Num livro magnífico, Maria Clara Bingemer conta a história de uma das figuras mais fascinantes do século XX — Simone Weil, filósofa, mística, ativista política. Nascida em Paris em 1909, de abastada família judia, Simone teve a melhor educação possível. Sua inteligência brilhou desde o início; mas ao lado disso estava um senso incrivelmente precoce de solidariedade com os que sofrem.

Aos cinco anos ela se fez madrinha de um soldado que combatia na Primeira Guerra Mundial e, por causa dele, privava-se de doces e tentava juntar dinheiro para remeter ao “afilhado”.

Era toda uma vocação que já se definia. Terminando seu curso secundário, tornou-se aluna do legendário Alain, filósofo e grande professor. Dali extraiu a sua base de estudos humanísticos, sua ligação com a Grécia antiga. Um de seus textos capitais trata da “Ilíada: o poema da força”. Outra característica de Simone: a ausência total de vaidade. Simone de Beauvoir encontrou-a na Sorbonne, achou graça na maneira de ela se vestir; mas assustou-se ainda mais com as suas idéias. Uma grande fome devastara a China e Simone chorava por causa disso. Ela já estava polarizada no sofrimento humano.

Convertida ao cristianismo sem rejeitar o judaísmo.

Mas não era polarização apenas intelectual, ou afetiva: ela queria viver a vida do povo, sentir as suas dificuldades. Começou uma série de experiências de trabalho em fábricas, onde disfarçava a sua condição de intelectual. Sem ter força física para aquilo, tinha dores de cabeça monumentais, mas recusava tratamento diferenciado.

Daí surgiu, depois de anos e de várias experiências, uma reflexão sobre a condição operária sem paralelo nas letras modernas. E também ali ela discernia o problema da força, da violência que dobra o ser humano, que o transforma numa coisa. Reflexão de absoluta atualidade. Do mesmo período vem toda uma meditação sobre a existência de Deus, que a levará na direção do misticismo. Ela acabou por converter-se ao cristianismo, sem com isso rejeitar a religião de seus pais.

Mas tinha dificuldades com o judaísmo ortodoxo, porque não conseguia digerir a violência que transborda de certos textos do Antigo Testamento. Neste sentido, sem chegar a uma adesão formal, é que ela experimentou a atração do cristianismo: na cruz de Cristo, ela via a figura divina finalmente irmanada às nossas dores, sofrendo o que nós mesmos sofremos.

Simone passou pelos grandes conflitos do século XX. Do ponto de vista teórico, desenvolveu uma crítica penetrante do marxismo, mostrando por que a obsessão pela economia não representava um caminho aceitável. Foi para a Espanha ajudar na luta contra o franquismo, mas também por esse lado colheu decepções. E, finalmente, fez tudo o que pôde para participar da luta contra o nazismo. Em todas essas peripécias, fazia questão de partilhar a sorte dos que tinham a vida mais dura: recusava-se a comer mais do que a ração entregue aos soldados no front, ou às populações depauperadas — com o que a saúde, já frágil, acabou cedendo, resultando na sua morte prematura. Ela é o exemplo do intelectual que desenvolve o seu pensamento em contato direto com a mais crua realidade. Quando ela escreve sobre o impacto da força nos seres humanos, é porque sentiu diretamente esse efeito, nas fábricas onde trabalhou, nos combates da Guerra Civil espanhola.

Pensamento racional acossado pela violência.

Escreve Maria Clara Bingemer: “Simone acusa a nossa época de ser o palco de uma decadência intelectual terrível. A ciência contém mecanismos intelectuais refinados para resolver os problemas mais complexos, mas é incapaz de ajudar a aplicar os métodos elementares do pensamento racional”. Diz a própria Simone: “Em todos os campos, parecemos ter perdido as noções essenciais de inteligência, limite, medida, grau, proporção, relação, ligação, conexão entre meios e resultados”. Sente-se nessa frase a antiga aluna de Alain — como o seu mestre, apaixonada pelo senso de medida dos gregos, pelas possibilidades do pensamento racional.

Mas, em todas as épocas, esse pensamento racional é acossado pela violência pura, pelo jogo das paixões — e é isso o que Simone identifica no descontrolado cenário moderno. Com o seu cérebro privilegiado, ela vai tentar destrinchar essas relações entre o ser humano e a força que o destrói, ou o oprime. Mas o problema é de tal natureza que não admite solução puramente racional. E é então que Simone — como a sua contemporânea e irmã espiritual, Edith Stein — vai procurar luz e consolo no mistério do Cristo. Maria Clara quase que resume o caminho espiritual de Simone Weil na idéia da compaixão — “sentir com”, “sofrer com”. É o que a menina Simone já sentia, e o que, na mulher adulta, se transforma em opção consciente. A autora cita Simone: “É extremamente difícil a capacidade de prestar atenção a um infeliz — é quase um milagre; ou é mesmo um milagre”.

Luiz Paulo Horta