos que não se trata de uma narrativa de um outro, mas que somos nós o peregrino, que essa viagem é a nossa, a da condição humana. Mitos os mais diversos, assim como as histórias que contamos às nossas crianças e, de modo ainda mais intenso, as religiões, são narrativas. Costumamos chamar de objetivo o que é mais fácil de compreender e de compartilhamento mais direto, que parece estar mais diante de nós. Engano, isso é apenas um primeiro exercício da compreensão, que indica mais nossos limites do que a realidade. Narrativas, ao contrário, mergulham em águas mais aquietadas, mais aprofundadas. Por isso mesmo, no exato sentido da palavra, mais objetivas, mais próximas do real, mais generosas para com o peregrino que todos somos.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola
Aristóteles tem razão quando diz que somos animais políticos, entenda-se, animais da cidade, que vivem próximos uns dos outros num espaço público. Ou, de forma mais poética, como em John Donne, nenhum homem é uma ilha. Somos, cada um de nós, experiências diferentes da existência, nenhum de nós esgota o mundo ou o que ele significa. Daí que seja proveitosa a vida entre os humanos, nela somos formados, e nos formamos, nos educamos e somos educados. Em algum lugar, Guimarães Rosa diz que quando nasce uma criança o mundo recomeça. Vamos exagerar: o mundo recomeça em cada um de nós e nos nossos encontros tecemos juntos nossas crenças, nossos hábitos, nossas práticas, o que julgamos mais humano, o que nos parece inaceitável. Não é outra coisa a cultura, esse lar humano por excelência e que se acrescenta a esse outro lar, a natureza.
Por razões as mais diversas, nossas cidades se desviaram desse caminho. Cresceram é certo, mas por outro lado, a experiência da solidão urbana é muito extensa. Não apenas no sentido de que mais pessoas moram sozinhas e organizam suas vidas a partir de seus interesses mais imediatos, mas porque continuam a nos faltar, continuam a estar ausentes, espaços de conversação, e é escassa a atração por temas de mais longo alcance, substituídos que foram pelo fascínio do que está à mão. Falamos muito, conversamos pouco. O recurso ao celular, esse quase novo órgão do corpo humano, talvez tenha prolongado esse movimento em direção ao indivíduo, já nele o espaço público dá lugar a um mundo privado, um mundo que eu posso ligar e desligar como um pequeno deus.
Bom, talvez seja apena assim, a história não parece obedecer a qualquer lógica ou direção estrita, mas é hora de ver se parte do mal estar contemporâneo, dessa crise de significado que parece disseminada, não deva nos levar à criação de mais e mais espaços e instâncias públicas, lugares onde a cidade possa se reconhecer como cidade. Aqui e ali, de forma menos visível, por ora em pequenos grupos, pode-se escutar um rumor que anuncia, quem sabe, a recriação de nossas cidades. E, talvez, possamos nos reconhecer em algo que nos transcenda, que nos dê o sentimento de pertencimento e que não seja apenas uma pequena ilha no mar da vida.
Ricardo Fenati
Equipe do Centro Loyola BH
19.02.2025
imagem:pexels.com - Belo Horizonte/ Lucasrvimieiro
Talvez dediquemos pouco tempo a aprofundar o conhecimento que temos de nós mesmos. Poucos são os que se dispõem à aventura de ir em busca daquilo que existe no mais profundo do nosso ser.
É preciso passar todas as superficialidades, não só pela quantidade, mas também pela enorme resistência que têm. Essas barreiras foram alimentadas por nós como forma de protegermos o nosso íntimo das possíveis agressões do mundo. Outras vezes, elas surgem para evitar que revelemos algo que poderia parecer chocante aos outros. Uma barreira resistente evita essas possibilidades com desfechos mais duvidosos e, por isso, mais indesejáveis.
Passada essa barreira mergulhamos num mar denso onde se sente muito mais do que se vê ou escuta. As emoções tocam-nos e parecem querer envolver-nos, alternam-se entre as boas e as más, os desejos mais puros em relação aos amanhãs com as feridas abertas por duros golpes de ontens mais ou menos distantes…
O tempo abranda o passo, como se tivesse resolvido parar para descansar um pouco. Tudo parece ficar em suspenso e pouco se percebe, mas há algo que nos sossega, uma raiz firme que podemos admirar e que, por nos ligar a algo ainda mais firme, nos dá a certeza de que não somos sem sentido.
Nenhum de nós é estranho a si mesmo, por mais que evite visitar-se. Tal como um amigo de longa data que, mesmo após décadas, nos olha e reconhece de uma forma tão penetrante, simples e desconcertante que chega a parecer um mistério sem explicação!
Entrar e conhecer a casa de alguém ajuda muito a conhecê-lo. Rumar à fonte de vida que há no nosso coração é uma das mais belas peregrinações a que somos convidados.
O fundo de mim não é muito diferente do fundo de ti. Conhecendo-me, conheço-te, da mesma forma que descubro muito de mim quando consigo ver o fogo que há por trás do teu olhar e lhe dá brilho ou te faz chorar.
José Luis Nunes Martins
in: imissio.net 31.01.2025
imagem: pexels.com
Há uma frase, de um grande pensador cristão, Jacques Maritain, menos lido hoje do que deveria ser, que continua a me impressionar. Da frase, ele diz que se ocupa do pecado do angelismo, ou seja: “A recusa da criatura a submeter-se ou ser governada por quaisquer das exigências da ordem natural.” Recusar, não acolher, negar são condutas que caracterizam nossa humanidade, sempre ciosa/desejosa de mais, avessa a qualquer limite. E o corpo, assim como o espírito, se fosse possível separá-los, tem seu contorno, tem suas exigências. Do lado do corpo, uma dor inédita, um coração que fraqueja, uma disposição que já não temos, entre outras senões, tudo isso assinala que algo se passa em nós, uma ordem natural, à nossa revelia. Claro, muitos cuidados podem ser tomados, mas não há como obter um senhorio infinito. Do lado do espírito, é Pascal que nos lembra que “o coração tem razões que a razão desconhece.” A razão, esse lugar, tantas vezes orgulhoso, recebe instrução de fora, ela não se encerra em si mesma? Não é algo que inventamos? Ora, de que peso nos livramos quando reconhecemos uma verdade ali onde o recurso à razão é insuficiente.
Tudo isso nos convoca a uma certa humildade? O reconhecimento de que somos menos do que desejávamos ser e ainda assim prosseguir, é isso a humildade? É reconhecer que, ao modo do rei da história, há sempre algo que não conseguimos cobrir, uma nudez que recusamos a ver. Essa é uma lição geral, atinente à condição humana como um todo. Mas a questão se coloca, de modo dramático, para cada um de nós. Uma dose de soberba sempre nos acompanha, seja na ilusão de nossa superioridade, seja na alegação de que nossas derrotas se devem ao desconhecimento do valor que estamos certos de ter. Humildade é reconhecer, sem ressentimento, os que estão onde gostaríamos de estar? É aceitar que, quase sempre, que o que temos é mais do que o esforço desprendido por nós? Que há sempre algo que recebemos? E que até o título que gostaríamos de ter, humildes como ninguém mais, é mero orgulho? Suportemos em silêncio, porque não há virtude boquirrota, o fardo do limite. Talvez isso venha a ser um bom começo.
Ricardo Fenati
Equipe do site
12.12.2024
imagem: pexels.com
Sonhadores somos todos. Poucos são os que se levantam cedo para ir trabalhar pela concretização das suas aspirações. A maior parte das pessoas fica-se pela vontade de ter vontade, poucos são os que avançam e assumem, desde o primeiro passo, que vale a pena sacrificar tudo quanto é o preço daquilo que querem conquistar.
Os sonhadores comuns idealizam tanto que aquilo que desejam lhes chegará sem terem de abdicar de nada, como se o mundo lhes devesse isso e quisesse pagar-lhes a pronto! Mas a verdade é que, ainda que alguns até o possam merecer, a vida não entrega nada a ninguém sem uma contrapartida.
São tantos os esforços e os sacrifícios que é necessário despender a fim de concretizar o que queremos, que, quando o conseguimos, isso não nos deixa eufóricos, mas apenas aliviados, por ter terminado a guerra e por ela não ter sido em vão!
São muitos os tropeços, quedas e fracassos de que temos de nos reerguer… Talvez seja verdade que ninguém começa do início, porque há sempre um fim (qualquer) anterior. Começar é, na verdade, continuar depois de algo ter acabado.
As aventuras começam com o fim de qualquer coisa, assim como as tragédias.
Todos temos em nós uma alma que nos pede para que sejamos mais. Que sejamos maiores. Mas há quem desista cedo, há quem se venda por pouco, ainda que se considere muito forte e valioso, a verdade é que o nosso valor depende mais do que formos capazes de lutar por amor. Tornando real o que era apenas possível. Por vezes, era até impossível.
Levanta-te e luta pelo que acreditas que mereces. Hás de cair muitas vezes. Muitas. Hás de sofrer de forma injusta.
Mas cada fim é um começo e feliz não é quem o merece, mas quem fez o que era preciso.
José Luis Nunes Martins
in:imissio.net 1.11.24
imagem: pexels.com
A ansiedade põe-te a andar de um lado para outro, deixa-te preocupado e muito ocupado a tentar controlar o que, na verdade, não depende de ti. Tentamos livrar-nos das inquietações sobre o amanhã, à custa de perdermos todas as forças hoje.
Acabamos por medir as coisas pelo tamanho das suas sombras, o que é muito enganador, porque na maior parte dos casos não só são apenas sombras, mas também são muito maiores do que os objetos que as produzem.
Importa descansar, e colocar a imaginação a mostrar-nos alegrias e mais alegrias que podem chegar à nossa vida. Quem espera tristezas e mais tristezas já vive nesse mesmo futuro que deseja evitar.
O mundo é um local muito difícil, não é bom sobrecarregar as adversidades do hoje com os sofrimentos prováveis do amanhã. É que, mesmo que fossem certos, mais valeria tratar de cada coisa a seu tempo.
A ansiedade é uma tontura, uma vertigem, que deriva da ideia de que somos livres e que, por isso, talvez, possamos controlar tudo! Mas é mentira. Não controlamos senão muito pouco, ao demais, cabe-nos apenas reagir ao que acontece. Tentar reagir ao que não aconteceu é uma perda de tempo e de forças.
Cada um de nós é chamado a aventurar-se. Enfrentando o futuro e os medos. Sem pressas, um passo de cada vez, olhando para o horizonte que buscamos e para o chão para onde podemos dar o próximo passo. Não devemos nos importar com o que há entre esse espaço e o horizonte. Assim como há horizontes sempre novos, também há chãos que surgem onde não havia senão vazio…
Na vida, um deserto demora pouco a fazer-se floresta… e o contrário também. Mas nunca, nunca, o conseguimos fazer só por nossa vontade.
Vivamos em cada dia os problemas desse dia, sem nos preocuparmos com os que chegarão, por certo, amanhã, e depois de amanhã, e por aí adiante… porque, afinal, mais vale um fim trágico do que uma tragédia sem fim!
José Luís Nunes Martins
in: imissio.net
04.10.2024
Dois são os rumos de onde o ateísmo costuma partir. De um deles, brota a questão da incompatibilidade da existência simultânea do mal e de Deus. Disso tratamos no texto anterior. De outro, haveria a mesma incompatibilidade entre as exigências da razão e a existência de Deus. Talvez o primeiro dos rumos, já aparecido na Grécia, seja mais antigo. Com relação ao outro ponto de partida, a razão grega desemboca, de uma forma ou de outra, no terreno teológico. O pensamento medieval procurou aproximar os dados da razão, herança grega, daquilo que o páthos da fé anunciava. Fé e razão, Jerusalém e Atenas Mais do que isso, aí é o próprio exercício da razão que aponta para os seus limites, abrindo o horizonte da fé. Esse foi o ousado programa medieval, uma era teocêntrica.
A partir da modernidade, com as transformações no campo das ciências da natureza, e com as mudanças no cenário econômico e social terá lugar um desenho que ainda é o nosso. É comum dizer, e com razão, que passamos do universo teocêntrico para um novo universo, antropocêntrico dessa vez. Do ponto de vista que nos interessa, o sucesso das novas ciências foi entendido como consequência de uma razão mais modesta, mais cuidadosa, que funciona dentro de certos limites e mais capaz de apresentar resultados. Ora, as discussões incessantes no campo da religião contrastavam com a concordância generalizada no campo das ciências e com seu caráter progressivo. Não seria então o caso de se tomar a ciência como o modo justo do uso da razão e relegar os demais conhecimentos a domínios mais subjetivos ou privados? Para além disso, do ponto de vista político e social, a religião, pouco a pouco, cedia lugar a saberes mais laicos e, ao mesmo tempo, desocupava áreas até então mantidas sob a sua tutela. Nascem as ciências sociais, as ciências humanas e o olhar se torna mais e mais horizontalizado. Passamos, ao longo da modernidade, do extramundano para o intramundano.
E, cada vez, as relações entre religião e ciência passam a ser marcadas pela contraposição. Aquilo que havia ocorrido com Galileu se repete agora com Darwin. Não apenas se reconhece a distinção entre razão e fé, mas, para além disso, a fé, experiência fundante da religião é vista sempre negativamente, algo a que faltam provas.
Relegada ao domínio privado, daí o lema religião não se discute, ela progressivamente sai da cena púbica e é considerada como sendo destituída de qualquer potencial cognitivo.
Mais recentemente, esse cenário vem sendo objeto de alguma revisão. De um lado, é defendida a possibilidade de uma convivência entre os dois campos, dado o seu viés ou a sua natureza. Talvez preencham demandas de significado distintas: a ciência voltada para a decifração do mundo sujeito à experiência, no sentido amplo da palavra, enquanto a religião se ocupa do sentido do universo e de nossa presença nele, questão evidentemente pós-empírica. Outro fator é o progressivo reconhecimento do material interpretativo nas ciências, do imprescindível recurso a teorias, estas sim capazes de iluminar a experiência e não reproduzir o que é dado na experiência mais imediata. Enfim, num e noutro caso, de formas distintas, a dimensão interpretativa, um tanto hipotética está presente. Talvez ganhemos alguma clareza sobre a relação ciência e religião. Mais recentemente, essa concepção da ciência como conhecimento provado vem sendo revista e admite-se, no seu interior, um material especulativo, teórico, sob algum exame da experiência. Cresce o sentimento de que são campos distintos, talvez complementares ou, pelo menos, passíveis de convivência. Por outro lado, visto ser a religião uma tentativa de leitura do universo e de nossa presença nele e mesmo da condição humana, talvez possam ser abertas novas frentes de debate. É o que parece estar ocorrendo no domínio da cosmologia, esse olhar sobre o universo como um todo, e, por outro lado, no campo da antropologia filosófica, visto haver na religião uma leitura da experiência humana com caráter empírico.
Ricardo Fenati
23.09.2024
Há cada vez mais distrações na nossa sociedade. É hoje mais difícil dedicarmo-nos ao que é essencial na nossa vida. A vida anda tão agitada que já quase ninguém consegue parar um pouco e focar-se no mais importante.
E o mais valioso não está em mim… está no outro, que está próximo, ali mesmo, diante de mim.
Se medito na minha vida, é possível que me perca por entre tantas possibilidades, tantos passados, uns mais verdadeiros que outros. E em tantos futuros, uns mais agradáveis do que outros. Mas quantas pessoas conseguiram escolher bem o seu destino e o seu caminho para lá chegar, só ao admirarem-se a si mesmas?
Precisamos de nos mudar a nós mesmos, em vez de esperar que o mundo se ajoelhe para nos ajudar. Temos de lutar sem procurar descanso para manter o nosso coração a salvo de tudo o que procura escravizá-lo, convencendo-o de que a paz e a felicidade que aspira são impossíveis.
O mal não nos quer matar; quer-nos submissos a fazer-lhe as vontades todas. Esquecidos do que somos e que podemos ser. O mal quer-nos rendidos e é por isso que nos distrai ao ponto de, perdidos por entre tantos dos seus brilhos aparentes, fazer com que nos esqueçamos da luz.
Fortalece-te e guarda o teu coração como que num castelo. Mas não te deixes ficar aí. Vai ao encontro de outros corações desprotegidos e cuida deles.
Assegura-te de que não há nada por mais encantador ou temível que seja que desvie a tua atenção do caminho que tens de sonhar, construir e percorrer.
Terás de recomeçar vezes sem fim, e isso desgasta ainda mais do que os próprios combates, fazendo com que pareça que nenhum deles vale a pena e que, afinal, nada faz sentido. A vida é uma luta constante, não é a história de uma batalha difícil, única e definitiva, que se vence e com isso se alcança a grandeza para sempre. Não é assim.
O bem quer-nos vivos e a lutar pela vida, pela nossa e pela dos outros, sempre. Renovando a cada dia essa decisão de estarmos ao serviço do amor e com isso a caminho da nossa paz e da nossa felicidade, que devemos continuar a fazer por merecer. Todos. Juntos.
O nosso triunfo há de ser feito através de muitos fracassos e catástrofes. A nossa glória há de ser alcançada por termos conseguido manter a nossa fé, apesar de tudo.
José Luis Nunes Martins
in: imissio.net 13.09.24
Um dos argumentos pró-ateísmo, dos mais antigos, tem a ver com a presença do mal no mundo e a consequente impossibilidade de um Deus bom. Descontando o mal por nós causado, há ainda uma abundância de males que, inexplicável e dolorosamente, caem sobre nós, sem falar nos males decorrentes de fenômenos naturais, naqueles onde não se verifica qualquer atuação humana. Não é um argumento fácil de rebater, sabemos isso desde Jó e da filosofia grega tardia. Assim alguns aconselham uma resposta que assinala nossa ignorância e nossos limites diante da conduta divina. O que a nós parece mal, seria mal do ponto de vista de Deus? Apontar algo como mal não decorre de nossos limites estreitos? Não desconhecemos mais do que conhecemos? O que não compreendemos, o mal, devemos tomar como não sendo possível compreender? O modo como concebemos Deus não interfere na dificuldade do problema? Esse tipo de resposta agrada a poucos, sobretudo se pensarmos nos que se interessam apenas por argumentos racionalmente defensáveis. E não se trata apenas de um problema teórico, mas que é, ao longo da vida, sentido por todos nós. Estamos sempre a mercê da dor, da injustiça, da contingência.
O que nos leva a uma reflexão que talvez nos permita dar um pequeno passo, sem qualquer recusa da gravidade da questão. Se o mal no mundo é incompatível com a existência de Deus, um mundo do qual o mal estivesse ausente ou mesmo bastante minorado seria, do ponto de vista do argumento acima, mais compatível com a existência de Deus. Como sabemos, o avanço do conhecimento tem, em muitos casos contornado a hostilidade da natureza, o que quer dizer que vivemos num mundo, vamos especular, onde, em algumas sociedades, a presença do mal foi, ainda que ligeiramente, afastada. Sociedades nas quais isso se observasse efetivamente tenderiam a ser mais inclinadas a aceitar a presença de Deus, dada a diminuição da presença do mal. Acho que não é isso que observamos ao nosso redor. Ao invés da referência a Deus, o que se pode ver nesses casos é a ênfase no poder humano, o que torna ainda mais remota a admissão da existência de Deus.
Claro, alguém pode alegar que qualquer dose de mal é incompatível com a existência de Deus. Mas não há aqui uma inclinação gnóstica? Apenas num mundo dotado de absoluta perfeição, Deus seria possível? É o caso de perguntar: a questão de fundo, então, mais do que a propósito da existência de Deus, não diz respeito, muitas vezes, à nossa perplexidade com o inevitável desconcerto do mundo e de seus habitantes.
Ricardo Fenati
19.08.2024
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O tema do ateísmo é sempre interessante, seja pela paixão que costuma despertar, seja pela oposição que sempre encontra, seja pelas consequências de um debate que se estende pela cultura. Claro, há os indiferentes, mas essa é sempre a posição mais fácil, o que quer dizer, destituída de qualquer disposição argumentativa, desapaixonada daquilo que inquieta da humanidade.
Talvez uma primeira questão seja a pergunta sobre de que Deus, de que imagem ou conceito de Deus, alguém se define como ateu. Antes de escutar o que o ateu tem a dizer, é preciso que esse ponto seja esclarecido. Certamente que ele pode responder: ateu em relação a qualquer Deus. Ora, isso não o exime de esclarecer o universal conceito de Deus que tem em mente. Religiões diversas pensam diversamente acerca de Deus, Deus não faz sua morada exclusivamente na religião e há os que defendem que um dos traços que devem ser associados a Deus é a impossibilidade de traduzi-lo em termos da racionalidade. E há afirmativas não tanto sobre o conceito, mas que têm em a experiência de Deus, que merecem atenção especial, como é o caso da tradição mística.
Prescindindo de tudo isso, a declaração de ateísmo perde muito do seu interesse e de sua capacidade de gerar um debate consequente. Sendo o caso de abrir mais o debate, talvez venha ser interessante examinar em que imagem de Deus se apoiavam alguns defensores clássicos do ateísmo, tais como, entre outros, Marx, Nietzsche ou Freud.
Ricardo Fenati
30.07.2024
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Só quem é capaz de lutar com determinação sem conseguir ver resultados concretos do seu trabalho durante longos períodos ou vendo apenas pequenos avanços depois de esforços enormes… só essas pessoas chegam ao mais perto do céu que há na terra.
Não escolhas nunca o mais fácil. Pois, na maioria das vezes, essa é a sedução do caminho para nos afastar do bem. Não desistas de procurar o mais importante.
O valor de uma obra é quase sempre resultado direto das adversidades que tiveram de ser vencidas para a concluir. Que a tua vida seja a tua obra-prima.
Há uma beleza única dentro de cada um de nós que vale a pena descobrir. Por vezes, o fogo da nossa alma arde por baixo de uma grossa camada de imperfeições. Mas quem perseverar e for capaz de não desanimar… há de ver uma luz única.
Voltemos a nossa atenção para o que existe de mais valioso e duradouro em todos e em tudo o que está próximo de nós. Há belezas que não sobrevivem mais do que alguns dias, e há realidades que, apesar de não fascinarem o olhar comum, são eternas e belas desde sempre.
Não percas o teu tempo com aquilo que em breve morrerá, não te iludas com belezas e bondades passageiras. O tempo é mais forte e implacável do que a rocha mais dura. Nada do que não importa sobreviverá muito tempo.
Quando conseguires amar com o teu olhar serás capaz de ver a perfeição divina que há em cada pessoa e em cada coisa!
Abre bem o coração e vê!
José Luis Nunes Martins
28.06.2024
In: imissio.net
A vida dá muito e tira na mesma medida. Pouco fica. Apenas o que construímos dentro de nós e fomos capazes de dar.
Importa ser capaz de sonhar em qualquer circunstância. Há quem tenha medo de ter esperança e quem tenha medo de não a ter, a verdade é que quando já nada esperamos, ou alcançámos a felicidade, ou já entregámos a vida ao desespero.
A vida surpreende-nos muito, mas não é bom que a vida nos deixe numa situação que nunca tínhamos sonhado, tão-pouco o que poderíamos fazer a partir daí.
Todos temos o dever de sonhar. Mesmo quando a angústia nos tenta esmagar, sonhar pode ser uma das mais fortes formas de lhe resistir, porque sonhar também é esquecer, por momentos, o hoje e viajar para longe mais rápido do que a luz.
Não deixes que os sonhos te adormeçam. Desperta, acredita e coloca-te a caminho. Faz real o que imaginas: cria o futuro que sonhaste.
Sonhar é muito mais do que pensar. Nenhum pensamento nos abre a porta da eternidade, já os sonhos são feitos pelo que dela há em nós. Quem passa o tempo a pensar acabará triste, ainda que a vida lhe possa sorrir muito.
Mas sonha com seriedade como hás de sair do pior. De todos os piores. Para que nenhum te encontre perdido e que, assim, de todos eles tenhas força e coragem para dar um salto de fé.
José Luis Nunes Martins
in: imissio.net
21.06.2024
imagem: pexels.com
Se o amor não gerar vida, não é amor. Vida capaz de transbordar alegria a partir do mais íntimo da alma, vida capaz de ajudar a sarar as feridas mais extensas e os sofrimentos mais profundos.
O amor não funciona a dois. Ou os que se querem amar se abrem ao céu, ou então nunca se amarão. O amor ou se abre ou morre.
A nossa existência resulta do amor. A criatura que somos é chamada a ser criadora, amando e dando mais vida à vida, de todas as formas, desde uma simples alegria a quem está triste, passando pela presença junto de quem, de outra forma, choraria desamparado, até a compromissos maiores do que a nossa própria existência individual.
O amor alimenta-se da confiança. Quando amamos alguém não podemos obrigá-lo a aceitar o nosso amor. Esse reconhecimento e acolhimento só pode acontecer como um ato livre. O amor só pode ser oferecido, não imposto.
Reconhecer que sou amado é um ato de amor! Mas amar com verdade implica uma confiança ainda maior. Envolve que eu vá ao encontro do outro, que o escute com atenção e que atenda às suas necessidades, dando-me. E tudo isto sem qualquer garantia que serei sequer reconhecido ou valorizado.
Hoje, num mundo em que somos mais inspirados a duvidar do que a confiar, a preocupação mais comum é a de procurarmos ter provas de que somos amados. Ao contrário, são poucos os que arriscam amar, entregando-se a alguém que pode, de forma livre, não os aceitar.
O amor é uma vontade de vida, é o que faz a vida querer viver, prosperar e multiplicar-se ainda que nas circunstâncias mais adversas. O amor é uma forma de imortalidade que se eterniza acima de quem o escolhe e de quem por ele é abençoado.
José Luis Nunes Martins
07.06.2024
In: imissio.net
imagem: pexel.com
Gostava de ser um amigo verdadeiro. Aquele de quem alguém se lembra quando um sofrimento o desgraça. Incapaz de alegria se tiver um amigo a passar pelos vales da tristeza.
Gostava de ter a coragem de dizer sempre a verdade aos meus amigos, por mais desagradável que seja, se isso lhes for útil. Mas sempre e só no tempo certo, sabendo escolhê-lo e esperando por ele.
Gostava de apoiar os meus amigos quando a vida lhes corre mal. Não importando de quem seja a responsabilidade. Queria ser o que está presente, respeitando a distância. Em silêncio, apenas afirmando a minha lealdade através da presença.
Gostava de ser capaz de dar abraços que fossem melhores do que as casas daqueles a quem os desse. E de ir onde fosse preciso para os entregar.
Gostava de ser um semeador de alegrias e um matador de medos no dia a dia daqueles cujas vidas se cruzem com a minha.
Gostava de ter sempre presente os sonhos dos meus amigos e contribuir para a sua concretização, na medida do possível, como se fossem meus.
Gostava de ajudar de perto, em vez de aconselhar ao longe. E que a minha ajuda fosse uma certeza. Tão certa como a vida querer viver.
Gostava de pedir ajuda, de agradecer e de pedir perdão. Sem esperar nada em troca, não reclamando pelo que não me agradecem nem pelos males que não assumem. Gostava de ser aquele que é capaz de perdoar até as deslealdades dos seus amigos!
Gostava de ser amigo de algumas pessoas que não me conhecem, e que não me passariam a conhecer ainda assim.
Gostava de amar os meus amigos, sempre. Não pelas suas qualidades, mas tão-só por serem amigos que escolhi.
Gostava de preencher as necessidades do outro, mais do que procurar eliminar os meus vazios.
Gostava que o meu abraço pudesse ser um abrigo seguro no meio de uma qualquer tempestade.
E, entre ser amigo de muitos ou de poucos… creio que se fosse de poucos já seria alguém extraordinário!
José Luis Nunes Martins
31.05.2024
in: imissio.net
O orgulho é um erro que faz parte da nossa natureza, sendo que me é possível tornar-me maior do que esse sentimento que me faz sentir acima dos outros!
Quem é altivo não pede ajuda, prefere cair… levanta-se sozinho e em pânico pela possibilidade de alguém o ter visto a ser, afinal, igual a todos os outros. É uma espécie de condenação a uma vida solitária. Julgam-se acima, mas vivem abaixo dos seus semelhantes, em virtude de terem escolhido mostrar apenas aquilo em que se julgam bons.
Esconder os nossos males dá-nos força, espaço e tempo. Passamos a ouvir apenas os conselhos de quem pensa como nós… porque admitir que o mal é mal implica melhorar e isso, julgam os orgulhosos, é um processo apenas para outros: os fracos.
Não querem ficar a dever nada a ninguém. Chamam a isso liberdade, mas é apenas ignorância, pois quem não aceita que a vida feliz só é possível quando nos entreajudamos. Na verdade, o amor não é algo que suponha uma contabilidade comum, é até contraditório, porque só é mesmo meu aquilo que eu tiver sido capaz de dar!
Amar também é aceitar, abrir-se ao outro, ficar a dever-lhe muito, tudo… e ser feliz com isso, sem a preocupação de lhe retribuir cada coisa… apenas com a alegria de se ser amado com verdade e sem que quem nos ama espere algo em troca!
Não olhes para ti. Observa à tua volta e encontrarás muitos exemplos de vidas heroicas a que muito poucos dão atenção. Inspira-te na abnegação dos que são capazes de se esquecerem de si em favor do coração daqueles por quem lutam para amar.
Se julgas que és muito bom, nada precisas de fazer a não ser esperar que a vida e os outros te venham prestar vassalagem… nada disso acontecerá! Então, sentir-te-ás cada vez mais frustrado e injustiçado… ao ponto de te tornares vingativo e insuportável até para ti mesmo! Sai daí!
Não deixes que o orgulho te arruíne o tempo da única vida que tens aqui!
O orgulhoso é infeliz, porque nem ama nem se deixa amar.
José Luis Nunes Martins
in: imissio.net 19.04.24
imagem: pexels.com
Grande parte de nós é hostil consigo próprio. Somos capazes de ser amigos de muita gente, mas nem sempre o somos de nós mesmos. Pelo contrário, chegamos a ser os críticos mais impiedosos e, muitas vezes, injustos do que somos e fazemos.
São poucos os que, sobre as mesmas faltas, se perdoam mais a si do que aos outros.
Mas quem se dá deve dar o melhor que é. Por amor ao outro, devo cuidar de mim e garantir que lhe chego tão autêntico quanto leve e em paz.
Se Deus, que me conhece, me ama como sou, quem sou eu para não fazer da mesma forma?
Por que razão valorizamos mais o desprezo dos que nos menosprezam do que o amor dos que nos amam?
Se cada um de nós fosse capaz de falar consigo próprio como se estivesse a falar com uma das pessoas que mais ama, então tudo seria mais calmo, verdadeiro e justo!
No entanto, porque muitas vezes nos enganamos a nós mesmos de forma muito perigosa, é preciso garantir que a nossa consciência se encontra em paz e que estamos a ter em conta o que é importante.
Um dos maiores perigos da vida é o de agirmos com um coração cego para o que não importa, nem a realidade, nem o bem, nem a verdade… este coração fechado apenas se consegue ver a si mesmo, odiando-se e valorizando-se em doses extremas, numa espécie de guerra em que se alternam de forma caótica o ódio e o ódio a esse ódio.
A maior parte de nós destruir-se-ia se lhe acontecesse tudo o que deseja… Apesar disso, quase sempre nos consideramos derrotados pelo fracasso dessas nossas esperanças!
Só quem abandona as ideias sobre o que julga ser se encontra e admira tal como é.
Devemos cuidar de nós e amar os outros. Procurando garantir que não somos ásperos nem frios com ninguém. Ninguém.
José Luiz Nunes Martins
12.04.24
In: imissio.net
imagem: pexels.com
Muitas vezes somos levados a acreditar que é possível alguém viver uma vida sem acidentes, derrotas, tragédias ou quedas. Por isso, reagimos com mais revolta do que seria normal quando algo de negativo nos acontece, porque passamos a vida a sonhar com o nosso futuro como se nada de mal fosse acontecer, numa espécie de otimismo ingénuo.
O natural é que tenhamos momentos bons e momentos maus. Mas talvez nos sintamos derrotados vezes demais, porque, na verdade, tal como nós, os outros também falham, bem como todos os mecanismos à nossa volta.
Não deixa de ser belo que nos indignemos de forma tão recorrente com o mal, porque isso significa que mantemos o sentido de justiça e a nossa inclinação natural para o bem.
Quase todos os erros que fazem parte da vida podem ser corrigidos com tempo, paciência e amor. Assim saibamos dominar em nós as pressas e as revoltas.
A irritação não é lógica nem boa. O mal combate-se com o bem, não com o mal. Reconhecer que nada neste mundo é permanente pode ajudar a gerir melhor as nossas expetativas e as incertezas. Tudo passa. E isso é que é normal.
O nosso dever é sermos felizes. E, se não conseguimos alterar o mundo em que vivemos, então que sejamos capazes de nos mudar e de nos aperfeiçoar, tornando-nos cada vez mais capazes de aceitar o que nos acontece de mau. Ao ponto de o fazermos sem revoltas instantâneas, mas com respostas prudentes, inteligentes e certeiras.
Há quem se admire tanto a si mesmo que não muda. Esses não aceitam que haja coisas que os ultrapassem, julgam-se acima de tudo quanto os rodeia, pelo que não se adaptam aos desafios que, quer queiram quer não, têm de enfrentar e vencer… e é assim, a tentarem preservar-se, que se perdem… por não saberem distinguir o essencial do que não o é.
Saiba cada um de nós renovar-se e não deixar de dar frutos sempre novos.
José Luis Nunes Martins
in: imissio.net 01.02.24
imagem: pexels.com
Vivemos em tempos de aceleração. Todos estamos muito ocupados. Trabalhos, viagens, vida familiar, amigos, exercícios físicos – todos estamos o tempo todo ocupados com uma infinidade de solicitações. Mesmo o tempo de descanso é inundado pelas redes sociais e a internet. Não temos tempo a perder. O grande pecado de nossas sociedades é ficar desocupado, pega mal, é sinal de preguiça e falta de criatividade. Em sociedades capitalistas, perder tempo é perder dinheiro: Tempo é dinheiro! (Time is Money!)
Diante dessa realidade contemporânea, o filósofo Byung-Chul Han escreve mais um instigante ensaio: Vida Contemplativa ou Sobre a Inatividade (2023). Nesse texto, ele faz um elogio à inatividade, à lentidão, à paciência e à contemplação. Para Han, a vida só recebe seu esplendor na inatividade. Ele defende que é no silenciar-se que a vida adquire profundidade, é na inatividade que a vida reluz e ganha intensidade, é na contemplação silenciosa que a vida se nos revela profunda, intensa e incomensurável.
No entanto, não é esse o ritmo de nossa sociedade. As sociedades capitalistas são caracterizadas pela utilidade, pela funcionalidade, pela eficácia e pela velocidade. Trabalho e desempenho são nossos novos mantras para os quais fazemos reverência cotidianamente. Hoje, a existência humana está absolutamente absorvida pela atividade frenética. As consequências desse frenesi são perigosas. Nossas sociedades se tornam sociedades do consumo feroz e imediato que isolam e separam as pessoas, que as transformam em consumidores solitários e dependentes de mais conteúdo informacional que é, religiosamente, absorvido sem digestão. Nessas sociedades todos estão conectados, mas ninguém sabe escutar. É uma comunicação sem comunidade, na qual o ruído da comunicação, e da informação em excesso, cria uma sociedade onde ninguém escuta, mas todos produzem conteúdo falando sem cessar.
Um exemplo claro desse estado atual é a dificuldade em sermos pacientes e lermos poesia. Não temos mais paciência para esperar que a realidade, em seus processos, lentamente, amadureça e dê frutos. Angústia, ansiedade, impaciência e agitação compõem o cardápio cotidiano de nossos problemas. Mas, também para Han, nós, os contemporâneos, mal lemos poesia dada a necessidade da lentidão, do vagar, exigidos pela leitura poética. A perda da capacidade contemplativa repercute em nossas relações pessoais, mas também, em nossa relação com a linguagem. A linguagem poética é linguagem contemplativa. Ela demanda tempo, vagar, ruminar, esperar. A poesia desarma a linguagem como mera informação, e nos coloca no nível da abertura. Ela nos abre ao inesperado, ao novo, ao inusitado.
Paciência, poesia e contemplação, segundo Han refletindo a partir de Heidegger, são capacidades que não agem. Por isso mesmo, elas nos trazem de volta para onde sempre já estamos. Elas nos abrem ao Pathos, ao padecer e ao sofrer; mas também a Eros, ao desejar e ao exceder. Elas nos lembram que somos seres radicalmente abertos, contemplativos na ação. Portanto, neste ensaio, Byung-Chul Han nos lembra muitas coisas importantes: entre elas, que somos seres contemplativos, que a paciência nos coloca inteiramente na existência e que os poetas são excelentes companheiros de caminhada. Essa última lembrança me traz à memória a profunda consideração do poeta Manoel de Barros que disse: “Minhocas arejam a terra; poetas, a linguagem” (Livro de Pré-Coisas, 1985). Mas isso já é uma outra história.
Elton Vitoriano Ribeiro, SJ é professor e pesquisador no departamento de Filosofia, e reitor da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE)
In: site da FAJE
imagem: pexels.com
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