Inácio de Loyola foi um homem da mudança, da transição no tempo, dos tempos novos, agitados, turbulentos, de transbordantes novidades que punham em questão tudo o que até então ele recebera; mas não se fechou a elas, e sim abriu-se ao diferente e novo. Um novo “movimento” começa em sua vida e Inácio passa a viver a aventura de contínuos deslocamentos, internos e geográficos. Torna-se o peregrino do Absoluto.

Sempre em marcha, sem encurtar os passos, o peregrino Inácio avança como homem livre, sem deixar-se aprisionar por nada nem por ninguém, aberto aos acontecimentos, pronto a servir a Deus ali onde O encontra. A peregrinação interna e geográfica o torna mais humano, com maior visão, grandes desejos.

Antes de fazermos memória dos “lugares” que tiveram impacto na experiência espiritual de S. Inácio, recordemos esta expressão: “a planta dos pés”. Esta planta clama por raízes. Os pés escutam a terra e nos enraízam na realidade histórica. É difícil ter os pés sobre a terra...  Podemos sentir isso se “escutarmos” bem nossos pés. Segundo a tradição oriental, quanto mais próximo do chão estiver o corpo, mais livre fica a mente e mais sensível o coração.

Quanto mais proximidade e intimidade com a terra, mais profunda é a experiência espiritual.

Cada passo deve ser uma oração e cada caminhar é um rosário de contas que marcam os caminhos da vida com a fé do caminhante.

Dá força e inspiração sentir-se junto à terra, apalpar sua firmeza, medir sua imensidade.

É o altar cósmico sobre o qual celebra-se diariamente a liturgia da vida.

Não há uma “Terra Santa”, há uma maneira santa de caminhar sobre a terra. É a nossa maneira de caminhar sobre a terra que a torna sagrada.

Mudar o nosso modo próprio de caminhar, mudar o nosso modo de colocar o pé na terra, não é somente uma terapêutica psicossomática, mas pode ser um exercício espiritual. É aceitar-nos em nossa dimensão terrosa, adâmica.

O equilíbrio do corpo, o equilíbrio do nosso psiquismo, o equilíbrio de nossa vida espiritual depende deste enraizamento. E se as raízes são sadias, toda a árvore é sadia. Algumas vezes somos jardineiros, muito atentos à flor e ao fruto, mas esquecemos as raízes, esquecemos os pés. 

É por aí que devemos começar os nossos cuidados.

A tradição dos Padres do Deserto nos diz que todos nós temos os pés vulneráveis, muitas vezes feridos e maltratados. E temos necessidade de sermos cuidados e curados no nível de nossos pés. Precisamos fazer o caminho que vai dos “pés inchados e feridos” aos “pés alados”; partimos de nossos pés pesados como se tivéssemos um fardo de memórias para carregar conosco. Sentimos que este fardo de memória nos entrava a marcha e nos impede o caminhar.

É preciso cuidar dos próprios pés para que eles possam reencontrar suas asas; caminharemos, assim, sobre a terra com os pés livres, leves, soltos. E, como seres humanos, reencontraremos nossa condição divina. 

1º. Movimento: Loyola – peregrinação em direção à própria interioridade

A grande originalidade da história e da vida de Inácio não é a que ocorreu fora, mas a que aconteceu dentro dele mesmo. Sua principal contribuição à história da humanidade não é o que pessoalmente ele realizou em suas atividades de apostolado e de governo, ou sua obra exterior mais conhecida, a Companhia de Jesus, mas a descoberta de seu “mundo interior” e, através dela, a descoberta desse continente sempre inexplorado e surpreendente, que é o coração de cada ser humano, onde acontece o mais importante e decisivo em cada pessoa.

O tempo de sua convalescença foi a mediação histórica de que Deus se valeu para irromper na vida daquele homem. tudo começou com a leitura de alguns textos (“Vita Christi” e “Legenda Áurea”).

Foi, para ele, a primeira porta de acesso ao Mistério.

“Como era muito dado a ler livros mundanos e falsos, que costumam chamar de cavalarias, sentindo-se melhor, pediu que lhe arranjassem alguns deles para passar o tempo. Mas naquela casa não se encontrou nenhum dos que costumava ler. Deram-lhe então uma Vita Christi e um livro da vida dos Santos romanceada. Lendo-os muitas vezes, ia-se afeiçoando lentamente ao que ali estava escrito. Mas, deixando-os de ler, algumas vezes parava a pensar no que havida lido” (Aut. 5 e 6)           

Da “leitura do texto”  à “leitura de si mesmo”: este é o primeiro deslocamento que Inácio experimenta em seu interior. Inicia-se uma travessia do “texto escrito” ao “texto da vida”. Leitura provocativa e questionadora, pois ela desmonta uma estrutura fincada em falsos fundamentos e desperta o desejo de construir a vida sobre uma nova base. Uma leitura conflituosa, marcada por resistências e medos…, mas, ao mesmo tempo, uma leitura atenta e centrada, com pausas para reflexão sobre as reações que ela despertava. Leitura que o compromete com outra escrita, carregada de sentido, valor e utopia.

Imobilizado e impossibilitado fisicamente, Inácio se surpreende a si mesmo escavando e trazendo à tona toda sua capacidade de aventura neste continente inexplorado (o de seu mundo interior e o da ação de Deus nele). Enquanto seus contemporâneos aventuravam-se na descoberta de novas terras, seu descobrimento não é menos importante, e é de maior alcance humano que o daqueles. Sem ruído, sem galeões, sem dinheiro, sem pólvora, sem armas, sem sangue, sem violência, sem vencidos e humilhados, Inácio abrirá caminhos nesse continente interior, próprio e de cada ser humano, “conduzido, sabiamente ignorante” do que vai encontrar, deixando-se levar e observando como é levado.

2º movimento: Esse caminho interior, iniciado em Loyola, sedimenta-se em Manresa (Cardoner).

“Uma vez ia, por devoção, a uma igreja que estava mais de uma milha de Manresa.  Creio que se chama São Paulo, e o caminho vai junto do rio. Indo assim em suas devoções, assentou-se um pouco com o rosto para o rio, o qual ficava bem em baixo. Estando ali assentado, começaram a abrir-se-lhe os olhos do entendimento.  Não tinha visão alguma, mas entendia e penetrava muitas verdades, tanto em assunto de espírito, como de fé e letras. Isto, com uma ilustração tão grande que lhe pareciam coisas novas. Não se podem declarar os pormenores que então compreendeu, senão dizer que recebeu uma intensa claridade no entendimento. (Nisto ficou com o entendimento de tal modo ilustrado, que lhe parecia ser outro homem e ter outro entendimento, diferente do que fora antes)” (Aut. 30).

Este texto da Autobiografia de Inácio nos remete à experiência fundante de sua vida. No espaço entre a estrada e o rio revela-se o “caminho do Amor de Deus” rumo ao ser humano. Esta experiência significa abertura, dilatação do coração na fé, expansão da consciência ao ver que tudo parte de Deus (Fonte do rio da vida) e tudo volta para Deus (rio que mergulha no Mar).

No fundo do seu coração, Inácio acolhe, escuta e reconhece o murmúrio da voz de Deus, que, como um rio calmo e ao mesmo tempo vivaz, o acompanha da nascente ao mar aberto.

A experiência de Inácio à margem do rio Cardoner o conduz à outra fonte, aquela que brota do coração, e que estava ressequida, impedindo-o de reconhecer o murmúrio da água viva.

“Uma água viva murmura dentro de mim e me diz: Venha para o Pai” (S. Inácio de Antioquia)

Foi a “ilustração” junto ao rio Cardoner que o fez perceber que o sentido da própria existência é deixar-se conduzir pela força do Espírito, assim como as águas do riacho se deixam conduzir em direção ao Grande Oceano. Abandona sua solidão na gruta, seu coração se expande e se abre a uma experiência universal.

3º. movimento: Esta experiência de universalidade é consolidada em Jerusalém-Paris-Roma.

Seu itinerário não é unicamente geográfico. Mais que um simples deslocar-se, trata-se de um modo de viver e de situar-se no mundo. Em sua breve estadia na Terra Santa, Inácio ficou muito marcado com a imagem do Cristo companheiro, que o chama a trabalhar com Ele. Em cada canto daquela terra ele “via”  Jesus ocupado em estabelecer o Reino do Pai. E não estava só, mas com o grupo dos apóstolos, companheiros de Jesus e companheiros entre si.

O chamado de Jesus feito aos apóstolos e o posterior envio deles para a missão, são duas páginas do Evangelho que marcaram profundamente Inácio e que se encontram refletidas nas meditações mais tipicamente inacianas: o chamado do Reino, as Duas bandeiras, os Três binários.

Depois de ter posto materialmente seus pés sobre as pegadas de seu Senhor e beijar o solo que Ele havia pisado, Inácio compreende que a terra de Cristo era o vasto mundo de seu tempo. Desde então, para além do deserto e da peregrinação a Jerusalém, abre-se diante de seus olhos, outro caminho.

Decididamente Inácio volta-se para o mundo, para esse borbulhar de acontecimentos sócio-político-religiosos, no qual reconhece o lugar da Encarnação.

Para fazer-se presente neste vasto mundo, de uma maneira original e criativa, decide “estudar”. Forma-se em Paris, onde conquista o título de Mestre em Artes.

Ali se matriculou com um nome novo, no dizer de Ribadeneira, “por ser mais universal”: Inácio.

Mesmo durante o período de l541 até 1556, ano de sua morte, quando se instalou em Roma, continua sendo o peregrino que escolheu ser. A partir de seu pequeno quarto, continua estando presente em todos os pontos do mundo onde algo novo se prepara.

Pe. Adroaldo Palaoro sj