Essa frase do poeta grego Píndaro (século V a.C.), retomada por Agostinho já em contexto cristão, ajuda-nos a refletir sobre o paradoxo da Boa Notícia cristã de nossa identidade de filhos e filhas de Deus: tudo já nos foi dado e a vida que esperamos é realmente uma vida nova. Toda afirmação da fé cristã – a filiação divina, entre outras – deve levar em conta essas duas dimensões. De um modo bastante sintético, o convite do poeta nos permite afirmar, ao mesmo tempo, a atualidade (“tu és”), o propósito (“torna-te”) e as contingências de nossa identidade humana – abordagem antropológica – e de nossa filiação divina – abordagem teológica e espiritual (esse “quem” que deve conjugar livremente a atualidade e o propósito).
Uma experiência compartilhada em várias situações pastorais nos permite identificar, entre nossos contemporâneos, uma profunda relação simbólica entre “ser filho/a” e “ser amado/a”. Para muitos deles, afirmar a universalidade da filiação divina equivale a reconhecer que o amor de Deus é para todos. As questões levantadas sobre o batismo de crianças vão ainda mais longe: esses bebês (e todos os outros!) já são filhos e filhas de Deus, porque esse amor é para todos antes de nossa fé pessoal, antes de nossas ações (incluindo as sacramentais) e até mesmo antes do desenvolvimento de nossa consciência humana. Afinal, não é assim o amor da mãe e do pai pelos seus filhos e filhas?
Essa sensibilidade contemporânea, reativa a qualquer possibilidade de exclusão, toca em algo essencial da Boa Nova de Jesus: o dom de Deus é gratuito e sempre primeiro. De um modo intuitivo, esta concepção de filiação corresponde a uma teologia sapiencial da criação, que busca a presença de Deus naquilo que é comum a todos. A tradição teológica, baseada nas Escrituras (cf. Gênesis, Sabedoria, Paulo), desenvolveu essa mesma intuição a partir do tema da criação do ser humano à imagem de Deus, fruto da benevolência divina. Alguns teólogos contemporâneos (cf. Rahner; Theobald; Durrwell; etc.), seguindo os passos de Irineu de Lyon, deram maior destaque em suas reflexões a essa graça da criação e sua relação com o plano salvífico divino. Um fruto importante dessa abordagem teológica é a crítica a uma compreensão excessivamente comunitarista (com seus desdobramentos institucionais) ou meritocrática (moral) da filiação divina.
Certamente, da parte de Deus, seu dom de amor é universal e gratuito. Mas, de nossa parte, como podemos receber a plenitude do que nos foi dado? Nossa humanidade, com suas limitações, pode herdar tamanha dádiva? Voltemos à experiência pastoral: nossos contemporâneos também nos dizem como é difícil aceitar a fragilidade e a fraqueza humanas. Essa dificuldade aumenta quando nos deparamos com a fragilidade de um ente querido. Os pais, por exemplo, gostariam de evitar que seus filhos experimentassem o sofrimento e a dor. Mas como podemos nos tornar seres realmente humanos sem assumir a humanidade como ela é, com as experiências que ela implica? A fé cristã reconhece em Jesus Cristo alguém que assumiu essa humanidade comum até o fim, revelando-nos nossa identidade, nosso futuro e o caminho para chegar a esta realização de nossa identidade aberta. Ao viver sua existência como um dom total, ele nos mostra que a filiação divina, esse “tornar-se quem nós somos”, envolve uma kenosis, um esvaziamento, um abaixamento.
Teólogos do passado e do presente dão a essa atitude existencial, de tipo profético, um lugar importante, sob várias formas: a pobreza radical, a desapropriação de si e a dependência filial (cf. Balthasar); o abandono de si (cf. Eckart); a capacidade de se apagar e assumir a violência dos outros sobre si (cf. Theobald); em suma, um novo relacionamento (livre) com a vida e a morte. O crescimento do dom de Deus em nós – sempre primeiro, sempre gratuito – depende de uma conversão de nossa relação com nós mesmos, com os outros, com Ele: uma conversão que nos permite receber a Vida em plenitude em nossa existência singular limitada, em nossos corpos de carne, e vivê-la como uma oferta para que os outros sejam quem são, tornando-nos assim pessoas santificadas, como o Filho unigênito do Pai.
Vemos, assim, como feliz e evangélica a rejeição de nossos contemporâneos à exclusão de qualquer pessoa da dignidade da filiação divina. Ao mesmo tempo, é importante manter a distinção entre o “primeiro” dom (criação), que torna possível nossa existência, e o “segundo” dom (divinização), que nos chama a entrar na Vida (cf. a distinção de Lacroix entre filiação e existência filial). De fato, não há amor sem liberdade. Com a tradição cristã, permaneçamos cientes da possibilidade de acolher e rejeitar (em vários níveis) o dom de Deus; mas, com Rahner, tomemos consciência de que essa acolhida ou rejeição nunca pode ser identificada em um nível meramente conceitual ou expositivo, porque elas tocam a profundidade da existência e, em última análise, habitam a misteriosa transcendência de cada ser humano, à qual somente Deus tem acesso.
Para a fé, o convite formulado no título (“torna-te”) é expresso por toda a vida de Cristo e deve ser continuamente recebido e dirigido à humanidade por sua comunidade, a Igreja. Mas ele é também, acima de tudo, uma obra do Espírito de Santidade, na intimidade de cada homem e mulher, tocados desde o momento de sua criação por um Amor que nunca deixa de chamá-los à Felicidade, à Comunhão e à Vida.
Francys Silvestrini Adão SJ
In: Palavra e presença, portal da FAJE