Marie-André, no esboço biográfico de Charles de Foucauld, escreveu: «Entre as grandes figuras atuais, poucas são tão brilhantes quanto o Padre de Foucauld. Nada mais admirável, com efeito, do que ver um mundano, desocupado, libertino, transformar-se quase subitamente em asceta, em penitente, em contemplativo, em apóstolo. A mudança desse homem provaria, se necessário, o poder da graça divina, quando unida à vontade humana».
O visconde Charles de Foucauld nasceu em Estrasburgo no dia 15 de setembro de 1858. Ficou órfão desde os seis anos, passando a viver com o avô, o coronel Morlet, que se encarregou da educação do menino. No ano de 1870, o militar mudou-se para Nancy, onde matriculou o neto no liceu. Recebeu a primeira comunhão aos 14 anos.
O avô deixava o jovem Charles fazer vingar os seus muitos caprichos, e este, na companhia de outros amigos rebeldes, depressa abandonou a fé e a prática religiosa. Após terminar o liceu, manifestou o desejo de se tornar oficial. Assim, frequentou a Escola Sainte-Geneviève, onde foi tudo menos bom estudante. Passou a maior parte do tempo em festas e a gastar a fortuna que possuía. Frequentou ainda a Escola Militar de Saint-Cyr. O seu avô, por prudência, colocou Charles sob a tutela judiciária, de forma a conter os seus excessos.
Na Escola de Cavalaria de Saumur foi detido, mas fugiu, tendo sido encontrado pela polícia dois dias depois. Já alferes em Pont-à-Mousson, no 4.º Regimento de Hussardos, transferiu-se com o restante regimento para África, mas devido aos seus desregramentos, os chefes pediram-lhe que requeresse baixa. Assim, deixou África e voltou a França, onde a sua vida libertina continuou.
No ano de 1881 estalou uma revolta no sul de Orã, e o Regimento de Hussardos segue para lá. Embora tivesse abandonado a companhia militar anos antes, Charles escreveu para o Ministro da Guerra, pedindo para ser reintegrado, mesmo que perdesse o posto de oficial e fosse enviado para o continente africano. O desejo concretizou-se. Partiu para África, onde a sua vida começou a mudar. Teve o seu primeiro contacto com indígenas muçulmanos, o que suscitou o desejo de conhecer melhor o Islão. Terminada a revolta no sul de Orã, resolveu explorar Marrocos.
Charles preparou bem a expedição, que durou um ano, muito tendo visto e aprendido. Um dia foi assaltado, ficando sem nada. Aqueles que o atacaram e prenderam discutiram entre si se o deixariam viver. A Providência quis que vivesse. Retornou a França, onde redigiu as notas da viagem, que resultaram no livro «Reconhecimento de Marrocos», obra premiada pela Academia Francesa.
Não ficou muito tempo em França, antes partiu novamente em direção a África, para nova campanha, agora para a Argélia, regressando novamente a Paris.
Já na primeira expedição ficara fascinado com as manifestações religiosas de judeus e muçulmanos, tendo daí nascido o desejo de aprofundar a sua própria religião. Lê, investiga e observa o cristianismo. Um encontro com o padre Huvelin, vigário de Paris, será decisivo, pois vê no sacerdote um cristão santo e um amigo com quem abrirá o seu coração. Num dia de outubro de 1886, Foucauld entrou na igreja de Santo Agostinho e abeirou-se do confessionário do padre Huvelin. Pediu que lhe desse a conhecer a fé católica, pois, como afirmara, procurava a verdade e não a encontrava.
Confessou-se e recebeu a Eucaristia. Tinha 28 anos. Tudo começou a mudar na sua vida. Sentia-se chamado a um ideal. Participava na missa todas as manhãs, lia o Evangelho e recebia catequese do padre Huvelin. Em 1888 viajou para a Terra Santa, seguindo os passos de Cristo. Finda a peregrinação, regressou a França com o desejo de se consagrar a Deus. Apresentou-se aos Trapistas de Nossa Senhora das Neves, no Ardèche, como postulante. Todavia, Charles deseja mais, e com autorização dos superiores deixa a comunidade e parte para o Mosteiro de Akbès, na Síria.
Ainda assim, continua a pensar que é pouco. Deseja voltar à Palestina e ser eremita. Foi convocado pelo Superior Geral a Staueli e depois enviado para Roma, onde estudou Teologia. Depois de libertado dos seus votos, foi autorizado a viver na Palestina, partindo para Nazaré, onde trabalhou na casa das Clarissas. Vivia numa pequena cabana, onde havia uma esteira, um banco e uma mesa.
Decide ir a Jerusalém, percorrendo 150 km a pé. A superiora do convento das Clarissas, que o acolhe, convence o eremita de que deveria ser sacerdote, algo que Charles considerava não ser de todo digno. Influenciado pelos argumentos da religiosa, consultou o padre Huvelin, que se mostrou de acordo. Deixou então a Palestina e voltou ao Mosteiro de Nossa Senhora das Neves com vista à preparação para receber o sacramento da Ordem. Foi ordenado sacerdote a 9 de junho de 1901.
Após a ordenação partiu para África, pois desejava viver no centro de Marrocos. Dado que a penetração no território era difícil, instalou-se no Saara, junto à fronteira com aquele país, e não muito longe do oásis de Béni-Abbès, na Argélia. Pediu autorização ao prefeito apostólico do Saara para se instalar na região onde se encontravam os Padres Brancos. O responsável, também chefe da missão, concordou, bem como o Governador-Geral da Argélia, e Charles partiu para Béni-Abbès, também chamada Pérola do Saara ou Oásis Branco, onde anos antes havia estado.
Depressa teve contacto com a população local, pois a notícia da sua chegada passou de casa em casa, e não tardou que fosse visitado pelos habitantes. A sua reputação de homem de Deus e de caridoso depressa se espalhou, pois assistia as crianças e os idosos, com quem ninguém se preocupava. A todos acolhia. Construiu um asilo para os mais necessitados, conservando-os perto de si. Comprava escravos, crianças e adolescentes, e libertava-os. Desses novos libertos, Foucauld pediu a um, ao qual deu o nome de Paulo, para que ficasse junto dele e o ajudasse nas necessidades materiais.
Apesar das muitas tarefas, Charles de Foucauld reservava sempre tempo para a oração e intimidade com Deus. No ano de 1904 foi convidado por Laperrine, supremo comandante dos oásis saarianos, para as suas chamadas “viagens de catequese” por Ahnet, Adrar e Hoggar. Feliz com a oportunidade que se lhe abria de estar com os tuaregues, não hesitou e partiu por cinco meses. O líder tuaregue, Mussa ag Amastane, pediu ao padre Foucauld que ficasse com eles, mas Laperrine achava a ideia prematura. Charles não ficou, e regressou para Béni-Abbès, após um período de descanso em Gardaia, junto dos Padres Brancos.
Este fora o primeiro contacto com Hoggar, mas não seria o último. No ano de 1906, Laperrine convidou Foucauld para nova expedição, que duraria um pouco mais do que a anterior. Charles hesitou, mas por conselho do seu superior aceitou e partiu para Tamanrasset, Hoggar, onde celebrou a primeira missa. Aí, com a irmã de Mussa, aprendeu a língua tamacheque e com ela 1200 canções do deserto. Em agosto de 1914 começou a I Grande Guerra, da qual o padre Foucauld apenas tomou conhecimento em setembro.
O conflito também chegou a Tamanrasset, perto da casa de Foucauld. A autoridade militar mandou construir, por conselho de Charles, uma espécie de forte para a defesa dos habitantes. Os soldados instalaram-se e o padre Foucauld foi viver com eles. A cada ameaça, os tuaregues fugiam para a fortificação, regressando depois às suas tendas.
No dia 1 de dezembro de 1916, primeira sexta-feira do mês, à tarde, o forte encontrava-se momentaneamente sem soldados. El Madani, senussita, seita tuaregue, aproximou-se da fortificação e pediu para entrar, sob o falso pretexto de trazer cartas de França para o padre Foucauld; quando este entreabriu a porta foi apanhado e levado para fora.
Ataram-lhe os pés e as mãos e colocaram uma sentinela junto dele. Outro rebelde senussita foi buscar Paulo e colocou-o junto do padre Foucauld. Era quase noite quando chegaram dois homens em camelos, vindos do forte Motylinski. Soam tiros. A sentinela, pensando que vêem libertar o padre Foucauld, de imediato pega na arma e com um disparo feriu de morte o “Irmão Universal”, como era conhecido.
Charles de Foucauld foi beatificado a 13 de novembro de 2005 pelo papa Bento XVI, precisamente dez anos antes dos atentados que causaram dezenas de mortos em Paris. O seu túmulo encontra-se El Menia, Argélia.
Pelo menos duas dezenas de institutos e fraternidades de religiosos, padres e leigos, criados, na maior parte dos casos, após a sua morte e interpretando, cada qual segundo a sua sensibilidade, a herança de Charles de Foucauld, continuam a manter viva a espiritualidade daquele que o teólogo Yves Congar um dia chamou de "farol místico" para o séc. XX, a par de Teresa de Lisieux.
Os apelos constantes do papa Francisco para uma Igreja que saia da sua zona de conforto e se dirija às periferias foram vividos antecipadamente por Charles de Foucauld e, no seu seguimento, pelas instituições que inspirou.
Oliveira Marques
Publicado em 20.09.2016 no SNPC