“O fariseu de pé, rezava assim em seu íntimo: ‘Ó Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros homens...,

nem como este cobrador de impostos” (Lc 18,11)

 

Nesta parábola, mais uma vez Jesus desvela a presença de dois personagens em nosso interior: o fariseu, expressão máxima do legalismo, do moralismo, do perfeccionismo, e o publicano, expressão máxima daquele que se reconhece pecador, necessitado da misericórdia divina. Ambos vão ao templo (coração)  para orar, e, na oração, cada um deles revela seu rosto e sua identidade.  Qual deles prevalece em nosso interior? Qual deles alimentamos?

 

De fato, é na oração que o ser humano exprime aquilo que é mais íntimo e mostra como ele se relaciona com os outros e com Deus. Jesus nos apresenta o fariseu como protótipo da pessoa que se sente segura de si mesma, e que tem essa segurança porque cumpre minuciosamente com as observâncias religiosas. Não pode ver nem reconhecer suas imperfeições, mesmo estando dentro dos muros de um lugar sagrado. Em sua oração, ele não pede nada, mas informa a Deus sobre sua perfeição: na realidade não é Deus o centro da sua existência, mas seu eu. Ele dá graças por sua conduta perfeita e exemplar.

 

Não só é perfeito diante de seus olhos, mas quer também mostrar-se perfeito aos olhos de Deus. A tendência à perfeição favorece um egocentrismo refinado.

 

Na sua oração, o fariseu se considera “justo” e pensa agradar a Deus com suas observâncias e práticas legais. Ocorre que não é nada elegante alguém se apresentar a Deus com as credenciais de “justo”, pois o fariseu se esquece que só Deus pode justificar o ser humano. A autoglorificação impede sua humanização. Petrifica-se em seu legalismo e perfeccionismo.

 

Ele está cego e não vê que também é pecador, dependente da misericórdia de Deus. Não reconhece sua realidade pobre e limitada e, em sua oração, está ausente o pedido de perdão. Incapaz de olhar intimamente para si, cobre com um véu os próprios pecados, fazendo de conta que eles não existem. Incensurável, respeitador e cumpridor de todas as leis – porém cheio de si -, o fariseu voltou para casa com um pecado a mais. A consequência é vida dupla: a fachada externa perfeita que esconde um interior frio e insensível, resistente a perceber a própria fragilidade.

 

Na sua autossuficiência, o fariseu pensa que pode “ficar de pé” diante de Deus e à frente de todos; sobe o pedestal da “perfeição” e do “legalismo” e distancia-se do amor e da misericórdia de Deus; com isso, cai no orgulho religioso e é incapaz de ouvir a Deus no seu íntimo.

 

Na prática, a oração do fariseu significa submeter Deus a si mesmo, cobrando o prêmio pelas boas ações. Agradece porque é sem vícios, não porque se sinta amado por Deus. Seu louvor e agradecimento são apenas um pretexto para louvar a si próprio, inflar o próprio ego; na sua oração Deus não tem o lugar que lhe é devido; a oração passa a ser um monólogo vazio e presunçoso de quem “celebra” seu “eu” e seus méritos diante de Deus. E como fala só consigo mesmo, encontra-se só com seus méritos e suas pretensões. O seu monólogo é um palavreado crônico, exibicionismo enganoso de um “eu” que não tem outro “deus” além de si mesmo. Ele tem méritos e nada deve a Deus; ao contrário, Deus é quem lhe deve: a enumeração de suas boas obras implica a pretensão de uma recompensa.

 

Por considerar-se “justo”, apresenta a Deus uma lista de pessoas indesejáveis, censurando e condenando a todo mundo. O perfeccionista não pode prescindir da comparação. Tem necessidade de um ponto de referência que destaque sua grande estatura legalista. Por isso o fariseu observa a presença de um pecador com quem se compara e diante de quem se sente superior.

 

Não há perfeccionista que não seja inquisidor, nem inquisidor que não seja perfeccionista. A tendência à perfeição oprime a pessoa até sufocá-la; sendo excessivamente exigente, oprime e sufoca também os outros. Por isso, a tendência à perfeição é uma doença do espírito, um eu em conflito consigo mesmo. O perfeccionista vive uma batalha interior, uma batalha que jamais se vence; sua vida torna-se estreita, ele se desumaniza e mergulha nos escrúpulos.

 

Quem se deixa guiar pela ideia de perfeição, cedo se dará conta de que não poderá abraçar a vida. Permanecerá confinado num eu inchado e vazio, que caminha sobre pernas de pau. O “fariseu” que todos hospedamos em nosso interior realiza seu trabalho em silêncio, mas com uma eficácia impressionante: torna o nosso coração impermeável à experiência divina e petrifica nossa compaixão na relação com os outros.

 

Jesus destrói o conceito de “justificação” rabínica, baseada no cumprimento da lei, quando, na pessoa do publicano, mostra que Deus salva quem julga nada ter a apresentar, sente a necessidade de se converter e de se entregar. Consciente de sua indigência e fragilidade, o publicano prostra-se diante de Deus, volta-se para a o chão, reconhece seu pecado, abre-se à misericórdia de Deus, de quem espera o perdão. Esta humildade é a porta de abertura para sair de um coração fechado em si mesmo, de um coração autossuficiente e perfeccionista, onde tudo gira em torno do próprio eu, onde não há espaço para o Outro e os outros, onde a Misericórdia não tem como agir para poder transforar a pessoa.

 

Jesus sabia que a pessoa consciente das suas imperfeições é mais disponível ao anúncio do Reino. Sabemos que as escolhas de Jesus não caíram sobre os perfeitos. As pessoas com quem Ele entrou em contato não eram conhecidas por suas boas maneiras nem pelas boas ações, antes, eram pecadoras públicas.

 

O publicano não tinha esperanças: reconhecendo-se pecador diante de si mesmo, diante de Deus e dos outros, sabia que a única esperança era a misericórdia de Deus. Diante da grandeza e transcendência de Deus, sente uma necessidade instintiva de retirar-se, de deter-se, quase pedindo desculpas por ousar entrar no templo. Ele nada tem para apresentar a Deus, nada de que se orgulhar e nada para exigir. Só lhe resta a pobre oração dos excluídos e dos pecadores assumidos, dos desmoralizados e humildes.

 

Nesta parábola, Jesus revela também um Deus desprovido de dogmatismos, de controle e de poder. O Deus de Jesus não é um juiz com um catálogo de leis que tem necessidade de mandar, impor, verificar... Basta-lhe a misericórdia, a compaixão...

 

A misericórdia torna o Deus de Jesus acessível a tudo que é imperfeito, limitado, humano... A misericórdia constitui a resposta à indigência do ser humano. Ela oferece a possibilidade de pôr de lado o julgamento e a condenação. O passado de erros e fracassos é substituído pelo presente de aceitação e perdão. Onde não há misericórdia, não há sequer esperança para o ser humano.

 

A misericórdia é a resposta de Deus ao delírio do ser humano de querer ser perfeito; é a única força capaz de deter o ser humano naquele processo de autodivinização, própria do fariseu. Jesus propõe um modo de ser humano inseparável da misericórdia do Pai:

         “Sede misericordiosos como o Pai é misericordioso” (Lc. 6,36)

Ser misericordioso “como” Deus constitui o mais elevado convite e a mensagem mais profunda que o ser humano recebe sobre como tratar a si mesmo e aos outros.

 

Texto bíblico:   Lc 18,9-14 

 

Na oração: * Fazer leitura compassiva das atitudes petrificadas em sua vida.

* Sua vida cotidiana gira em torno da perfeição farisaica ou da misericórdia divina?   

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj