Campo-santo
Na minha terra a morte é minha comadre.
Subo a rua Goiás, atrás de coisas miúdas, um chinelo, uma travessa, uma bilha nova,
e à medida que subo, mais chego perto do campo
onde dormem sem sobressaltos o pai, a mãe, a irmã,
a menina que no segundo ano se chamava Teresinha.
A grande tarefa é morrer.
Até lá rondo os muros e em qualquer parte da cidade oriento-me
pela mão estendida do Cristo de mármore preto do túmulo do coronel.
No cemitério é bom de passear.
A vida perde a estridência, o mau gosto ampara-nos das dilacerações.
A gradinha de ferro defende o exíguo espaço, onde mais exíguos os ossos se confinam,
ossos que andaram, apontaram e voltaram a cabeça
e sustentaram a língua e os olhos e fizeram o arcabouço para a voz sob o sol:
‘santo remédio, erva-de-bicho, dá na beira do rio’.
O mistério não me fulmina porque a inscrição tem erros
e no túmulo de Maria Antônia – que morreu por mão do marido –
os pedidos maiores são de emprego.
Enegrecidas de chuva e velas, adornadas de flores
sobre as quais sem preconceito as abelhas porfiam,
a vida e a morte são uma coisa só.
Se um galo cantar e for domingo, será tanta a doçura que direi:
vem cá, meu bem, me dá sua mão, vamos dar um passeio,
vamos passar na casa de tia Zica pra ver se Tiantônio melhorou.
Ressurgiremos. Por isso o campo-santo é estrelado de cruzes.
Adélia Prado
O coração disparado (1978). In: Poesia reunida. São Paulo: Arx, 1991, p. 173