“Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou: mas não a dou como o mundo” (Jo 14,27)
A paz é um dos dons comunicado pelo Ressuscitado, e como “seres ressuscitados”, somos desafiados a uma visão mais aprofundada, pessoal e coletiva, sobre o sentido e a força mobilizadora da paz.
Infelizmente, todos os dias aparecem, nos meios de comunicação, mais motivações para a violência do que razões para a paz. Entretanto, precisamos afirmar: “não fomos feitos para a violência”. Nosso coração é habitado por um desejo profundo de paz: “Felizes os que promovem a paz!”
Como seguidores do “Príncipe da Paz”, devemos primar por construir “espaços de paz” e sermos presença pacificadora: paz que vem do alto, que aquece nossos corações, plenifica nossas relações e se expande, tal como perfume, em todas as direções.
Paz, portanto, é aspiração congênita do ser humano. Nosso coração humano foi feito para a paz e anseia a convivência harmoniosa com Deus, com o cosmos, com os nossos semelhantes. É processo interminá-vel. Paz é síntese de bens, é sinfonia inacabada, arte social, estado de espírito que gera a comunhão.
“Paz soa suave ao ouvido, saborosa ao paladar, macia ao tato, perfumada ao olfato, sonhadora aos olhos. “Onde está o olhar, aí está o amor”. Nosso olhar volta-se para o mundo da paz, porque aí está o nosso coração, o nosso amor” (Pe. Libanio).
Na raiz bíblica do termo “shalom”, (em latim “pax”) está a ideia de “algo completo, inteiro”. Paz significa o que é integral, o que plenifica a vida. A paz pertence à plenitude, à completude, enquanto a violência está do lado da falta, da carência, do incompleto.
Paz reflete harmonia consigo, boas relações com os outros, aliança com Deus, enquanto a violência infecciona os relacionamentos, contamina a convivência, rompe os convênios, exclui os mais fracos. Há milênios esta palavra ressoa e ecoa na história dos povos. Inúmeros homens e mulheres a cultivam secretamente no coração. Todos a invocam. Muitos dão a vida, defendendo-a...
Não há paz sem liberdade, não há paz sem verdade. A paz autêntica contém densidade humana. É paz de consciência inocente dos justos que fazem o bem, dos profetas que se arriscam em favor dos outros.
Paz é humanidade alegre, espontânea, confiante.
Paz não é sossego, não é concordismo, nem cumplicidade.
Paz requer bravura. Somente o ser humano amante da paz é realmente “perigoso”, não o violento.
Mas, a paz ainda não encontrou espaço para ser a companheira de estrada em nosso cotidiano. Permanece a promessa profética de que ela habitará na nossa terra. Assim, o que parece sonho impossível, reina desde sempre no coração do Senhor, amante da Paz e se realizará, graças àquelas pessoas revolucionárias, que acreditam, desejam e realizam a paz.
Paz “solidária” que abraça os excluídos; paz “resistência” que não se acovarda; paz “audácia” que não se amedronta; paz “limpa” que não corrompe a ética; paz “profética” que encarna a justiça; paz “rebelada” que não se dobra; paz “estética” que revela a face bela da nova humanidade...
Na carta de S. Paulo aos Efésios, Cristo é chamado “a nossa paz” (Ef. 2,14).
A paz é característica do reino messiânico que Jesus inaugurou. Os discípulos, nas suas andanças, saudavam desejando a paz lá onde entravam, na esperança de encontrar filhos da paz. Do contrário, a paz voltava a eles (Mt. 10,13). Jesus solenemente nos deixa a paz, nos dá a paz. Ela é fruto do seu Espírito.
A liturgia, ao traduzir o melhor desejo para os mortos, diz simplesmente: “descansem em paz!” E que nesse mundo da paz brilhe a luz perpétua. Paz e luz comungam entre si.
Quem tem paz irradia luz. Quem vive na luz constrói a paz. Paz expansiva, paz que é respiração da vida, paz marcada pela esperança.
Paz, um bem escasso, mas um bem tão precioso que é sempre desejado, para que a vida se torne um pouco mais plena e com sentido: paz interior, paz na família, paz nas relações de trabalho, paz na ação política e paz entre os povos.
Uma ótima definição de paz a encontramos na Carta da Terra ao afirmar: “a paz é a plenitude criada por relações corretas consigo mesmo, com outras pessoas, outras culturas, outras formas de vida, com a Terra e com o Todo do qual fazemos parte” (n. 16). A paz não é algo que existe por si mesma, não brota de forma espontânea, mas que deve ser preparada e cultivada. Isso é o que Jesus fez, ao proclamar, com sua vida, a chegada da paz messiânica. Ela é o resultado de relações misericordiosas com as diferentes realidades que nos rodeiam. Sem estas relações misericordiosas nunca desfrutaremos a paz.
A paz que Jesus nos comunica não se atemoriza frente à dor, nem se desaba quando aparecem situações adversas. Abraça estados de ânimo contraditórios, não se identifica com os altos e baixos das circunstâncias, transcende o imediato. É a paz que supera toda razão, porque brota das profundezas do ser humano como “beatitude original”, força expansiva de humanização e revelação do Mistério que somos.
“A minha paz vos dou”. Jesus quer que seus discípulos vivam desta mesma paz que puderam ver nele, fruto de sua união íntima com o Pai e da profunda comunhão com os mais excluídos. Jesus é pacificador porque ama sem impor-se, a partir dos mais pobres; é pacificador porque não responde à violência com violência, porque é manso e puro de coração.
É evidente que, no contexto de uma sociedade produtivista, consumista, competitiva, indiferente, preconceituosa e nada cooperativa, não pode haver paz. Quando muito uma pacificação forçada, por imposição. Como cristãos temos que criar politicamente outro tipo de sociedade fundada nas relações justas entre todos, com a natureza, com a Mãe Terra e com o Todo que nos sustenta. Então florescerá a paz que a tradição ética definiu como “a obra de justiça”.
A paz nasce no coração daqueles que se deixam conduzir pelo mesmo Espírito de Jesus. O ponto de partida da paz cristã é a experiência da vida como gratuidade, ou seja, como dom recebido de Deus, presente de Sua vida e Seu amor sobre a humanidade ferida por tantos conflitos. O Deus Criador só atua através da paz e pede que sejamos mananciais de paz.
Na perspectiva do Evangelho, a paz deve ser compreendida e vivida como “bem-aventurança” (paz interior), que se abre e se expressa na busca da pacificação externa.
Inspirados no modo de viver de Jesus, podemos nos revestir das seguintes “bem-aventuranças” como horizonte e caminho de pacificação:
- Bem-aventurados aqueles que vivem a paz como um compromisso com a verdade, e caminham pelas sendas da concórdia, do diálogo, da acolhida do diferente;
- Bem-aventurados aqueles que chegaram a compreender que a paz e a justiça caminham de mãos dadas;
- Bem-aventurados aqueles que, inspirados na arte da pacificação de Jesus e de tantos profetas da paz, descobriram o valor da não-violência e a vivem cada dia;
- Bem-aventurados aqueles cuja presença pacificadora se empenham por superar discórdias, solucionar conflitos, reconstruir relações;
- Bem-aventurados aqueles que afastam de seu coração as sementes do ódio, da ofensa, do preconceito;
- Bem-aventurados aqueles que, em seu compromisso em favor da paz, não abandonam a ternura, a proximidade, a atenção compassiva...
Texto bíblico: Jo 14,23-29
Na oração: Há lugares em nosso interior que não são visitados. Há fronteiras, há arame farpado e é por aí que deve começar a construção da paz.
Jesus revela que a paz é um trabalho muito paciente, de artesanato. Ele era um artesão, um carpinteiro. Ele sabia que para ser mestre na arte de fazer móveis era preciso saber aplainar muito bem. A paz começa nesta arte de aplainar as arestas em cada um de nós; isso significa construir a paz em nossas diferentes dimensões: corporal, mental, afetiva, espiritual... Há divisões e conflitos em nosso interior; é difícil fazer a paz entre nossa razão e nosso coração, entre o nosso instinto e a nossa afetividade... mas nós podemos, pacientemente construir a paz do coração. Paz que é respiração da vida.
Da nossa interioridade brota a paz que se projeta na relação com os outros, construindo oásis de acolhida.
- O que prevalece na sua presença junto aos outros: pacífica, harmoniosa, inspiradora... ou conflituosa, violenta, excludente, preconceituosa...?
- O contexto social e político que estamos vivendo tem gerado muitas divisões, ódios, preconceitos... O que você tem feito para contribuir com um ambiente mais pacificado, onde as visões diferentes sejam respeitadas?
Pe. Adroaldo Palaoro sj