“A vinda do Filho do Homem será como no tempo de Noé” (Mt 24,37)
Começamos um novo ano litúrgico. É um tempo especial que a Igreja nos oferece como escola de oração e oficina de discipulado: ela nos convida à contemplação e invocação dos mistérios de Jesus “hoje” e à aprendizagem do autêntico discipulado neste nosso tempo. O Ano Litúrgico nos diz que o tempo não é movimento circular, repetição do mesmo (chrónos), mas renovação permanente, acontecimento surpreendente (kairós). Acolhamos este novo ano litúrgico como tempo de graça e salvação.
No Advento, somos movidos a “sentir o tempo” de um modo novo, a fazer-nos amigo dele, a nomear e acompanhar o tempo que nos cabe viver, a habitar com intensidade as diferentes etapas de nossa vida. Cada momento esconde sua pérola, e é muito excitante quando chegamos a descobri-la.
Falar do “tempo” não é tão simples e óbvio; é frequente encontrar-nos numa situação na qual vivemos o tempo como um túnel, contínuo, repetitivo... Trata-se de um tempo que absorve, devora, desgasta, esgota...; túnel onde só há presente e sua prolongação homogênea. É cenário de uma frenética e acelerada corrida por rentabilizar ao máximo os minutos e as horas. O tempo torna-se cada vez mais veloz, fugaz, estressante... “Kronos” continua a devorar com maior intensidade o que cria. Diante disso, não há futuro auspicioso, nem esperança que sustenta... Com isso, corremos o risco de viver em um “tempo sem tempo”! Um tempo para “ter”! Um tempo para preencher! Um tempo de excesso de informação circulante e de atividades insensatas (sem sentido)! Um tempo sem eternidade.
Um tempo assim só é habitado pelo “ego”; não há lugar para o outro, muito menos para o Outro. Podemos dizer que um tempo assim cheira a mofo, não está arejado...; é monstro que nos devora. Trata-se de um “tempo sem advento”: não vem ninguém, não esperamos ninguém... Também Deus não consegue entrar em nossos “tempos apertados”.
Marcados pelo “tempo vazio” a ser preenchido a todo custo, acabamos por perder a consciência da riqueza do “tempo do Advento”. Tempo forte carregado de sentido, que nos humaniza e nos faz caminhar em direção Àquele que vem vindo... ao nosso encontro. Tempo que nos faz ter acesso àquilo que é mais humano em nós: o sentido da esperança, a travessia, o encontro com o novo...; tempo que nos arranca de nossas rotinas e modos fechados de viver.
Viver o tempo intensamente, vivificá-lo, cuidá-lo e artisticamente orientá-lo para aquilo que desejamos. Este “tempo presente” é oportuno, precioso e não volta mais. Vivê-lo para além dele, na espera do que deve vir, carregá-lo de intenção e de presença.
Mais uma vez, é preciso parar e descer a esse nível do tempo para ir descobrindo uma Presença que completa nosso ser, que plenifica nossa existência, que responde à nossa interrogação existencial...; está aí, vindo em direção à nossa vida, mais uma vez e de maneira surpreendente, como sempre esteve. “Eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele comigo” (Ap. 3,20).
Advento, portanto, nos revela a presença da eternidade no coração do tempo. O Eterno irrompe na história, iluminando a dura rotina e a sequência do cotidiano. E, no nosso interior, o Eterno tem seu templo. Quando o Advento aponta para a eternidade, bem que poderíamos olhar para dentro de nós mesmos. Aí, no nosso interior, há tanto de eterno. A eternidade dialoga com a gente, fala por dentro.
Passamos a viver, então, o tempo da espera e da esperança, das buscas e dos silêncios... Sem a eternidade do coração que pulsa em nós, que nos unifica e plenifica, a vida se empobrece.
Por outro lado, o Advento nos desperta para “olhar” ao nosso redor e descobrir que Deus continua vindo. Sempre e por caminhos surpreendentes. Advento nos convida a “contaminar-nos” da realidade; e isso nos humaniza. Toda a nossa vida torna-se Advento.
Deus está no coração do tempo. Deus está ali como força explosiva que dá à nossa vida nova dimensão e à nossa existência, infinito valor. De agora em diante, cada um de nossos momentos está cheio de Sua presença, pois a eternidade está no coração do tempo. Deus transforma o “kronos” em “Kairós”.
A invasão da eternidade no tempo confere a este mesmo tempo uma plenitude de ser, um peso de realidade e existência, uma densidade de sentido que ele é incapaz de ter por si só. De agora em diante, nada em nossas vidas é insignificante, nem rotineiro. A ação mais simples é transfigurada e assume uma dimensão eterna e divina. Nada é banal, nada é comum para alguém cuja vida mergulha no eterno.
No evangelho deste domingo, tanto a referência à história de Noé, como as duas breves parábolas que seguem, se apresentam com um matiz de “urgência”, que se traduz em um chamado à “vigilância”: “ficai atentos..., ficai preparados”. Sem dúvida, é um convite a permanecer despertos, porque o “Filho do Homem”, está vindo, e só a atenção nos permite percebê-lo.
Numa leitura literal, esta “vinda” pode ser mal-entendida como algo que deve acontecer em um futuro mais ou menos próximo, e que comporta um juízo com o correspondente “prêmio” ou “castigo”. No entanto, o texto mateano nos oferece uma perspectiva mais ampla e atual.
Deus está vindo a todo instante, mas só quem está verdadeiramente desperto entrará em sintonia com essa presença e deixar-se-á inspirar por ela. Se não descobrirmos essa presença, nossa vida poderá transcorrer sem tomarmos consciência da maior riqueza que está ao nosso alcança. Deus não tem que vir em nenhum momento especial, nem vem de parte alguma, porque é a base e fundamento de nosso ser; e se Ele se separasse de nós um só instante, nosso ser voltaria ao nada. O que chamamos Deus está em nós como fundamento, mesmo que não descubramos sua presença. Mas, como ser humano, nossa mais alta possibilidade de plenitude consiste precisamente em descobrir e viver conscientemente essa realidade. Deus está presente em tudo, habita em todos os seres, mas só o ser humano pode ser consciente dessa presença.
É preciso recuperar a força do “hoje” de Deus para conosco, reconhecer o “tempo” de sua Vinda, em tempos de deslocamentos. Vislumbramos “algo” no horizonte e percebemos seus passos enquanto chega; e a história é o rumor desses passos. Caminhamos para Ele quanto mais nos adentramos no profundo de nós mesmos e da realidade.
Contemplando o “hoje” de Deus, o coração se alarga até o assombro, os braços se abrem para a acolhida, os pés se movem para o encontro, os olhos se aquecem para o reconhecimento.
Texto bíblico: Mt 24,37-44
Na oração: É preciso despertar e abrir bem os olhos.
Viver vigilantes para olhar mais além de nossos pequenos interesses e preocupações. O Evangelho nos convida a estar vigilantes. Estar desperto é a condição mínima para ativar nossa humanidade.
- O que você está vislumbrando no seu horizonte pessoal, social, espiritual, profissional, relacional...?
- Deus entra em sua agenda, em seu tempo? Quê sinais de sua presença você percebe no ritmo cotidiano de sua vida?
Pe. Adroaldo Palaoro sj