Vivemos num tempo de incúria das palavras, no qual abundam neologismos eufemísticos: fala-se de «guerra preventiva» para definir a agressão militar; recorre-se ao termo «flexibilidade» para falar de desemprego ou despedimento. Mais do que nunca há necessidade de filologia, isto é, de amor pelas palavras; ou também, para o dizer com outra metáfora, de ecologia da linguagem.
A esta sorte não escapa sequer um termo que muitas vezes ouvimos ressoar: «Conviver/com-vivência». Na linguagem comum, é agora sinônimo quase unicamente de coabitação entre pessoas não casadas. Que empobrecimento! Essa é só uma pequeníssima parte da questão. Mais em profundidade, con-viver significa aprender a viver juntos, e aprendê-lo como um verdadeiro e autêntico ofício.
Quem pertence à minha geração só pode ligar essa expressão ao título dos diários de Cesare Pavese, “O ofício de viver” (ed. Relógio d’Água, 2005, em Portugal). Pois bem, se aprender a arte do viver é um trabalho pessoalíssimo a caro preço, assim o é também aprender a arte, o ofício do viver juntos: não eu sem ou contra os outros, mas eu juntamente com os outros.
Esse caminho não deve ser pensado em termos de empobrecimento: «Os outros são o inferno (Sartre), porque me cortam as asas, impedem-me de desenvolver a minha personalidade, forçando-me ao compromisso». Não, está na hora de compreender que o encontro, o viver juntos, numa troca de olhares, gestos, palavras, e também silêncios, pode ajudar a fazer florir a personalidade singular: pode ajudar a passar do indivíduo à pessoa. Não se deve esquecer que, segundo uma audaciosa etimologia, “pessoa” poderia derivar do verbo latino “per-sonare”: eu sou enquanto ressoo o apelo do outro…
Partindo dessa dimensão de proximidade, o conviver alarga-se igualmente ao sentido da convivência civil. Como escreve justamente Andrea Riccardi, «sem uma cultura partilhada não se pode fazer muito no nosso mundo, e, sobretudo, arrisca-se muito. A consciência da necessidade da civilização do conviver é o início de uma cultura partilhada entre homens e mulheres diferentes». Numa simples pergunta: é verdadeiramente mais feliz quem ergue muros cada vez mais altos e sofisticados, ou quem sabe partilhar (sinônimo de conviver) aquilo que tem, chegando, assim, a um enriquecimento recíproco?
A minha cultura cristã de proveniência impele-me, quase naturalmente, a ligar o tema do conviver a uma expressão de Paulo de Tarso. Na sua Segunda Carta aos cristãos de Corinto, define assim o fim da vida cristã: «Estais no nosso coração para morrer juntos e viver juntos» (7,3). Parece um absurdo lógico, e em vez disso pode exprimir admiravelmente o fim do con-viver, inclusive a nível humano: só quem está disposto a dar a vida, no limite até à morte, pode conseguir verdadeiramente con-viver, viver junto aos outros com consciência de causa. E assim se aprende, na profundidade do coração, a laboriosa arte do entrelaçar vidas, histórias e destinos.
In Monastero di Bose
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 07.07.2020 no SNPC