“Ela ofereceu tudo aquilo que possuía para viver” (Mc 12,44).
Depois de um longo percurso contemplativo, seguindo o evangelista Marcos, hoje nos encontramos com Jesus no templo de Jerusalém, logo após seu gesto escandaloso da purificação e expulsão dos vendilhões. Ele, mais uma vez nos ensina. O episódio de hoje é o melhor resumo que se pode fazer de todo o evangelho de Marcos. Duas imagens, diametralmente opostas, emergem com intensidade. De fato, o contraste entre as duas cenas é total.
Na primeira, Jesus põe a descoberto a atitude dos doutores da lei no templo. Sua religião é falsa: utilizam-na para buscar sua própria glória e projetar-se sobre os outros. Vivem o “complexo do pavão”: só se preocupam com o exterior, as vestimentas, a ostentação, a vaidade, as honras, as saudações...Buscam vestir-se de modo especial e ser saudados com reverência para sobressair sobre os outros, impor-se e dominar. A religião lhes serve para alimentar fantasias. Fazem “longas orações” para impressionar. Não criam comunidade, pois se fazem o centro dela. No fundo, só pensam em si mesmos. Vivem aproveitando-se das pessoas frágeis às quais deveriam servir. Não se deve admirá-los nem seguir seu exemplo.
Na segunda cena, Jesus encontra-se junto ao cofre do templo e observa o gesto de uma pobre viúva que deposita ali duas pequenas moedas. Impactado pelo gesto, Jesus desperta a atenção de seus discípulos para que não esqueçam o gesto desta mulher. É uma pobre mulher, maltratada pela vida, sozinha e sem recursos. Provavelmente vive mendigando junto ao Templo. Desta mulher eles podem aprender algo que os doutores da lei nunca lhes ensinarão: uma fé total em Deus e uma generosidade sem limites.
Jesus descobre o dom da generosidade em uma mulher, a viúva pobre, que lançou no cesto das oferendas tudo o que precisava para viver. Olhar como Jesus olha nos educa, nos faz ter grandes olhos. É um gesto que passa desapercebido para muitos outros e que, no entanto, Ele recebe e elogia.
Enquanto os mestres da lei vivem aproveitando-se da religião, esta mulher despoja-se de tudo em favor dos outros, confiando totalmente em Deus. Para captar toda a força da frase final do Evangelho de hoje (“na sua pobreza, ofereceu tudo aquilo que possuía”), temos que ter em conta que em grego “bios” significa não só vida, senão também modo de vida, recursos, sustento; seria o conjunto de bens imprescindíveis para a subsistência. Isso quer dizer que ela deu todo seu sustento (vida), ou seja, tudo o que constituía sua possibilidade de viver. A atitude da viúva equivalia a colocar sua subsistência (vida) nas mãos de Deus. Sua insignificante esmola demonstra uma atitude de total confiança em Deus e de total disponibilidade diante d’Ele.
Seu gesto nos faz descobrir o coração da verdadeira religião: confiança grande em Deus, gratuidade surpreendente, generosidade expansiva, amor solidário, simplicidade e verdade. Não conhecemos o nome desta mulher nem seu rosto. Só sabemos que Jesus viu nela um modelo para os futuros dirigentes de sua Igreja.
Trata-se de uma mulher anônima que pratica a misericórdia através de sua pobreza e de sua capacidade de partilha. Esta pobre mulher nos ensina a não acumular, a não apegar-nos às coisas, às pessoas, ao que fizemos ou fomos em outro tempo; ela nos ensina a estar abertos para nos deixar conduzir, ali onde a vida precisa de nós, a atrever-nos a lançar nossas duas moedas, apesar de senti-las de tão pouco valor. Porque esse gesto é o que dá sentido à nossa vida e torna fecunda também a dos outros. Aprendemos dela a viver nossa pobreza oferecida, de mãos estendidas, de coração livre.
Em nossas relações com Deus não servem de nada as aparências e as indumentárias. A sinceridade é a única base para que a religiosidade seja efetiva. Não enganamos a Deus com aparências.
Frente a tanta hipocrisia, diante de tantos que gostam de usar longas vestiduras, ser saudados nas praças e ocupar os primeiros lugares, diante da cultura da aparência nestes tempos midiáticos..., quem se despoja de tudo e se descentra em favor dos outros, é libre para “dançar com o Espírito”, na certeza de estar gestando a nova comunidade onde o pão se multiplica e a fraternidade se faz visível.
No filme “Advogado do diabo”, o “coisa-ruim” ri ao dizer que era fácil a disputa com Deus: bastava apenas aguçar a vaidade dos homens e das mulheres.
Hoje estamos condenados, pelos meios de comunicação, a alcançar o sucesso custe o que custar, doa a quem doer, impedidos de realizar gestos de gratuidade e generosidade. Solidariedade e partilha são apenas conceitos idealistas que não correm mais nas nossas veias. A ideologia da vaidade é aquela que responde por essa ânsia de tudo ganhar, de comparar-se com os outros num ritmo frenético, de brilhar, de aparecer, enquanto seu interior está carcomido pela angústia e pela falta de sentido na vida.
Por outro lado, tantas mulheres e homens de fé simples e coração grande e generoso, que sabem amar sem reservas, são o melhor que temos na igreja. Não escrevem livros nem pronunciam sermões, nem se fazem o centro na comunidade, mas são essas pessoas que mantém vivo entre nós o evangelho de Jesus; são elas que fazem o mundo mais humano, são elas que creem de verdade em Deus, são elas que se deixam conduzir pelo Espírito de Jesus em meio a outras atitudes religiosas falsas e interesseiras. Vivem a simplicidade e o despojamento, sem chamar a atenção sobre si mesmas. Na liturgia e nas celebrações não gostam de se exibir com vestimentas vistosas, mendigando saudações vazias e reverências fúteis, nem buscam os assentos de honra e os primeiros lugares. Destas pessoas temos de aprender para seguir a Jesus.
São elas que mais se parecem com Ele.
A generosidade é a virtude do dom.
Por ser mais afetiva, mais espontânea, ligada ao coração... a generosidade revela-se na ação, não em função de um mandato, de uma lei, de um interesse..., mas unicamente de acordo com os impulsos do amor, da solidariedade... O amor é sempre generoso.
A generosidade nos leva em direção aos outros e em direção a nós mesmos enquanto libertos de nosso pequeno eu. É a generosidade que nos liberta da mesquinhez, da vaidade, do auto-centramento...
Ser generoso é ser livre, e é esta a única grandeza verdadeira (magnanimidade).
Texto bíblico: Mc 12,38-44
Na oração: Diante do olhar compassivo do Senhor, experimente a generosidade como libertação, como um mergulho no coração da verdade.
Sinta o coração dilatar-se até às dimensões do universo, livre para qualquer desafio, para lançar-se a uma intensa generosidade.
É a generosidade que alarga o seu coração, rompendo seus estreitos limites e lançando-o a compromissos mais profundos. Sinta que cada nova doação é uma libertação maior: são novas oportunidades de serviço, de maior aproximação d’Aquele que veio, não para ser servido, mas para servir e para dar sua vida pelo mundo.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI