Diretor: Yojiro Takita

Japão – 2008

 

Sobre a delicadeza que a vida merece, e assim pede que possa ser!

 

Ainda sob o impacto do filme, vivo as lembranças que me vêem. De uma frase de meu pai: “Os mortos governam os vivos”. Daquela menina-eu que, no Dia de Finados, passeava com o pai por entre os túmulos. Ele falava das famílias que ali estavam, e os dois juntos admiravam as expressivas figuras de Jesus, santos e anjos, testemunhas estáticas dos sentimentos daqueles que ficavam, e para sempre privados da companhia de seres queridos. Pai e filha liam frases gravadas nas lápides. E todos os anos voltavam para um túmulo em especial, em que o amado deixou gravado para todo o sempre, um longo poema para a amada que se foi. Depois do filme, ocorreu-me pensar que todas aquelas obras talvez sejam um jeito ocidental de “ajudar na partida”; ajudar tanto os que partem como os que ficam. Estas cenas infantis deixaram em mim um carinho especial pelos mortos, e um natural e profundo respeito pela “morada terrestre dos mortos”, os cemitérios. Mais tarde, a vida trouxe-me uma frase do psicanalista inglês, D.Winnicott, que veio a reforçar a vida na morte, a morte na vida: “Que eu esteja vivo, na hora de minha morte”. Assim, reverencio e me aproximo dos que se vão. Não me pergunto para onde, e nem isso me inquieta, pois os mortos continuam vivos em meu coração e saudade. Isso não significa não sentir dor e nem tristeza e muito menos, não sentir a falta de cada um dos que se foram, na “partida”.

 

Meus amigos de Cinema: não lhes faço declarações pessoais apenas para partilhar e contar um pouco de mim. Falo desde meu sentir, para que esse “sentir” alcance vocês em seu próprio “sentir”, lugar privilegiado em que vivências e transformações internas podem acontecer. Creio ser esse o maior serviço (dentre outros) que a Sétima Arte pode nos oferecer: a introspecção, a possibilidade de adentrarmos em nós mesmos, por mecanismos de identificação e projeção que as situações e personagens nos propiciam. Sendo “penetrados” pelas cenas, iremos além do “pensar” o filme, e deixaremos que ele “viva” em nós. E é preciso que o tema da Morte “viva” em nós, para que mais possamos viver a delicadeza que a vida merece, e pede que assim possa ser!

 

Daigo (D.) vive a “partida” do seu violoncelo tão cuidadosamente tratado, e tão vivamente presente em seus sonhos de toda uma vida. Com o violoncelo também “partem” os sonhos. E com essa “partida”, ele fica sozinho com o recomeço de uma vida; e retoma suas origens. Será necessário “perder” para poder defrontar-se consigo mesmo? “Para que tanto esforço se pode morrer no caminho?”, assim se pergunta Daigo ao observar os salmões que nadam contra a corrente para fazer sua desova. No entanto, outro olhar é dado pelo senhor da Casa de Banhos: “Talvez eles voltem para o lugar de onde vieram”. Ou seja, morrer é voltar para o lugar do início; é começar de novo, de um outro jeito. A beleza do filme é que, para mais além de qualquer viés religioso, o momento da morte é mais uma oportunidade para celebrar e cuidar da vida. No entanto, esse cuidar passa pelo perder, pelo não mais ser. E aí vêem a dor e a emergência de conflitos pessoais e familiares. Diferentes são as circunstâncias do morrer e as reações que gera. Mas a todos deve ser dado o mesmo tratamento e cuidado. Temos a senhora que morava sozinha, e que sozinha morre, sem que se dêem conta disso. É o pai que frente à cerimônia do cuidado ao momento da travessia vida-morte, descobre que ama o filho, mesmo que ele tenha usado roupas de mulher. É a mãe que não aceita a vida que a filha levava (a dos cabelos ruivos), e culpa a outro pela sua morte. É a neta que pode dar à avó, em seu último momento, o calor da meia grossa e longa dos estudantes.

 

É a filha que sabe qual era o batom de que a mãe gostava. É a família do falecido que “brinca” e deixa a marca do beijo-batom, na alegria do “obrigado por tudo”. É o filho que se reconcilia com a mãe, inda que seja nesse derradeiro momento. É Daigo que oferece ao pai, tão seu desconhecido, não o concerto de violoncelo que este tanto desejara, mas apenas o filho crescido que pôde ser, mais os seus préstimos profissionais, agora reconhecidos por Mika, sua esposa. Encontrar a pedra-carta nas mãos do pai foi encontrar o elo perdido entre pai e filho. E fica para nós que para Daigo, o violoncelo pode ter sido o elo que manteve viva a memória do pai da partida. Libertar-se do sonho do pai foi poder ser quem ele podia ser, mesmo a música sendo a companheira de todas as horas.

 

Quis com isso mostrar que mesmo na hora da morte, e sobretudo com ela, e por ela, os conflitos familiares e pessoais emergem. E nesta hora da vida, que é a morte, ainda temos a chance de nos reconciliar com o que nos “separou”, com o que nos fez viver “a partida”, mesmo em vida. Por tudo isso e por todos, fica registrada a delicadeza que a vida merece, e assim pede que possa ser!

 

E o filme nos brinda repetidamente com o tema da fraternidade e respeito, como no momento em que Daigo, no Japão, toca a Ave-Maria de Gounod, na noite de Natal, celebrada como a noite do nascimento daquele que é vivido como o Príncipe da Paz. Oriente e Ocidente encontram-se. E termino com uma frase de Pablo Casals (ouçam os concertos de Brahms para violoncelo), o violoncelista que aparece entre os discos do pai de Daigo:

 

"A música - maravilhosa linguagem universal que todos compreendem - deve contribuir de tal forma a aproximar os seres humanos. Por isso, faço um apelo a todos os músicos, especialmente aos meus companheiros, para pedir-lhes que ponham a pureza de sua arte a serviço da humanidade para criar relações fraternas e iluminadas entre os homens do mundo inteiro. A Ode à Alegria de Beethoven, da Nona Sinfonia (tocada pela orquestra no início do filme) tornou-se símbolo do amor à humanidade. Proponho, portanto, que todas as cidades que tenham uma orquestra e um coral participem da execução da Ode à Alegria num mesmo dia, transmitindo esse evento para todos os recantos do mundo pela rádio e televisão até às mais pequenas comunidades como uma oração pela paz que tanto almejamos.".

 

 

Maria Teresa Moreira Rodrigues

Psicanalista em Campinas-SP -  Espiritualidade Inaciana

15.05.2012