O místico medieval Ricardo de São Vítor escreveu: “Onde há amor há um olhar.” Não raro, esse olhar que o amor nos pede acontece no contexto de um sofrimento que preferíamos absolutamente não viver, mas do qual aprendemos alguma coisa — e alguma coisa preciosa — a que sem ele não chegaríamos. O mundo da dor é vasto e bem mais próximo do que supomos. Quando menos pensamos, damos por nós a habitar o seu território. E os sentimentos que, então, nos sobrevêm são tantos: entramos em negação, em revolta, em depressão, em ressentimento; apetece-nos fugir para longe; perguntamo-nos: “porquê?”, “porquê a mim?”, “porquê agora?”; a impressão que temos é que tudo em nosso redor naufraga e nós também; sentimo-nos impreparados para essa empresa exigente. E, relativamente a este último ponto, temos razão. A cultura dominante faz da doença, da velhice, da deficiência e do limite um completo tabu. Persiste uma espécie de interdito a respeito da vida vulnerável: não se fala dela socialmente, cada um deve viver essas situações em estrita solidão, não nos ajudamos a aprofundar essa experiência como um recurso e não como uma fatalidade. Contudo, a verdadeira realidade é tão diferente do desenho traçado pelo egoísmo ou pelo medo. Escutava há dias um pai, falando do seu filho afetado pelo Síndrome de Down, e ele dizia, sem esconder a comoção: “Este meu filho é o membro mais importante da nossa família. É o nosso elo de união. Fez de nós pessoas diferentes, mais humanas e atentas aos outros. Ampliou a nossa capacidade de amar. O que recebemos dele não tem preço.” E, na mesma linha, ouvia de uma amiga que, tendo começado a viver independente dos pais muito cedo, lhe coube depois acompanhar a mãe numa velhice muito sofrida. A vida desta amiga mudou da noite para um dia. De repente, dava por si em trabalhos e preocupações completamente diferentes, em que a mãe era o centro. A princípio, ainda pensava naquilo que estava a perder com esta mudança, mas assumiu-a depois como uma oportunidade de se reencontrar com a vida. Não é que tivesse grandes conversas com a mãe. Passavam, sim, tempo juntas. Caminhavam devagar, de braço dado, nos longos corredores do hospital ou quando desciam ao parque, vizinho da sua casa, para olhar as flores. Massajava com creme a cara, as mãos, os pés da mãe todas as noites. Tinham mil ocasiões para dizer “amo-te” ou “obrigado pelo teu amor”.

Recordo a peça de teatro de Romeo Castellucci, intitulada “Sobre a Definição do Rosto do Filho de Deus”, que esteve em cena em Lisboa, há uns anos atrás. A peça propõe uma reflexão em torno de duas imagens, e a primeira é esta: um filho que trata do pai, de um pai idoso, com muitas limitações de saúde. É até, para os espectadores, uma coisa dura de ver, porque um dos problemas daquele pai é uma incontinência fecal. De maneira que o filho tem de estar sempre a limpá-lo. E muitas vezes nos parece que vai soçobrar, que já não será capaz, porque está sempre a acontecer a mesma coisa. Apercebemo-nos do seu esforço extremo: é extenuante amparar as necessidades de outro ser humano. Mas ao mesmo tempo, com que delicadeza, com que transparente amor aquele filho se debruça para o pai e o sustenta. E há um momento belíssimo no meio daquele combate interminável em que ambos são aliados: agarram-se um ao outro e, abraçados, choram. Pai e filho choram perante o irremediável da própria vida, sentindo que já não vão conseguir resolver nada senão amar-se, senão perdoar-se, senão acompanhar-se até ao fim. Por paradoxal que possa ser, um dia apercebemo-nos que poucas coisas no mundo são tão importantes como essa.

D. José Tolentino Mendonça

In: imissio.net