Há uma dignidade no silêncio. Ele está acabando. Cercado de barulho por todos os lados, as pessoas perdem a cada dia a capacidade de ouvir determinadas verdades que brotam do interior. A poluição sonora (em forma de ruído e de arte musical padronizada de baixa qualidade) é talvez mais perniciosa que a visual. O olhar, com toda sua importância na economia psíquica, leva o homem até o mundo. A audição, com sua significação ainda não valorizada, traz o mundo até o homem. A poluição sonora macula a alma.

 

A extrema valorização do visual na contemporaneidade fez o homem esquecer a origem quase sagrada da audição e, conseqüentemente, do silêncio. No mundo ocidental, a filosofia tem como uma de suas marcas de origem a importância da palavra falada e mesmo uma desconfiança da palavra escrita. Os maiores mestres da humanidade não escreveram nada, mas falaram, buscaram comunicação, procuraram o diálogo vivo.

 

No Oriente, essa dimensão sagrada do som vai muito além das mensagens racionais ou poéticas. Há mesmo uma crença de que o mundo fala, em todas as suas emanações.. O cosmo é som. Algumas experiências científicas atuais parecem confirmar a intuição metafísica dos hindus, com captação de sons que vão da natureza aos céus. Perguntar se as rosas falam pode ser algo mais que poético, assim como a sinfonia dos planetas e a harmonia das esferas são mais que imagens e refletem algo verdadeiro.

 

Por excesso de ruído, desaprendemos a ouvir. O maior prejuízo nesse triste processo pode ter sido nossa surdez para o silêncio. A busca cada vez maior por meditação pode ser uma resposta à inflação do olhar. Quem medita se propõe a ouvir a si mesmo. No entanto, o maior problema talvez esteja na incapacidade de ouvir o outro. As duas pontas parecem se unir: a solidão e o silêncio são estágios necessários à verdadeira comunicação. O homem moderno tem vocação para ficar sozinho e tem medo de ouvir o outro. O caminho que se divisa é de um grande monólogo coletivo.

 

Uma das formas de manifestação dessa patologia social está no empobrecimento da linguagem e na ubiqüidade dos códigos automáticos de comunicação. As  conversas parecem se dar antes do encontro. As pessoas apenas cumprem um roteiro dado de frases prontas e julgamentos pré-fabricados. As conversas entre alguns grupos se reduzem a tão poucas palavras que parecem apenas um exercício neutro de repetição de fórmulas. Não há verdadeira troca, apenas reconhecimento de grupo pelo domínio de um código comum..

 

A situação se torna ainda mais complexa quando se chega ao terreno da música, a mais nobre das artes, na expressão do filósofo romeno Cioran. Ainda mais para uma civilização musical como a brasileira, cercada de boa música por todos os lados. E é porque nossa música é tão boa que o problema é ainda mais grave. Estamos trocando uma história de riquezas pelo chorilho mercadológico da facilidade.

 

O sentido político (ou social) da música talvez seja uma das maiores perdas da incapacidade de conviver com o silêncio. Toda música carrega em si certa metáfora da democracia: é arte feita pelo povo, para o povo. Romper com o ciclo de produção e reconhecimento é uma das conseqüências mais explícitas do cenário pós – moderno. A música real foi trocada pela moda da música. O mercado é hoje o maior “criador” de obras.

 

Tudo se passa como se a história resolvesse dar um tempo (como defendem teóricos do fim da história) e afirmasse um presente absoluto. Num mundo sem perspectiva de superação, resta ao mercado oferecer as cotas de mudanças aceitáveis. Assim, o que é bom hoje se torna descartável amanhã. A moda é uma espécie de permanência sem verdade.

 

O músico teórico José Miguel Wisnik explicou esse processo em seu livro O som e o sentido: “O consumidor atribui uma cotação fetichista à última realidade. Para esse, a única verdade é que o futuro já chegou, como graça, para os que podem comprá-lo. Ao mesmo tempo o futuro não pára de chegar, é preciso se auto valorizar a partir de um consumismo ativo, supostamente seletivo e acelerado”. Para Wisnik, essa operação acaba por solapar o necessário intervalo do silêncio, que é valorativo no sentido mais nobre da palavra, permitindo a audição em profundidade. Sem esse momento reflexivo, “o banho lustral no zero do código”, todo o som corre o risco de tornar ruído. O silêncio é condição de possibilidade da música.

 

O historiador Eric Hobsbawn, escrevendo sobre jazz com o pseudônimo de Francis Newton, se pergunta sobre a capacidade de restauração da arte em nossas vidas. Para ele, parecia que uma manifestação como o jazz, que carrega  em sim o sentido de uma arte popular, genuína, podia ser uma resposta, mas não era garantia. Ele alertava entre outros riscos, para os extremos do pop, como dissolvência, e das manifestações esotéricas, como prepotência. “Podemos ver que a arte popular genuína, excepcionalmente vigorosa e resistente, realmente funciona e modifica o mundo moderno.”,  avalia em História Social do jazz. A padronização, infelizmente, parece estar vencendo a batalha. O jazz (como no samba) resiste, mas o mercado, que não tolera o silêncio e a qualidade que permanece, tem a capacidade de preencher seus espaços com barulhos. Jazz vira muzak, samba vira pagode.

 

Uma das técnicas de tortura mais eficaz inventadas pela besta humana consiste em invadir a interioridade do espaço íntimo com um som constante, que não dá tréguas. Esse método é mostrado no filme O ovo da serpente, de Bergman, em que um som contínuo, ainda  que baixo, leva o indivíduo à loucura. O filme é de 1977. Desde lá, a tortura do ruído intermitente parece ter deixado a situação psicológica para ganhar dimensão social. Estamos enlouquecidos pelo barulho, viciado em ruídos, amortecidos pelo tumulto, felizes no isolamento ambientado com música eletrônica e outras simplificações.

 

O cenário de pessoas correndo em busca da saúde, com aparelhos de som nos ouvidos, é uma metáfora viva do nosso tempo. Todos querem viver mais e se cuidam praticando esportes, mas não suportam o silêncio, ou os sons verdadeiros do mundo, isolando-se com as capas das músicas que sopram dos i-pods como oráculos. Viver só tem sentido se aponta para a convivência. Ao esticar a vida e encurtar o contato, o mundo parece se tornar um lugar diferente, composto de individualidades que não se conectam.

 

O silêncio é o marco zero da conversa. Sem ele, cercado de ruídos por todos os lados, o outro é apenas um som a mais, com condão de turvar o ambiente em balbúrdia. O concerto do mundo é feito de vozes humanas que aguardam sua vez de falar. A boa música precisa do mesmo empenho para se construir como arte sedimentada no tempo, herdeira da tradição e capaz de inventar novas formas. Ouvir o som do silêncio é exercitar, como no Koan zen-budista, a habilidade de ouvir o som de uma única mão que aplaude.

 

João Paulo Cunha é diretor do Caderno Pensar e Cultura do Jornal Estado de Minas.