“Eu te darei as chaves do Reino dos céus: tudo o que tu ligares na terra...” (Mt. 16,19)

 

 

O texto nos ajuda a ler nossa vida. Afirma-se nossa identidade; e a identidade de uma pessoa é dada por aquilo que é sólido, consistente... no seu interior, que não se desfaz com as adversidades do mundo no qual vivemos (crises, fracassos...).

 

Toda pessoa possui dentro de si uma profundidade que é seu mistério íntimo e pessoal.

 

“Viver em profundidade” significa “entrar” no âmago da própria vida, “descer” até às fontes do próprio ser, até às raízes mais profundas.  A própria interioridade é a rocha consistente e firme, bem talhada e preciosa que cada pessoa tem, para encontrar segurança e caminhar na vida superando as dificuldades e os inevitáveis golpes da luta pela vida. É no “eu mais profundo”  que as forças vitais se acham disponíveis para ajudar a pessoa a crescer dia-a-dia, tornando-a aquilo para o qual foi chamada a ser.

 

A oração é a chave interior que faz a pessoa chegar até o próprio “eu original”, aquele lugar santo, intocável, onde reside não só o lado mais positivo de si mesma, mas o próprio Deus. Este é o nível da graça, da gratuidade, da abundância, onde a pessoa mergulha no silêncio, à escuta de todo o seu ser.

 

Temos em nossas mãos as chaves da vida. O que fazemos com elas: podemos abrir ou fechar, ligar ou desligar, atar ou desatar.... Ter a chave da vida: abrir ou fechar as portas do futuro, das relações, dos sonhos, da missão... Dar direção à vida. Atar e desatar os nós da vida.... Aqui está o grande desafio: abrir-se ou fechar-se. Abrir-se à vida, ao novo, ao outro, ao desafiante ou diferente... ou fechar-se...

 

Deus confiou e colocou em nossas mãos a chave da vida. Ele não impõe, não obriga. Corre o risco de criar-nos livres. Aqui está a grandeza do ser humano: optar por uma vida aberta ou fechada, ser nó ou desatar, ligar ou desligar, expandir ou retrair... Sempre há o perigo de construir, dentro de nós, um condomínio onde portas se fecham, chaves se perdem, segredos são esquecidos... e, com isso, mergulhamos na mais profunda solidão.

 

Pior ainda é quando confundimos o “poder das chaves” com a “chave do poder”. Quem tem a chave tem o poder. “Ter poder”: esta expressão ecoa forte no coração humano. O poder deslumbra, ofusca e pode facilmente se tornar o centro da identidade de uma pessoa. O poder é objeto de desejo de extraordinária magnitude e fascínio para o ser humano. Seu brilho encanta e seduz; sua proposta é extremamente atraente; para muitos, ele é a suprema ambição. Não há ser humano que não tenha sido tentado pelo canto desta sereia.

 

O coração humano sofre ao ver-se dominado por este desejo de poder que intoxica suas aspirações mais profundas de comunhão e solidariedade. A vida se torna uma arena de disputas. Talvez não exista relação mais ambivalente que aquela existente entre a pessoa e o poder. Os relacionamentos são balizados, tanto no espaço institucional como nos encontros interpessoais, pela disputa do poder; o exercício do poder se expressa nas atitudes de dominar, manipular, subjugar e definir tudo segundo os próprios interesses.

 

A perversidade do coração humano encontra no exercício do poder o campo mais propício para a revelação de suas mazelas, autoritarismos, vaidades... Em nome do poder gera-se a morte, a divisão, a solidão.

 

Nenhum exercício do poder é evangélico. Não há nada mais contrário à mensagem de Jesus que o poder. Jesus não transfere “poder” a Pedro; reforça nele a liderança para o cuidado e o serviço aos outros. Nenhum ser humano é mais que outro, nem está acima do outro. “Não chameis a ninguém de pai, não chameis a ninguém chefe, não chameis a ninguém senhor, porque todos vós sois irmãos”. A única autoridade que admite é o serviço. Jesus não exerceu poder porque o poder nunca é mediação para a libertação do ser humano (seja poder político, religioso, ou qualquer outra expressão de poder).

 

Jesus despoja-se do poder; Ele tem autoridade: “ensinava-lhes com autoridade e não como os escribas”. Sua autoridade é  caminho para o serviço e a promoção da vida. Por isso a autoridade de Jesus não tem nada a ver com o poder que domina ou a liderança que se impõe. Jesus tem “autoridade”  porque o “centro” está no outro; Ele veio para servir.

Quem tem “poder”, ao contrário, o centro está em si mesmo; por isso é que toda expressão de poder é violenta, exclui, decide pelo outro... A palavra “autoridade” vem do verbo latino “augere”, que significa literalmente: aumentar, acrescentar, fazer crescer, dar vigor, robustecer, sustentar, elevar, levantar o outro, colocá-lo de pé, impulsioná-lo para frente... É a qualidade, a virtude e a força que serve para apoiar, para alentar, para ajudar as pessoas a serem elas mesmas, para fazê-las crescer, desenvolvendo suas próprias potencialidades.

 

“Autoridade” significa recuperar a autoria, devolver a autonomia àquele que está impedido de optar e de fazer seu caminho. Nesse sentido, a autoridade nunca é perigosa para a pessoa, jamais é imposição ou atentado contra sua legítima autonomia ou liberdade. A autoridade é essencialmente amor.

 

Também o exercício da autoridade deve ser medido pela palavra e pela obra de Jesus Cristo. E não pode ser de outra maneira, já que, se a origem da autoridade na Igreja é divina, também deveria ser “divina” o modo de exercê-la. Se toda autoridade provém de Cristo, deveria ser exercida à maneira como Cristo a exerceu, e isto vale tanto para aqueles que detém uma autoridade instituída como para aqueles que, devido às suas qualidades e carismas, exercem, de fato, autoridade de serviço nas comunidades cristãs.

 

Neste “como” se exerce e deve ser exercida a autoridade na Igreja está o desafio que as comunidades cristãs devem assumir. O Evangelho de hoje é claro quanto à maneira como se deve exercer a autoridade: a partir do serviço. Aquele que serve não domina, convertendo-se no centro, mas anima e integra o diferente. Aquele que serve, despoja-se de seus interesses privados e investe sua vida em benefício de todos.

 

Isto significa que todos aqueles que exercem a autoridade hão de voltar sempre ao manancial de onde brota o autêntico ser da Igreja, que é a palavra e a ação de Jesus. Não deve existir autoridade na Igreja que esteja por cima da ação do Espírito; ela não deve buscar outra coisa a não ser a vinculação de todos os membros da Igreja no amor e no serviço mútuo. Uma autoridade que se desvincula do “carisma de autoridade” do Espírito tende sempre a converter a instituição em um fim, esquecendo que só pode ser justificada na medida em que serve à obra do Espírito.

 

A autoridade deve ser exercida no marco da visão de Igreja que o Vaticano II nos deixou, ou seja, potenciar a comunhão. É urgente que o exercício da autoridade na Igreja vá assumindo os traços característicos de uma Igreja de comunhão, se queremos ser fiéis ao “modo de proceder” de Jesus.

 

Texto bíblico:  Mt. 16,13-19

 

Na oração: Muitos caminhos conduzem à própria interioridade. A oração é a chave de acesso; ela é esse silencioso exercício de deixar que Deus me habite para que eu possa abrir as portas do coração e janelas da mente àqueles com quem me encontro.

 

Onde o Deus de Jesus tem liberdade de atuar, ali desaparece todo resquício de poder que desumaniza.

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Centro de Espiritualidade Inaciana

26.06.2012