“...o Senhor foi levado ao céu, e sentou-se à direita de Deus” (Mc 16,19)
O Mistério que estamos festejando neste domingo é o mesmo que celebramos cada dia deste tempo de Páscoa ou que celebraremos em Pentecostes: a certeza de que nosso Deus é um Deus Vivo e um Deus de Vida, que não permite que a morte tenha a última palavra e que se empenha para que nós sejamos, junto a Ele, doadores de vida.
Já se passaram 40 dias desde que celebramos a Páscoa, o acontecimento inspirador e alegre da Ressurreição de Jesus. Talvez seja um bom momento para tomarmos o pulso de como temos vivenciado este tempo pascal. Também a nós, como seguidores(as), a liturgia nos apresentou Jesus Vivo e Ressuscitado durante quarenta dias: Ele nos falou de paz, de esperança, de fortaleza, do imenso amor com que nos ama, do sentido de sua morte e de sua paixão... Conhecendo em profundidade nossos medos e debilidades, nos prometeu com insistência que sempre permanecerá entre nós através do alento e da força do seu Espírito, da “Ruah” criativa e transformadora.
Na Ascensão, Jesus não nos abandona, pois realizou uma comunhão definitiva com a humanidade, garantindo a ela um destino de plenitude. Ele subiu ao céu para abrir-nos o caminho, mas agora é o Espírito aquele que nos move e nos conduz ao Pai. Cabe a nós esforçar-nos em fazer o nosso êxodo, sob a ação do mesmo Espírito e confiantes na fidelidade de Deus.
Depois destes 40 dias de preparação é tempo de nos mover, de sair, de pôr-nos a caminho. É preciso colocar em prática tudo o que foi escutado e experimentado. É tempo de “expulsar demônios, de curar enfermos, de falar linguagens novas...”. Cada um de nós pode dar nome a esses “demônios” que somos chamados a expulsar, às enfermidades que devemos curar ou à linguagem de devemos praticar com insistência.
Agora, através do seu Espírito, o Senhor nos coloca em movimento com um envio apaixonante: que a Boa Notícia, aquela que nós já temos recebido, chegue ao mundo inteiro.
Ao mistério da Ascensão corresponde ao mistério da Kénosis (esvaziamento) do Verbo; Ele que se despojou de sua glória e majestade e se fez homem, agora é elevado aos céus e com Ele toda a humanidade redimida e divinizada. Em Cristo, a humanidade inteira já se encontra envolvida por Deus; em Cristo, céus e terra se encontram.
A Ascensão nos revela que a terra termina no céu, o tempo na eternidade, o ser humano termina em Deus. Mas o céu, a esperança, o horizonte, estão já presentes em nosso hoje, dando sentido. O futuro sonhado e esperado é a alegria do presente. O céu não pode esperar!
Frequentemente, a festa da Ascensão é explicada utilizando a mentalidade grega que distingue e separa “céu” e “terra”, que vê estas duas realidades como espaços contrapostos e, de certa forma, separados por um imenso abismo. Como consequência, neste domingo faríamos memória da grande “desconexão”: Jesus Ressuscitado ascende ao céu, abandona a terra e a nós, seus discípulos, sua comunidade; deixa-nos tristes e órfãos.
No entanto, a chave está aqui: “tudo está entrelaçado, inter-conectado, inter-dependente...”
A cosmologia bíblica não é dualista. Céu e terra não são duas realidades separadas, opostas, desconectadas, senão que existe entre elas uma permanente inter-relação; são realidades inter-conectadas. “Céu” (Deus e seus anjos) e terra estão em permanente relação. E tanto os humanos como os animais, as plantas, os planetas, experimentam sempre o “toque” e a “influência do céu”. Assim se expressam os Salmos, os Profetas, os Sábios... Para o pensamento bíblico há salvação ali onde céus e terra se tocam.
Os primeiros cristãos contemplavam a ressurreição de Jesus como o início da reconciliação entre o céu e a terra. Jesus “sobe ao céu” para que se realize sua “conexão” definitiva com a terra; Jesus sobe ao céu para que o céu venha à terra. Essa foi a oração que Ele ensinou àqueles que o seguiam: “Venha a nós o vosso Reino; seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu”.
O que dizemos da terra, o que a ciência da ecologia nos mostra cada vez com mais evidência é que tudo está inter-conectado, todas as manifestações de vida estão inter-relacionadas. Assim, com muito mais razão, é preciso dizer de uma maneira muito especial nesta celebração da Ascenção: Jesus sobe para “conectar” tudo. Esta é a “ecologia do Espírito do Ressuscitado”: o céu na terra e a terra no céu.
Esta é a ecologia integral: a ressurreição transformou absolutamente tudo, uniu tudo. Uma estupenda beleza nasceu e nós estamos integrados neste cenário.
Na Bíblia, céu e terra querem exprimir, espacialmente, a totalidade da Criação de Deus; por isso Deus é Senhor do céu e da terra.
Tudo, então, chegará à plena reconciliação: o céu terá baixado à terra e a terra terá sido elevada até o céu. E então será a plenitude: “Deus será tudo em todas as coisas” (1Cor. 15,28)
A tradição nos lembra que o Espírito Santo é o mesmo na terra e no céu, que o Amor é o mesmo, na ter-ra e no céu. Todas os atributos divinos que podemos viver no espaço-tempo são nossa realidade celeste.
Ao celebrar a Ascenção, sentimos aqui na terra como o céu se conecta com uma experiência universal, comum a todo ser humano: nosso profundo desejo de comunhão.
E, assim, muitas outras expressões humanas, sobretudo através da arte, nos convidam a olhar o céu não como algo etéreo, separado de nossa realidade, mas como algo que habita em cada um de nós. O “céu” se encontra naquelas situações e relações que fazem o ser humano apaixonar-se pela vida. Onde predominam o ódio e o desprezo pela vida, ali se encontra o “inferno”. Quantas “expressões infernais” destroem o impulso para o encontro neste nosso contexto social, político, econômico...!
Como vemos, o “céu” nos mobiliza e nos interpela, nos conduz àqueles lugares, pessoas e situações nas quais experimentamos o profundo desejo de nos unir com a humanidade; também a humanidade mais frágil e necessitada de comunhão. E aí, nesse desejo de construir o céu na terra e de encontrar-nos uns com outros, encontramos o Ressuscitado, falando-nos com paixão, ternura e amor.
O movimento desencadeado por Aquele que Vive é um movimento que reúne para ativar a vida, para restaurar vínculos rompidos, para libertar das ataduras que escravizam...
Jesus “subiu” ao céu porque “desceu” às profundezas da terra. E assim também nos mostrou o caminho. Não podemos subir ao céu se não estivermos dispostos a descer com Cristo ao nosso “húmus”, às nossas sombras, à condição terrena, ao inconsciente, à nossa fraqueza humana.
Nós “subimos” a Deus quando “descemos” à nossa humanidade. Este é o caminho da liberdade, este é o caminho do amor e da humildade, da mansidão e da misericórdia; é o caminho de Jesus também para nós.
A vida cristã não é “subida” para fora da realidade, mas “descida” para o mais profundo da mesma.
Entramos no movimento da Ascensão quando amamos, servimos, cuidamos...; nós nos elevamos quando lutamos por uma causa, investimos a vida num projeto em favor da vida.
Texto bíblico: Mc 16,15-20
Na oração: A festa da Ascensão nos ensina o caminho através do qual descemos a uma dimensão mais profunda, chegando à corrente subterrânea por onde flui a vida; aqui experimentamos a unidade de nosso ser; o impulso para a comunhão, o lugar da transcendência, onde nossa transformação realmente acontece.
Para nos realizar e desenvolver toda a nossa potencialidade, busquemos, na oração, cavar mais profundamente, até atingir as raízes de nosso ser, o núcleo original de nossa personalidade. É no mais íntimo de nós que rezamos ao Senhor. É no mais profundo de nossa interioridade que escutamos o Senhor.
Deixemo-nos invadir pela luz e pela vida d’Aquele que “armou sua tenda entre nós”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
13.05.2021
Imagem: Fernando Alves