“Levanta-te, pega o menino e sua mãe e foge para o Egito!” (Mt 2,13)
Hoje é o domingo da Sagrada Família, uma família de “emigrantes perigosos”, que devem fugir de sua pátria (onde são perseguidos), buscando outra terra também rica em opressões (Egito), para voltar de novo a uma terra cheia de perseguições (Judéia, Galileia). Assim ela aparece como a patrona de “todas as sagradas famílias” que tem de fugir, exilar-se, esconder-se...
Jesus nasce num mundo hostil. Ele foi perseguido pelos “donos do poder” desde o início de sua vida. O não reconhecimento de Jesus por Herodes e por Jerusalém antecipa a rejeição, a condenação e a morte d’Ele na Cidade Santa, no lugar onde Ele encontrará a maior hostilidade.
O paralelismo entre Jesus e Moisés, de um lado, e entre Herodes e Faraó, de outro, é claro.
Há também um paralelismo entre Jesus e o povo de Israel: Jesus revive na sua própria carne a história do seu povo chamado por Deus do Egito. “Do Egito chamei meu filho” (Os. 11,1).
A perseguição e o exílio, logo no início da vida de Jesus, revelam o realismo da Encarnação. Ao entrar na nossa história, o Filho de Deus esvaziou-se de sua glória e assumiu nossa condição humana, com todas as consequências: pobreza e impotência, perseguições e ameaças de morte por parte dos poderosos de turno.
Como exilados, Jesus e seus pais, fazem parte da corrente ininterrupta das vítimas do poder, que são obrigados a percorrer lugares inóspitos, desertos, cidades estrangeiras, gente hostil...
Jesus e seus pais são irmãos de todos os refugiados políticos dos países repressivos. Já desde pequeno Jesus se vincula e se solidariza com o mundo dos pobres, dos últimos. Ele é um Deus frágil que arma tenda nos acampamentos dos exilados, nas favelas e cortiços da miséria total; é um Deus que acompanha e compartilha a sorte dos fugitivos, expulsos das aldeias, mandados para fora da segurança, da tranquilidade dos muros da cidade. Para Ele permanecem cerradas as portas de ferro dos palácios.
O alarme diante da notícia do nascimento do “rei dos judeus” encaixa perfeitamente no contexto de mentiras e complôs, de terrores e furores dos últimos anos de Herodes. A história humana e o solo do nosso planeta sempre estiveram manchados de sangue. O massacre por razões de estado sempre foi uma das práticas mais experimentadas, carregando consigo o triste cortejo de repressões, torturas, prisões, violações dos direitos civis.
De fato, nessas vítimas inocentes que Mateus relata, estão representados todos os inocentes que foram exterminados no decorrer da história, cujos nomes não estão registrados nos arquivos da repressão, mas apenas no “livro da vida” de Deus. Entre essas vítimas podemos entrever todos os que foram esmagados pelos pequenos e grandes Herodes, sacerdotes da satânica liturgia da morte, da violência, do sangue.
O relato do Evangelho deste domingo é como o espelho de nossa história violenta, que avança sobre cadáveres de crianças sacrificadas, de inocentes fugitivos, de homens e mulheres errantes, perseguidos, em busca de uma pátria. Nossa história do “falso natal” avança sobre o Natal verdadeiro que continua acontecendo nos caminhos dos fugitivos e dos clandestinos deste mundo.
Só podemos celebrar hoje a festa da “Sagrada Família” se descobrimos que as famílias mais sagradas, aquelas que devemos respeitar, proteger e potenciar, são aquelas que não tem casa nem pátria, nem meios de vida... e no entanto, continuam caminhando.
Maria compartilha a sorte do menino, vive para ele, com ele assume os riscos da fuga e exílio. Ela cuida, protege, educa o menino entre perseguições e exílio. Enquanto existirem mães que protegem e cuidam das crianças, como Maria, haverá Natal.
José, em meio à perseguição, põe-se a serviço do Deus fugitivo, expulso, exilado do mundo. Como verdadeiro esposo e pai, ameaçado e fugitivo, percorre, com Maria e o menino, os caminhos do desterro. Enquanto existirem pais que, como José, se arriscam pela mulher e pelos filhos, que são sua riqueza, o dom de Deus..., enquanto estiverem dispostos a sofrer por seus filhos e pelas mães de seus filhos, no exílio ou na pobreza, haverá Natal.
Nessa escola de perseguição cresceu o Messias, compartilhando assim a sorte dos hebreus oprimidos no Egito; crescendo nela pode entender e interpretar nossa história por dentro. Entre fugitivos e perseguidos, cresceu Jesus, nas fronteiras da desumanização; ali vai sendo gestada a história da nova humanidade.
Se a história da Encarnação começa lá “embaixo”, na periferia, quer dizer que a fé em Deus implica prestar atenção e voltar a cabeça em direção aos “últimos”, aos que vivem “deslocados”. É por esse caminho que podemos chegar à descoberta e à experiência de Deus; é também por este caminho que podemos chegar ao conhecimento de nós mesmos e nos fazermos mais “humanos” e “solidários”. Ali temos que buscá-Lo e encontrá-Lo, nós que celebramos a festa da Sagrada Família.
O mistério do Exílio interpela a nossa liberdade e a nossa fé. Jesus bate e pede hospitalidade na ponta dos pés. São rostos desfigurados pela fome e pobreza, rostos aterrorizados pela violência diária, rostos angustiados de menores carentes, rostos humilhados e ofendidos na sua dignidade... Podemos fechar-Lhe a porta e condená-Lo ao exílio, que é uma atitude gravíssima na relação com Deus.
Aqui se condena uma criança. Se não entendermos essa lição, nada mais conseguiremos entender. Nesta nossa ignorância e insensibilidade a respeito do presente divino que é a Criança de Belém, estão as raízes de nossas maiores desgraças, injustiças, violências... E Deus não pode abençoar uma sociedade que não sabe valorizar suas crianças.
O Evangelho de hoje termina com três indicações geográficas, que são como que a espinha dorsal da narrativa. Antes de tudo, o anjo diz a José que deve retornar à terra de Israel: é a pátria mais genérica de Jesus e da revelação bíblica. Depois José é advertido em sonho para ficar no território da Galileia. Enfim, de modo mais específico, ele vai morar “numa cidade chamada Nazaré”.
Nazaré está no traçado do retorno-êxodo de Jesus do Egito. Com a terra de Israel Jesus revive a experiência do Êxodo; com a Galileia dos gentios Jesus abre a salvação aos mais pobres e excluídos; mas com Nazaré Ele atinge quase que o vértice do seu destino. Uma cidade insignificante que se torna o ponto de partida do caminho de Jesus, uma vida oculta e corriqueira que é celebrada pelos profetas.
Podemos dizer que Nazaré é, em certo sentido, a apologética do cotidiano, das horas, dos meses, dos anos escondidos, da vida tranquila, provinciana, não-escrita, de Jesus. Essa atenção à simplicidade do cotidiano, à natureza da Galileia, à mensagem que Deus esconde nos homens, nas coisas, nas horas…, é uma constante na pregação de Jesus. Nazaré é o sinal da epifania de Deus nas pequenas coisas, é o sinal da palavra divina escondida nas vestes humildes da vida simples e familiar, é o sinal da presença graciosa de Deus em nossas casas.
Texto bíblico: Mt 2,13-15.19-23
Na oração: contemplemos, com os olhos e o coração de Maria e de José, a entrada na terra que fora o lugar de escravidão dos seus antepassados. Terão recordado a história do seu sofrimento no cativeiro e da sua libertação, realizada pela ação criativa de Deus.
Suplicar a graça do seguimento de Jesus nos êxodos e nos exílios interiores e exteriores.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciano - CEI
27.12.2013