“A barca, já longe da terra, era agitada pelas ondas, pois o vento era contrário” (Mt 14,24)

 

Poderíamos começar nossa reflexão sobre o Evangelho, indicado para a liturgia deste domingo, com estas inquietantes perguntas: “Que farias tu se não tivesses medo? Que fariamos nós, seguidores e seguidoras de Jesus, se não fôssemos afetados pelo medo?”

 

Chegamos à pós-modernidade com uma enorme carga de medo; somos atormentados o tempo todo pelo medo; um medo sem nome, um fantasma sem rosto, escuro como uma sombra e rápido como uma tempestade; medo cruel que afeta os corajosos e agride os ousados. Não existe depósito de munição mais potencialmente explosivo do que os estoques de medo guardados nas escuras profundezas do ser humano. Há um verdadeiro pânico permanente envolvendo grupos, pessoas e instituições.

 

Podemos afirmar que o centro dos evangelhos de Marcos e Mateus é uma espécie de relato de navegações e tormentas. Essa recordação de Jesus que acompanha seus amigos no barco e que “acalma” sua vida tormentosa (tormenta de dentro ou de fora?) está no fundo da tradição cristã. O medo, a angústia, a insegurança , o espanto dos apóstolos, o não saber quê fazer na tormenta, é parte de nossa condição humana. Isso não nos faz menos pessoas, mas nos faz mais próximos, se somos simples e humildes.

 

Quando lemos com um pouco mais de atenção os capítulos centrais do Evangelho de Mateus passamos a ter convicção de que Jesus está continuamente “passando para outra margem” e convidando seus discípulos a fazerem o mesmo. Poderíamos dizer que o seguimento implica permanente travessia de uma margem à outra. Isto nos move a pensar que esta passagem não é geográfica; nesse deslocamento há algo mais profundo, ao menos um convite à não instalação. Nenhuma margem pode se converter em lugar de “parada”, todas são lugares de passagem.

 

Mateus realça que Jesus “forçou” os seus discípulos a entrarem na barca. Isto indica que não queriam ir embora e foi necessário obriga-los a se retirarem dali. Por quê? Sem dúvida, porque ao verem a oportunidade de que o Mestre se convertesse em rei, não queriam perder a ocasião de ter algo de poder, de vaidade, de prestígio. Compreende-se, assim, o mandato de Jesus a passar para a “outra margem”, a deixar de lado as solicitações do ter, do poder... para buscar o caminho do despojamento e da partilha.

 

A atualidade do relato é patente: quando os discípulos de Jesus não se contentam em ser o que são, mas buscam poder e prestígio, “faz-se noite”, não avançam, a tormenta se amplia, vêem em Jesus um fantasma que lhes dá medo, Pedro se afunda... Seguir Jesus implica estar continuamente passando para a outra margem; passar para o outro diferente, não permanecer fechado em si mesmo. “Passar para o outro” como condição necessária para “passar para Deus”. Aquele que se instala, se perde, envolve-se na tormenta. É preciso buscar sempre novos espaços e novos horizontes. E toda travessia implica “correr riscos”.

 

Há momentos em que daríamos tudo por uma chance de pedir a Deus para não corrermos riscos. Mas o risco é necessário. É importante poder enfrentar as dificuldades, o desconhecido e o incerto. As experiências obscuras, as tribulações, as tempestades... são inerentes à fé cristã; estão presentes em todas as pessoas. Mas isso deve nos permitir renovar constantemente uma confiança e uma união com o Senhor na realidade mais cotidiana.

 

Percebemos que algumas pessoas fazem opção pelo porto seguro das falsas certezas e seguranças, mas outros preferem correr o risco do “mar agitado” e são capazes de construir o novo. As tempestades, o vento contrário, a escuridão da noite... “agitam a alma dentro de nós”.

 

Mas como enfrentar as turbulências que são frequentes no nosso processo de amadurecimento?  A sensibilidade, a criatividade, o espírito de iniciativa são nossos maiores aliados. Para desenvolver ao máximo nossas potencialidades, temos de enfrentar dilemas, encruzilhadas, perplexidades e responsabilidades. Isto nos faz mergulhar na vida, desenvolver nossas forças, ativar e despertar outras possibilidades escondidas no chão de nossa vida.

Na tradição inaciana “formar-se é provar-se”. Só aquele que é posto à prova em sua fé e em suas convicções, se forma, cresce e amadurece.

 

Com certeza, muitos de nós já tivemos a experiência de que, quando fomos capazes de superar nossos medos e tomar decisões audazes diante de um futuro incerto, então se despertaram, no nosso eu mais profundo, outros recursos e capacidades que ignorávamos ter;  no final, nossa vida se viu enriquecida de uma maneira tal que jamais poderíamos imaginar.

 

Do meio dos ventos contrários e do mar agitado brota um forte apelo: “Não tenhais medo”. Um apelo com força libertadora; é a força da voz de Alguém cuja presença alavanca o passo para a travessia: o passo da mudança, o passo da audácia de sonhar de novo, o passo para vislumbrar a outra margem...

 

Com o Senhor no barco de nossa vida, vamos além, fazemos a travessia... Ele é ao mesmo tempo: mestre, timoneiro, mastro, vela, horizonte, esperança, ar, mar, adorável presença...Salvador... Os conflitos mais profundos do nosso coração são pacificados com o atrevimento da coragem, com a força da fé, com a imaginação solta, com a criatividade livre e desimpedida... Por isso, é preciso rastrear, identificar, compreender e desterrar os medos de nossos corações.

 

É urgente substituir a cultura do medo pela cultura da coragem. A coragem desbloqueia energias, impulsiona decisões, levanta projetos, reacende a criatividade e o gosto por viver.

 

Sem a superação cotidiana desse medo, nossa missão estará comprometida; perderá sua força inovadora, garantida pela novidade do Projeto de Deus. O compromisso com o Reino requer de todos uma forte dose de coragem e uma alma ágil, animada e vivificada pelo sabor da aventura e da novidade. Esperança e dúvida, temor e coragem, criatividade e rotina, andam juntas. Tornamo-nos corajosos quando tomamos a decisão de arriscar. Vencido o medo, nós nos tornaremos autênticos(as), criativos(as) e audazes seguidores(as) de Jesus. “Quem for medroso e tímido volte para trás” (Jz. 7,3)

 

Texto bíblico:   Mt. 14,22-33

 

Na oração:

Para fazer a “travessia da vida” será necessário descobrir:

- quantos fantasmas há em sua vida que o paralisam, o impedem de avançar, o travam na hora de tomar decisões?

- Quantos fantasmas o impedem crescer, assumir os desafios, ser criativo...

- Numa dimensão mais ampla, quantos fantasmas há na igreja que não a deixam rejuvenescer-se, que a impedem viver um processo de contínua mudança, que a fazem suspeitar de tudo, que a fazem surda aos chamados de Deus no meio das tormentas da atualidade?

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Campinas-SP