Sentir e Saborear internamente todas as coisas (EE 2)

Inácio de Loyola, o peregrino

Para Santo Inácio de Loyola, a consistência última da realidade é apreendida pelos sentidos: ver, ouvir, tocar, degustar, sentir o cheiro, e não por um exercício de abstração. O conhecimento lógico-dedutivo não basta para se chegar a um pleno conhecimento da realidade. É preciso a experiência das coisas percebidas, que são conhecidas na medida em que as vivemos, as tocamos, as sentimos. Com efeito, manuais de mecânica não fazem automaticamente de alguém um grande conhecedor do funcionamento de motores reais. Os livros sagrados das religiões tampouco fazem de alguém um santo ou um modelo de pessoa religiosa. Ler o alcorão não faz de alguém um muçulmano; ler a bíblia não faz de alguém um cristão. 

O contexto da expressão “sentir e saborear as coisas internamente” o encontramos nos Exercícios Espirituais (EE 2). Trata-se da segunda das vinte anotações que Inácio deixou à pessoa que dá os EE, que acompanha os que fazem os EE. Essas anotações são frutos de sua profunda experiência pessoal.

Na primeira anotação, Inácio esclarece o que se entende por EE e à qual finalidade eles conduzem. Nos diz que “chamam-se EE os diversos modos de a pessoa se preparar e dispor para tirar de si todas as afeições desordenadas”. Trata-se de afetos, não de ideias. Os EE não são um conjunto de anotações para serem estudadas, mas praticadas, não são uma doutrina, uma teoria, um discurso ou um tratado sistemático de teologia trinitária ou de cristologia, tampouco uma obra de autoajuda dedicada ao estudo psicológico dos afetos. Inácio diz que os EE preparam e dispõem a pessoa a ordenar os (seus) afetos. Como?

Ordena-se os afetos tirando de si aquilo que afetivamente se encontra desordenado, fora de ordem. Não se trata, portanto, de tirar os afetos, de apagar a faculdade do sentir, isso transformaria o ser humano numa espécie de zumbi, mas de ordená-los. Para que? Ignácio diz, então, em seguida, que é para que a pessoa possa buscar e encontrar a vontade divina para ela, ou seja, o que Deus quer, não só dela, mas também e principalmente para ela. Se supõe que o que Deus quer e propõe é o melhor para a pessoa. Esse “o melhor” é sinônimo de plena realização, de bem-aventurança, que a tradição bíblico-cristã chama de salvação. É exatamente isso que Inácio, ao final da anotação, diz: “... para sua salvação”.

Se, à luz do evangelho, nos perguntássemos: o que é, afinal, que Deus quer? A resposta de Jesus é bastante clara: o que Deus quer é que ninguém se perca (Mt 18,14), ou seja, o que Deus quer é que o ser humano viva, tenha vida e a tenha em abundância; que viva nele. Isso significa: Deus quer nos salvar. 

Mas afinal, Deus quer nos salvar de que? A resposta mais simples a essa pergunta é a seguinte: Deus quer nos salvar de nós mesmos! Como assim… ‘de nós mesmos’? É simples: não temos a vida em nós mesmos, não viemos à vida por nós mesmos e não permaneceremos na vida por nós mesmos. Somos húmus, terra, finitos, mortais, somos criados. “Quem quiser salvar sua vida, vai perdê-la”, disse Jesus (Mt 16,25). Mas, então, “quem poderá salvar-se”?, perguntaram-lhe os discípulos. E Jesus, com todas as letras, responde a Pedro, aos demais apóstolos e a cada um de nós: “ao ser humano isso, ou seja, o salvar-se, não é possível” (Mt 19,25-26). Nós, os humanos, não somos Deus. Só Deus tem vida em si mesmo, só Deus é plenitude de vida. Se ele não nos der de sua vida, não nos der o seu Espírito, morreremos para sempre. 

Foi fundamentalmente isso que Jesus disse do seguinte modo: se eu, realizando a vontade do meu Pai de salvar a todos, não vos der a (minha) vida, o meu Espírito, vós não tereis (como nunca tiveram) vida em vós mesmos (cf. Jo 6,53). Ou ainda: quem me recebe, este diz sim à vontade de Deus, e recebe o que é de Deus, o Espírito de Deus, o Espírito da filiação porque Espírito do Filho, e, assim, nasce para Deus, torna-se da família de Deus (cf. Mt 10,40). 

Tudo isso é sem dúvida maravilhoso. A salvação é dom de Deus, é um dom que Deus quer dar e que só ele pode dar porque trata-se do dar da sua vida divina. Mas isso tudo pode ser muito abstrato se eu, se você, se cada um e cada uma, concretamente, não entrar em cena. Só Deus pode dar o que é dele, e só eu posso recebê-lo. O dar-se de Deus precisa ser “dar-se a mim”, de modo que ninguém pode receber (nem rechaçar) esse dom no meu lugar, ninguém me substitui e ninguém, que seja um simples mortal como eu, pode me salvar. 

Vejamos agora a segunda anotação, que nos ocupa mais de imediato. 

“Quem propõe a outro o modo e a ordem [método] de meditar ou contemplar deve narrar fielmente a história de tal contemplação ou meditação, apresentando, breve ou sumariamente, os pontos. Pois, assim, a pessoa que contempla, tomando o verdadeiro fundamento da história, reflete e raciocina por si mesma. Encontrando alguma coisa que a esclareça ou faça sentir mais a história, quer pelo seu próprio raciocínio, quer porque seu entendimento é iluminado pela virtude divina, tem maior gosto e fruto espiritual do que se quem dá os EE explicasse e ampliasse muito o sentido da história. Pois não é o muito saber que sacia e satisfaz a pessoa, mas o sentir e saborear as coisas internamente” (EE 2). 

A tarefa de quem dá os EE consiste em “narrar fielmente a história”, o Evangelho, a boa notícia divina. Assim, quem recebe os EE estará às voltas com o “verdadeiro fundamento da história”. A narrativa de uma passagem bíblica a ser contemplada, por exemplo, a do nascimento de Jesus, deve ser breve, sumária, concentrando-se em oferecer apenas a moldura, com alguns pontos. [Recordemos que as pessoas, nos tempos de Ignácio, não tinham a bíblia na palma da mão em quantos idiomas quisessem, como nós a temos hoje]. 

O maior fruto será aquele que o exercitante encontrar por si mesmo (por raciocínio ou iluminação) a partir do fundamento sólido que lhe foi proposto. Então se diz: “pois não é o muito saber que sacia e satisfaz a pessoa, mas o sentir e saborear as coisas internamente”. O que está em questão não é a aquisição de um saber, mas a do sentir, a dos sentidos. Com efeito, quando se trata de sentir e saborear, ninguém pode fazê-lo no meu lugar. Cabe a mim e a cada um assumir essa experiência. 

As contemplações da vida de Jesus Cristo narrada nos evangelhos são as mais propícias para a “aplicação dos sentidos”. Quais sentidos? Ora, a visão, a audição, o tato, o gosto, o olfato. Mas, como é que isso funciona, se Jesus não está hoje aqui ou ali para que eu possa vê-lo, ouvi-lo, tocá-lo? Inácio fala em aplicação dos “sentidos da imaginação”, e oferece algumas explicações a respeito quando propõe as primeiras duas contemplações da segunda semana: a da encarnação e a do nascimento de Jesus Cristo.

Antes, porém, é importante recordar o que se pede a Deus como graça a receber: “Pedir o que quero: pedirei aqui conhecimento interno do Senhor que por mim se fez homem para que eu mais o ame e o siga (EE 104). Pedir conhecimento interno não é pedir mais informações sobre Jesus, tais como a cor de seu cabelo ou de seus olhos. Trata-se de conhecer o coração de Jesus, os sentimentos de Jesus, o amor de Jesus, o viver de Jesus. 

Encarnação: A breve narrativa da história a ser contemplada na encarnação convida o exercitante a considerar: como as três Pessoas divinas olham o mundo; como veem elas os homens e mulheres se perderem na vida e perderem a vida no desespero de querer, inutilmente, por si mesmos, salvá-la; e como determinam, decidem, que a Segunda Pessoa divina se faça homem para salvar o gênero humano; e, então, o anúncio do mensageiro divino (Gabriel) à Maria. 

Nascimento: A breve narrativa da história do nascimento de Jesus convida o exercitante a considerar Nazaré, Maria grávida do Filho de Deus, que parte de Nazaré, com José, rumo a Belém para atender ao edito de Cesar Augusto. Estando em Belém cumpriram-se os dias para o parto: nasce Jesus. 

Vale a pena citarmos a passagem (EE 122-125) onde Inácio explica como aplicar os sentidos.

1- O primeiro ponto é ver as pessoas, com o olhar da imaginação, contemplando as circunstâncias onde elas estão, para tirar algum proveito do que vê. 

2- O segundo ponto é ouvir o que elas falam ou poderiam falar, refletindo para tirar algum proveito. 

3- O terceiro ponto é sentir e saborear com o olfato e o paladar a infinita suavidade e doçura da divindade (e tudo em relação a ela conforme a pessoa que se contempla), refletindo consigo mesmo para tirar algum proveito.

4- O quarto ponto é sentir com o tato, assim abraçar e beijar, os lugares onde tais pessoas pisam e tocam, procurando tirar proveito. 

Inácio começa pela visão. Toda contemplação faz referência a um lugar, e não só às pessoas. É um mundo que se abre pela visão da imaginação: desde as pessoas divinas, o quarto de Nazaré ou a gruta do nascimento. A audição, por sua vez, supõe a palavra, o que é dito ou pode ser dito por alguém e, então, pode ser ouvido (por alguém). Ver e ouvir supõe um certo distanciamento, um “fora de nós”. Eram chamados de ‘sentidos superiores’. 

Sentir e saborear estão ligados ao olfato e ao paladar (gosto) e definem a interioridade como seu lugar. Suavidade e doçura são os termos correspondentes. “Quão suave é o Senhor” (Sl 34,8); “Quão doce ao meu paladar são as tuas palavras” (Sl 119,103). Absolutamente central na experiência dos EE é essa percepção do que se passa interiormente, do que se sente. Suavidade e doçura se convertem em paz, serenidade, amabilidade, alegria, gosto pela vida ..., sentimentos típicos da consolação espiritual. Aspereza e amargura se convertem em agitação, inquietação, revolta, tristeza, desgosto de viver ..., sentimentos típicos da desolação espiritual. 

No sentir com o tato (como o abraço e o beijo) os lugares onde essas pessoas pisam ou tocam, tem-se presente a ‘reverência’ com relação às pessoas mesmas, não se invade a intimidade das pessoas. 

A finalidade dos EE, recordemos, é a de ordenar os afetos. Mas é difícil ordenar os afetos se eu não presto atenção no que eu sinto e se não conheço pessoa alguma plenamente ordenada nos afetos. Essa pessoa é o Cristo Jesus. Por isso, ao pedir conhecimento interno do Senhor estou pedindo para conhecer seus sentimentos. “Tende em vós os mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus”, diz São Paulo à comunidade dos filipenses (Fl 2,5). “Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração”, diz o próprio Jesus Cristo (Mt 11,29). Aprendei, pois, a mansidão e a humildade.

Ao inserirmos a gênese dessa temática na vida peregrina de Santo Inácio, o encontramos, já no tempo de sua convalescência, nos inícios de sua conversão, surpreendendo-se com a riqueza da diversidade desses sentimentos interiores. Ele começava pouco a pouco a prestar mais atenção no que sentia e na duração do respectivo sentimento.

Quando imaginava conquistar altos postos na carreira militar, o prestígio, a honra, a fama, poder, sentia-se contente, sentia prazer com tais pensamentos. No entanto, esse contentamento não durava mais que o decorrer do tempo em que estava pensando naquelas coisas. Logo em seguida sentia-se vazio e triste. Quando pensava em mudar radicalmente de vida, em viver como os santos, seguindo Jesus pobre e humilde, não só sentia grande consolação quando nisso pensava, mas também depois de deixar esses pensamentos, ficava contente e alegre. 

Voltemos, então, à formulação da anotação de Inácio em seu caráter afetivo e à centralidade da pessoa de Jesus Cristo. O cristão/ã segue uma pessoa, a pessoa de Jesus, o Cristo. Sem uma relação espiritual-afetiva com a pessoa de Jesus, o único conhecimento que teríamos dele seriam informações dadas por outros que supostamente o conheceram, ou seja, não estaríamos seguindo a pessoa, mas seguindo o que disseram ou escreveram acerca dela ou que nos ensinaram acerca dela, como o fizeram ou tentaram fazer da melhor maneira possível nossos catequistas.

Conhecer internamente o Senhor supõe muito mais do que um “ouvi falar” ou um simples “eu li sobre Jesus”; supõe antes e muito especialmente o “por mim”, ou seja, desejo conhecer internamente essa pessoa, os seus sentimentos, o seu coração (como símbolo da sede dos afetos) de onde brotam os seus gestos, as suas atitudes, a sua compaixão, a sua mansidão, a sua humildade, o seu modo de olhar, de se aproximar, de falar, de ouvir, de tocar, de conviver, de raciocinar, enfim, o que desejo é sentir a força do amor dessa pessoa por mim, posto que “por mim” se fez homem para que eu pudesse segui-lo e amá-lo, e seguindo-o e amando-o encontrasse, no seu amor por mim, a paz, a saciedade da alma, que como disse Agostinho, não encontra a paz enquanto não repousa no amor de Deus.

O amor é o mais poderoso dos afetos. Por isso se diz do próprio Deus: Deus é amor (1Jo 4, 8.16). E se Deus é amor, o Cristo Jesus é o amor encarnado de Deus por mim e ao mesmo tempo o modelo de ser humano que corresponde a esse amor, que está plenamente ordenado nos seus afetos, totalmente orientado para Deus, e não encerrado em si mesmo. O lugar do amor, para dizer em termos anatômicos, não é imediatamente o nosso cérebro, mas o nosso coração. É aí que Deus escreve Cristo em nós. A interpretação correta dessa escritura divina passa pelo nosso sentido interno.

Se ignoramos o que se passa dentro de nós, não descobrimos as verdadeiras causas de nossos desafetos, nossas inquietações, medos, receios, angústias, crises existenciais, não identificamos a doença espiritual nem nos damos conta da nossa hipocondria religiosa; simplesmente vamos buscar e adquirir mais um “medicamento” no mercado religioso - de preferência vindo da Terra Santa -, algo como um frasco de água do Rio Jordão que promete matar a sede espiritual, ou um pacote de azeitonas do Monte das Oliveiras que supostamente hão de saciar a fome espiritual.

“Marta, Marta! Tu andas preocupada e agitada por muitas coisas. No entanto, uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte, esta não lhe será tirada” (Lc 10, 41-42). Maria escolheu estar aos pés do Senhor e ouvir suas palavras... e ele lhe falava ao coração. Encostada aos pés de Jesus (tato), Maria não somente via e ouvia Jesus, mas muito especialmente sentia e saboreava a suavidade e a doçura do Amado de Deus que tanto a amava e que ela aprendeu a amar. Essa é melhor parte, a única coisa necessária, a orientação fundamental para colocar ordem nos afetos.

Pe. Luiz Carlos Sureki, SJ

Assessor Eclesiástico do Centro Loyola BH

(Reflexão feita na Noite de Espiritualidade realizada na modalidade on-line pelo Centro Loyola, no dia 13.08.21)