Louvado sejas, meu Senhor, pelos irmãos que são todos

Forma de vida com sabor a Evangelho. Disto se trata em Fratelli Tutti, a nova encíclica do Papa Francisco «sobre a fraternidade e a amizade social», que se segue a Laudato Sì’ e a amplia. Todos Irmãos. Todos e todas, habitando a mesma casa comum, responsáveis pelo bem e pelo desenvolvimento integral de cada um. Depois do apelo ao cuidado da criação através de uma ecologia integral, e não querendo oferecer páginas-resumo de «doutrina sobre o amor fraterno», Francisco detém-se, agora, na dimensão universal do amor e na sua abertura a todos. Fá-lo como «humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as muitas formas atuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras». Parte, obviamente, das «convicções cristãs» que o «animam» e o «nutrem» [6], mas com o propósito de gerar diálogo com todas as pessoas de boa vontade e de promover com todas elas processos efetivos de transformação social, política e económica. Porque é importante sonhar juntos – não aconteça que, sozinhos, se tenham miragens e se veja o que não existe [cfr. 8] –, este é um novo passo que retoma e faz avançar a reflexão feita em diálogo com o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum, e o compromisso conjunto assinado em Abu Dhabi, em fevereiro de 2019.

Francisco de Assis continua a inspirar e a mover o Papa Francisco. Mas também outros grandes sonhadores de uma fraternidade universal sem excluídos: Luther King, Desmond Tutu, Gandhi. E Carlos de Foucauld, que no interior do deserto africano, identificando-se radicalmente com os últimos, reconheceu o desejo íntimo de «sentir todo o ser humano como um irmão» [286]. De Francisco de Assis, o Papa Francisco colhe o sabor e o saber do «essencial duma fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas independentemente da sua proximidade física», dando vida a um amor simples e fecundo que «ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço» [1]. E colhe em concreto o exemplo desarmante e eloquente da visita em pobreza do poverello de Assis ao Sultão Malik-al-Kamil, no Egito, em pleno ambiente de Cruzadas, reconhecendo o Papa como, passados oito séculos, continua a ser impressionante a recomendação que deixa aos seus irmãos: «evitar toda a forma de agressão ou contenda» e «viver uma “submissão” humilde e fraterna, mesmo com quem não partilhasse a sua fé» [3]. Da sua adesão radical ao Evangelho de Jesus pobre e humilde e do estilo de vida que escolhe para si, verdadeiramente pobre e genuinamente alegre – alguém se lhe referiu como “nu que canta” –, Francisco de Assis recebeu «no seu íntimo a verdadeira paz, libertou-se de todo o desejo de domínio sobre os outros, fez-se um dos últimos e procurou viver em harmonia com todos» [4]. Por isso, continua a inspirar tanto. Deste sopro transformador de vida evangélica, o Papa Francisco continua a fazer-se caixa de ressonância.

Da indiferença a uma cultura diferente

Do fechado ao aberto, do isolamento ao diálogo, do meu ao nosso, do monocolor ao poliédrico,  por aqui vai o caminho proposto por Fratelli Tutti para reavivar e arriscar cumprir a necessidade e o anseio mundial de uma fraternidade entre todos. São oito as etapas. Oito capítulos. A luz bíblica para a caminhada é dada, no Cap. II, pela parábola eloquente do Bom Samaritano, registada pelo evangelista Lucas (Lc 10, 25-37). O Papa Francisco adverte: «A narração – digamo-lo claramente – não desenvolve uma doutrina feita de ideais abstratos, nem se limita à funcionalidade duma moral ético-social. Mas revela-nos uma caraterística essencial do ser humano, frequentemente esquecida: fomos criados para a plenitude, que só se alcança no amor» [68]. Como pano de fundo originário e, por isso, permanente, fica esse aguilhão que é a pergunta de Deus a Caim: “onde está Abel, teu irmão”. Só respondendo a esta pergunta se dará responsa conveniente à outra, a primeiríssima, feita a Adão: “onde estás?” (Gn 3, 9). Na verdade, a via que dá acesso à própria identidade é a mais longa, aquela que passa pelo outro, pela sua alteridade. A hora da verdade sobre si próprio acontece quando se cuida dos sofrimentos dos outros ou quando se passa ao largo; quando se debruça sobre o caído ou quando se olha distraído ou se acelera o passo [cf.70]. Em vários momentos e de vários modos, o Papa vai-o repetindo nesta Encíclica. Também vale para a Igreja e para a compreensão que tem da verdade que professa. Como diria Michel de Certeau, pas sans toi, não sem ti. Se quero ser eu mesmo, não o posso ser sem ti. Se queremos ser nós mesmos, não o poderemos ser sem o outro diferentes de nós, o outro cada homem e mulher, próximo ou afastado; o outro passado e que ainda há de nascer; o outro natureza; o outro história; o Outro transcendente que se dá e reclama responsabilidade em cada outro.

Encontrando-me inesperadamente com um estranho no caminho (Cap. II), o que faço? Ignoro? Olho para o lado? Passo à margem, indiferente? Escutada a parábola do Bom Samaritano, importa perguntar: «Com quem te identificas? É uma pergunta sem rodeios, direta e determinante: a qual deles te assemelhas? Precisamos de reconhecer a tentação que nos cerca de se desinteressar dos outros, especialmente dos mais frágeis». Se é verdade que crescemos em muitos aspetos – somos tecnologicamente avançados, somos esteticamente sofisticados estamos conectados mundialmente –, permanecemos «analfabetos no acompanhar, cuidar e sustentar os mais frágeis e vulneráveis das nossas sociedades desenvolvidas». Porque nos habituamos «a olhar para o outro lado, passar à margem, ignorar as situações até elas nos caírem diretamente em cima» [64]. Porém, «diante de tanta dor, à vista de tantas feridas, a única via de saída é ser como o bom samaritano» [67]. Porque «viver indiferentes à dor não é uma opção possível; não podemos deixar ninguém caído “nas margens da vida”. Isto deve indignar-nos de tal maneira que nos faça descer da nossa serenidade alterando-nos com o sofrimento humano. Isto é dignidade» [58]. Vêm à memória palavras fortes de outros momentos, que puseram o dedo na ferida da nossa insensibilidade ao sofrimento alheio, da nossa incapacidade de nos comovermos e de chorar pelo outro. Por isso, uma vez que a parábola não é para os outros e porque «o facto de crer em Deus e de O adorar não é garantia de viver como agrada a Deus» [74], concretamente para a Igreja, «é importante que a catequese e a pregação incluam, de forma mais direta e clara, o sentido social da existência, a dimensão fraterna da espiritualidade, a convicção sobre a dignidade inalienável de cada pessoa e as motivações para amar e acolher a todos» [86]. Para que a cultura da atenção, da escuta e do diálogo seja aprendida como caminho; para que a colaboração seja tida como conduta; para que o conhecimento mútuo passe a ser método e critério [cf. 284].

Das sombras de um mundo fechado à geração de um mundo aberto

Antes de percorrer a parábola, logo no Cap. I, Francisco começa por expor as sombras de um mundo fechado, as «tendências do mundo atual que dificultam o desenvolvimento da fraternidade universal» [9]. Não é sua intenção fazer «uma asséptica descrição da realidade» [56], mas levar a tomar consciência das grandes feridas e dos abismos do momento mundial que vivemos, para acolher o apelo imperioso da mudança de que são portadoras e para projetar sobre elas a luz do amor fraterno que brilha do Evangelho de Jesus Cristo, o amor tangível do bom samaritano, critério de verdade de uma vida humana.

São muitas e densas as sombras deste mundo fechado, em movimento de se fechar ainda mais. «Durante décadas, pareceu que o mundo tinha aprendido com tantas guerras e fracassos e, lentamente, ia caminhando para variadas formas de integração» [10]. «Mas a história dá sinais de regressão. Reacendem-se conflitos anacrónicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos. Em vários países, uma certa noção de unidade do povo e da nação, penetrada por diferentes ideologias, cria novas formas de egoísmo e de perda do sentido social mascaradas por uma suposta defesa dos interesses nacionais» [11].

Importa tomar nota. A aldeia global em que nos tornámos esconde o isolamento, o afunilamento ideológico, o consumismo acrítico, o empobrecimento da riqueza cultural. A globalização e o progresso fazem-se sem um rumo comum, sob o domínio dos interesses e estratégias globais da economia e da finança, tantas vezes sem escrutínio político. Estes impõem globalmente um modelo cultural único. Somos tidos e tornámo-nos consumidores sem limites, individualistas sem conteúdo, personagens sem história, sem antes nem depois. Lisos, sem rugas, sem dramas, sem densidade, narcisistas, sem herança, sem rumo, sem história, como diria Byung-Chul Han. Tudo imediatamente, sem projetos comuns de longo prazo. Vivemos prisioneiros da virtualidade, das conexões imediatas e rápidas. Impacientes e inseguros, movemo-nos em círculos fechados, em bolhas protetoras reforçadas, agora, pela pandemia. Sem apreço pela fraternidade. Sem gosto pela realidade que se toca. A nível político, tende-se a exasperar, a exacerbar, a polarizar. Ridiculariza-se, desqualifica-se, lançam-se suspeitas para alimentar a controvérsia e a contraposição. Divide-se para reinar. Acentuam-se formas insólitas de agressividade. A cultura de descarte reforça-se. Descarte de coisas. Descarte de pessoas. Descarte de povos. Descarte de diversidade e de riqueza cultural. Promove-se e afirma-se uma mentalidade de medo e de desconfiança. A ética deteriora-se. Os valores espirituais enfraquecem, como enfraquece o sentido de responsabilidade. Esmorecem os sentimentos de pertença à mesma humanidade. O sonho de construir juntos uma humanidade comum é tida como devaneio, utopia ingénua de outros tempos. Globaliza-se a indiferença acomodada e fria.

Neste contexto cada vez mais fechado e monocromático, a indiferença insensível e a resignação passiva não podem ser caminho. Importa, por isso, pensar e gerar um mundo aberto (Cap. III). Pensar e gerar. Precisamos da ideia e da ação, começando por ter bem presente que «o ser humano está feito de tal maneira que não se realiza, não se desenvolve, nem pode encontrar a sua plenitude “a não ser no sincero dom de si mesmo” aos outros», e que «não chega a reconhecer completamente a sua própria verdade, senão no encontro com os outros: “Só comunico realmente comigo mesmo, na medida em que comunico com o outro”. Isso explica por que ninguém pode experimentar o valor de viver sem rostos concretos a quem amar. Aqui está um segredo da existência humana autêntica, já que “a vida subsiste onde há vínculo, comunhão, fraternidade; e é uma vida mais forte do que a morte, quando se constrói sobre verdadeiras relações e vínculos de fidelidade. Pelo contrário, não há vida quando se tem a pretensão de pertencer apenas a si mesmo e de viver como ilhas: nestas atitudes prevalece a morte”» [74].

Sair de si para encontrar e se encontrar com os outros, os outros apreciados por aquilo que são, é por aqui o caminho de conversão e de reforma de vida, de estilo de vida, não só pessoal, mas também dos grupos e das instituições. O que põe o “corpo” em movimento em relação ao outro, para que passe de “corpo estranho” ou de “exilado oculto” [cf. 98] a irmão que me é caro, precioso e digno, é o amor. Não haverá que ter pudor com a palavra. Francisco usa-a também como categoria social e mesmo política [cf. 180ss], enquanto verdade das outras virtudes, segredo de relações humanas e institucionais que reconhecem no outro um irmão, carne da mesma carne, e não um simples sócio distante e funcional. É o amor que nos coloca «em tensão para a comunhão universal»; que faz harmonizar os direitos individuais com um bem maior; que gera benevolência, enquanto forte desejo do bem [cf. 112]; que promove solidariedade, gesto de quem se sente responsável pela fragilidade do outro, corresponsável com ele por um destino comum [cf. 114ss]; que leva a transcender-se a si mesmo e ao próprio grupo de pertença. «Ninguém amadurece nem alcança a sua plenitude, isolando-se. Pela sua própria dinâmica, o amor exige uma progressiva abertura, maior capacidade de acolher os outros, numa aventura sem fim, que faz convergir todas as periferias rumo a um sentido pleno de mútua pertença» [95]. O amor abre. Expande. Amplifica, geográfica e existencialmente. É aqui, sublinha o Papa, no «amor que se estende para além das próprias fronteiras» que está a «base daquilo que chamamos “amizade social”» [99].

Para se caminhar para a amizade social, que implica indivíduos e instituições, e para a fraternidade universal, sendo esta a garantia quer da liberdade quer da igualdade, sublinha o Papa que «há que fazer um reconhecimento basilar e essencial: dar-se conta de quanto vale um ser humano, de quanto vale uma pessoa, sempre e em qualquer circunstância». Só por si. Só por ser homem ou mulher. A ser assim, «se cada um vale assim tanto, temos de dizer clara e firmemente que “o simples facto de ter nascido num lugar com menores recursos ou menor desenvolvimento não justifica que algumas pessoas vivam menos dignamente”. Trata-se de um princípio elementar da vida social que é, habitualmente e de várias maneiras, ignorado por quantos sentem que não convém à sua visão do mundo ou não serve os seus objetivos» [106]. Por isso, «todo o ser humano tem direito de viver com dignidade e desenvolver-se integralmente, e nenhum país lhe pode negar este direito fundamental. Todos o possuem, mesmo quem é pouco eficiente porque nasceu ou cresceu com limitações. De facto, isto não diminui a sua dignidade imensa de pessoa humana, que se baseia, não nas circunstâncias, mas no valor do seu ser». Assim, importa ter claro que, «quando não se salvaguarda este princípio elementar, não há futuro para a fraternidade nem para a sobrevivência da humanidade» [107]. Mas não basta aceitar em abstrato igual possibilidade para todos, deixando efetivamente cada um à sua sorte. As leis de mercado, a eficiência, o mérito não bastam. «A verdade é que “a simples proclamação da liberdade económica, enquanto as condições reais impedem que muitos possam efetivamente ter acesso a ela (…), torna-se um discurso contraditório”. Palavras como liberdade, democracia ou fraternidade esvaziam-se de sentido […]». Uma sociedade humana e fraterna deverá ser «capaz de preocupar-se por garantir, de modo eficiente e estável, que todos sejam acompanhados no percurso da sua vida, não apenas para assegurar as suas necessidades básicas, mas para que possam dar o melhor de si mesmos, ainda que o seu rendimento não seja o melhor, mesmo que sejam lentos, embora a sua eficiência não seja relevante» [110]. Como consequência, é preciso abordar séria e amplamente temas como a função social da propriedade, o destino comum dos bens criados, os direitos elementares dos povos ou a rede de relações internacionais. «Se se aceita o grande princípio dos direitos que brotam do simples facto de possuir a inalienável dignidade humana, é possível aceitar o desafio de sonhar e pensar numa humanidade diferente». Se se tomar efetivamente como base a dignidade humana, assumindo, assim, o esforço de entrar numa outra lógica, será possível sonhar, pensar e agir uma humanidade diferente, percorrendo o caminho da paz assente numa «“ética global de solidariedade e cooperação ao serviço de um futuro modelado pela interdependência e corresponsabilidade na família humana inteira”» [127].

Um mundo aberto pede um coração aberto ao mundo inteiro

Procurando implicações práticas, o Cap. IV começa assim: «Se esta afirmação – como seres humanos, somos irmãos e irmãs – não ficar pela abstração mas se tornar verdade encarnada e concreta, coloca-nos uma série de desafios que nos fazem mover, obrigam a assumir novas perspectivas e produzir novas reações» [128]. Entre os desafios que exigem atenção, mudanças e ação, o Para Francisco reflete sobre os migrantes e a gestão das fronteirasa relação com o diferente de sias relações Ocidente-Oriente; as várias dimensões da tensão entre local e universal.

Obviamente, «para se tornar possível o desenvolvimento duma comunidade mundial capaz de realizar a fraternidade a partir de povos e nações que vivam a amizade social, é necessária a política melhor [sublinhado meu, tratando-se do título do Cap. V], a política colocada ao serviço do verdadeiro bem comum», movida pela caridade. Vários números deste capítulo [180-197] são dedicados ao melhor da política – ao “amor político” e à “atividade do amor político” –  lugar onde os cristãos também devem estar presentes e dar testemunho qualificado e qualificador.  «Mas hoje, infelizmente, muitas vezes a política assume formas que dificultam o caminho para um mundo diferente». Entre estas, o Papa Francisco presta especial atenção a traços marcantes e limitadores dos populismos e liberalismos. Também o poder internacional merece atenção. «“Torna-se indispensável a maturação de instituições internacionais mais fortes e eficazmente organizadas, com autoridades designadas de maneira imparcial por meio de acordos entre governos nacionais e dotadas de poder de sancionar”. Quando se fala duma possível forma de autoridade mundial regulada pelo direito, não se deve necessariamente pensar numa autoridade pessoal. Mas deveria prever pelo menos a criação de organizações mundiais mais eficazes, dotadas de autoridade para assegurar o bem comum mundial, a erradicação da fome e da miséria e a justa defesa dos direitos humanos fundamentais» [172]. Para o Papa Francisco, a necessária reforma da ONU deverá fazer parte deste processo.

Diálogo e amizade social (Cap. VI) é outro movimento vital de respiração de um coração aberto ao mundo inteiro. Entre a indiferença egoísta e o protesto violento, cabe dispor-se a praticar o diálogo, a promover a cultura do encontro. «Aproximar-se, expressar-se, ouvir-se, olhar-se, conhecer-se, esforçar-se por entender-se, procurar pontos de contato: tudo isto se resume no verbo “dialogar”. Para nos encontrar e ajudar mutuamente, precisamos de dialogar. Não é necessário dizer para que serve o diálogo; é suficiente pensar como seria o mundo sem o diálogo paciente de tantas pessoas generosas, que mantiveram unidas famílias e comunidades. O diálogo perseverante e corajoso não faz notícia como as desavenças e os conflitos; e contudo, de forma discreta mas muito mais do que possamos notar, ajuda o mundo a viver melhor» [198]. Já a «falta de diálogo supõe que ninguém, nos diferentes setores, está preocupado com o bem comum, mas com obter as vantagens que o poder lhe proporciona ou, na melhor das hipóteses, com impor o seu próprio modo de pensar. Assim a conversação reduzir-se-á a meras negociações para que cada um possa agarrar todo o poder e as maiores vantagens possíveis, sem uma busca conjunta que gere bem comum». Porém, «os heróis do futuro serão aqueles que souberem quebrar esta lógica morbosa e, ultrapassando as conveniências pessoais, decidam sustentar respeitosamente uma palavra densa de verdade» [202], a começar pela verdade da dignidade humana. «Numa sociedade pluralista, o diálogo é o caminho mais adequado para se chegar a reconhecer aquilo que sempre deve ser afirmado e respeitado e que ultrapassa o consenso ocasional. Falamos de um diálogo que precisa de ser enriquecido e iluminado por razões, por argumentos racionais, por uma variedade de perspectivas, por contribuições de diversos conhecimentos e pontos de vista, e que não exclui a convicção de que é possível chegar a algumas verdades fundamentais que devem e deverão ser sempre defendidas. Aceitar que há alguns valores permanentes, embora nem sempre seja fácil reconhecê-los, confere solidez e estabilidade a uma ética social» [211].

A cultura do encontro ou o encontro feito cultura, estilo de vida, como forma concreta de amabilidade [cf. 222-224], implica dispor-se e implicar-se em percursos de um novo encontro (Cap. VII).  Da verdade dos factos se deve partir. «Novo encontro não significa voltar ao período anterior aos conflitos. Com o tempo, todos mudamos. A tribulação e os confrontos transformaram-nos. Além disso, já não há espaço para diplomacias vazias, dissimulações, discursos com duplo sentido, ocultamentos, bons modos que escondem a realidade. Os que se defrontaram duramente falam a partir da verdade, nua e crua. Precisam de aprender a cultivar uma memória penitencial, capaz de assumir o passado para libertar o futuro das próprias insatisfações, confusões ou projeções. Só da verdade histórica dos factos poderá nascer o esforço perseverante e duradouro para se compreenderem mutuamente e tentar uma nova síntese para o bem de todos» [226]. Partindo daqui, o caminho não se fará sem assumir o árduo esforço por superar o que divide, sem perder o que dá identidade a cada uma das partes envolvidas. O sentido basilar de pertença e do bem maior que ainda se poderá procurar em comum deverão permanecer acima dos conflitos e ser fundamento do encontro gerador de paz. Se há lutas legítimas, o perdão não poderá deixar de fazer parte do percurso da fraternidade e da amizade social. Porque «o perdão livre e sincero é uma grandeza que reflete a imensidão do perdão divino. Se o perdão é gratuito, então pode-se perdoar até a quem resiste ao arrependimento e é incapaz de pedir perdão» [250]. «Aqueles que perdoam de verdade não esquecem, mas renunciam a deixar-se dominar pela mesma força destruidora que os lesou. Quebram o círculo vicioso, frenam o avanço das forças da destruição» [251].

Ainda neste capítulo, há lugar para abordar outros dois temas. Primeiro, a guerra, para qualificar como injustas todas as guerras, porque «toda a guerra deixa o mundo pior do que o encontrou. A guerra é um fracasso da política e da humanidade, uma rendição vergonhosa, uma derrota perante as forças do mal» [261]. Se olharmos para as vítimas reais, que é verdadeiramente para quem se deve olhar quando se fala de guerra, «consideremos a verdade destas vítimas da violência, olhemos a realidade com os seus olhos e escutemos as suas histórias com o coração aberto. Assim poderemos reconhecer o abismo do mal no coração da guerra, e não nos turvará o facto de nos tratarem como ingénuos porque escolhemos a paz» [261]. O outro tema, a pena de morte, para reiterar que «não é possível pensar num recuo relativamente a esta posição. Hoje, afirmamos com clareza que “a pena de morte é inadmissível” e a Igreja compromete-se decididamente a propor que seja abolida em todo o mundo» [263].

Por fim, a terminar Fratelli Tutti, o lugar d’As religiões ao serviço da fraternidade no mundo (Cap. VIII). «As várias religiões, ao partir do reconhecimento do valor de cada pessoa humana como criatura chamada a ser filho ou filha de Deus, oferecem uma preciosa contribuição para a construção da fraternidade e a defesa da justiça na sociedade. O diálogo entre pessoas de diferentes religiões não se faz apenas por diplomacia, amabilidade ou tolerância». Porque «“o objetivo do diálogo é estabelecer amizade, paz, harmonia e partilhar valores e experiências morais e espirituais num espírito de verdade e amor”» [271]. A experiência de fé e da sabedoria religiosa «que se vem acumulando ao longo dos séculos e aprendendo também das nossas inúmeras fraquezas e quedas, como crentes das diversas religiões» permite reconhecer «que tornar Deus presente é um bem para as nossas sociedades». Que «buscar a Deus com coração sincero, desde que não o ofusquemos com os nossos interesses ideológicos ou instrumentais, ajuda a reconhecer-nos como companheiros de estrada, verdadeiramente irmãos» [174]. A fraternidade universal não rege unicamente assente sobre o contrato social. A dignidade humana pede o reconhecimento da sua transcendência. Também por isso importa não se resignar a que o debate público sobre o humano comum seja só ocupado e todo ocupado por “poderosos” e “cientistas”. Cabe reconhecer o direito de cidadania no espaço público ao fundo secular da experiência e da sabedoria religiosa. O Papa sublinha mesmo que o papel público da Igreja não se esgota na assistência e na educação. Por isso, «embora a Igreja respeite a autonomia da política, não relega a sua própria missão para a esfera do privado. Pelo contrário, não pode nem deve ficar à margem na construção de um mundo melhor nem deixar de “despertar as forças espirituais” que possam fecundar toda a vida social. É verdade que os ministros da religião não devem fazer política partidária, própria dos leigos, mas mesmo eles não podem renunciar à dimensão política da existência que implica uma atenção constante ao bem comum e a preocupação pelo desenvolvimento humano integral» [276].

Fratelli Tutti termina com uma oração, em duas versões [202]: Oração ao Criador e Oração Cristã Ecuménica. Assim se conclui o percurso feito e se relançam, oferecendo-os ao Senhor, os muitos contornos do novo sonho de fraternidade, para reagir à indiferença.

Impacto onírico e força profética do Papa Francisco

Diante do sobressalto que deveria provocar a pergunta bíblica originária “onde está Abel, teu irmão?”, dirigida por Deus a Caim acerca de seu irmão Abel que matara, e da tendência para responder de modo indiferente e frio “sou, porventura, guarda do meu irmão?” (Gn 4, 9), o Papa Francisco provoca-nos a reagir com um novo sonho de fraternidade. Por aqui vai passando a força profética de Francisco: estar atento aos apelos da realidade ferida e deixar-se olhar e ferir por aqueles que, excluídos, não têm voz e ficam abandonados e esquecidos na margem; deixar-se tomar pela força transformadora do Evangelho, para que, como afirma em Evangelii Gaudium, o anúncio cristão se centre «no essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário» [35]; com os pés bem firmes na realidade, ousar sonhar e desejar um mundo diferente e melhor, promovendo uma outra lógica de vida que, com o cuidado da criação, assuma a humanidade que é comum, que é una, polifónica, poliédrica e atravesse o risco da fraternidade universal. Outra lógica que mova indivíduos, mas também instituições. Porque o que está em causa implica processos alargados e pactos mundiais. Para que ninguém seja excluído, para que ninguém fique para trás, para que os últimos tenham voz e se tornem protagonistas a partir da sua própria riqueza, para que a vida plena floresça e gere sempre novos frutos humanos de beleza e de bondade.

O Papa Francisco, que diz dormir bem, sonha. Também S. José compreendia a vontade de Deus enquanto sonhava. Em Querida Amazónia já tinha partilhado quatro sonhos: um sonho social sobre o cuidado da criação e a atenção aos últimos; um sonho cultural que passasse pela valorização do tesouro das culturas e a salvaguarda das suas raízes: um sonho ecológico, onde o olhar contemplativo e grato tem lugar primeiro e maior; um sonho eclesial de encarnação do Evangelho e de inculturação da Igreja. De algum modo, já antecipava este grande sonho sobre a fraternidade e a amizade social que agora oferece à Igreja e ao Mundo, como motivo e impulso de transformação humana e de progresso social. É extraordinário que o Bispo de Roma queira que a Igreja viva em escuta radical e, sem medo de se sujar e de perder algo de si, se exponha ao diálogo. Francisco tem claro, e repete-o mais do que uma vez nesta Encíclica, que a alteridade de sujeitos, de tempos e de lugares é o caminho longo para o conhecimento mais íntimo de si próprio. Abrir-se seriamente à diferença não significa renunciar à própria identidade. De todo. É a afirmação de si que pede essa exposição e passagem pelo outro, precisamente, porque não posso sesem ele. A humanidade que partilhamos não me permite ser sem ti. E é extraordinário que Francisco queira que a Igreja seja capaz de se fazer intérprete de desejos dos homens e mulheres de hoje e que seja lugar de elaboração de sonhos. Uma Igreja em contato com o seu tempo e em atitude de escuta radical, não por condescendência ou porque o assunto “tem boa imprensa”, mas porque é esse o caminho de reelaboração profunda da própria identidade cristã. À substância da fé tem-se acesso pela história, o que vai pedindo novas formulações e outras práticas.

Por vezes, durante a leitura do texto podemos perguntar-nos como será possível realizar tal sonho. O próprio Papa vai partilhando essa compreensível perplexidade. Não será tudo um devaneio [127]? Passará de uma utopia de tempos já idos [180]? Não ficaremos só em palavras [6]? De facto, também a nós, quando terminamos o texto de Francisco, pode ficar a pergunta como será possível, atendendo ao estado de coisas, ao modo habitual das coisas acontecerem? O Papa Francisco aponta muito alto, não deixando nada nem ninguém de fora. Vai da conversão do coração à reforma da ONU; de uma nova lógica de vida à forma de fazer política e de organizar a economia global; da adesão a uma forma de vida com sabor a evangelho ao diálogo entre culturas, zonas do globo e religiões; do papel da razão e da fé religiosa para o estabelecimento do fundamento da dignidade humana ao amor político. Porém, no mais íntimo, fica o desejo de que o sonho possa ganhar corpo e gerar realidade, porque se trata do risco de sonhar um mundo novo, melhor e mais belo, que seja construído sobre o reconhecimento de cada um como um irmão. Precisamos deste sonho. O drama da pandemia que vivemos bem o demonstra. E não chega dizer que estamos todos na mesma barca. Precisamos de sentir que todos os que vão na barca são irmãos, carne da mesma carne, sangue do mesmo sangue, caminho que revela e realiza a verdade da minha vida.

Ouve-se frequentemente que nos faltam líderes. Aqui temos um que ousa sonhar, que cultiva as raízes, que cuida da alma humana, que aponta para longe, para uma humanidade melhor e mais bela. O seu sonho não é abstrato. Quando abre os olhos, começa por deixar-se olhar e tocar pelo irmão que está ao lado, talvez caído à beira do caminho. E faz-se próximo. Se é assim, todos podemos começar por aqui. O sonho de tutti fratelli e sorelle começará já a ser realidade.

Pe. José Frazão Correia sj

In: pontosj.pt

11.10.2020