“... os publicanos e as prostitutas vos precederão no Reino de Deus”  (Mt 21,31)

 

No Evangelho de hoje (26º Dom. Tempo Comum), Jesus, com sua original sabedoria, nos oferece uma outra perspectiva de vida. Sem dúvida alguma, Jesus era um provocador, no sentido etimológico da palavra, (provocar: chamar para frente, desinstalar), que obrigava a ver as coisas a partir de uma perspectiva diferente da que era habitual. Ele é Aquele que vê mais além da realidade: descobre vida onde os outros só veem morte; desvela possibilidades onde os outros se deparam com o impossível; descobre sementes de futuro escondidas  onde ninguém vê mais saída; vê santos onde todos só veem pecadores... Jesus é Aquele que vê bondade presente no fundo do coração, inclusive daqueles que eram condenados como “publicanos e prostitutas”; sabe ler nos gestos mais simples a grandeza de um coração capaz de amar, de mudar, de ser melhor.

 

Mas, custa-nos muito modificar nossa perspectiva; estamos acostumados a um modo fechado de viver, com umas viseiras (a dos “sacerdotes e anciãos do povo”) que não nos permitem captar a vida em sua plenitude e riqueza; com isso nos instalamos no já adquirido e conhecido e atrofiamos em nós o dinamismo que busca abrir a mente e alargar o coração à realidade que nos cerca.

 

Ver as coisas “por uma outra perspectiva” é muito mais divertido. O “avesso” revela que o mundo poderia ser diferente. Dizem que, ao pintar uma paisagem, os  paisagistas a olham dobrando-se e pondo a cabeça entre as pernas abertas, por mais incômodo que seja a postura, porque assim se libertam da visão “oficial” do conjunto que todos veem de pé, e descobrem novos ângulos, perspectivas não usuais e a surpresa do novo no molde antigo.

 

Também aqui os hindus conhecem e praticam a sabedoria ancestral da postura do “pinheiro”, com a cabeça para baixo e as pernas para cima, mudando de direção as correntes metabólicas do corpo e olhando ao mesmo tempo o “mundo ao avesso”. Isto acaba sendo a maneira de ver as coisas pelo direito. É o segredo da arte, da vida e das decisões bem tomadas. Um enfoque novo sempre proporciona um ponto de referência melhor para uma avaliação independente, seja de linhas e cores, seja de opções e valores de vida.

Um ponto de vista novo, limpo e original é uma grande ajuda para uma vida sadia.

 

O que Jesus pretende na pequena parábola de hoje é dar-nos um novo ponto de vista, um novo ângulo, uma nova perspectiva, fazendo-nos ver a realidade do outro como se fosse pela primeira vez, com um olhar límpido e um juízo desinteressado.

 

Os “sacerdotes e anciãos do povo” são os “profissionais” da religião: aqueles que disseram um grande “sim” ao Deus do templo, os especialistas do culto, os guardiães da lei. Não sentem a necessidade da conversão e não se abrem à novidade trazida por Jesus.

 

Os “publicanos e prostitutas” são aqueles que disseram um grande “não” ao Deus da religião, aqueles que se colocaram fora da lei e do culto. No entanto, seu coração se manteve aberto à conversão e acolheram a novidade de Jesus. “Sacerdotes e anciãos do povo” x “publicanos e prostitutas”: revelam o lugar e o modo de viver de cada grupo na estrutura religiosa do tempo de Jesus. Mas podemos ir além: tais grupos estão presentes, e em constante conflito, em nossa própria interioridade.

 

Como integrá-los e como conviver com eles para que nossa vida seja  criativa e expansiva?

Nesse sentido, esta pequena parábola nos capacita a considerar nossa vida sob outra perspectiva. Provavelmente, a parábola – em linha com a sabedoria de Jesus – está nos convidando a que sejamos capazes de reconhecer e abraçar o “publicano” e a “prostituta” que cada um de nós carrega em nosso interior. O sentido seria o mesmo que aquela outra parábola que fala do “fariseu” e do “publicano”: até que não reconheçamos o nosso publicano interno não poderemos estar reconciliados.

 

Simbolicamente, “publicano” e “prostituta” é aquela dimensão nossa que temos reprimida e oculta, nossa própria sombra. É claro que, enquanto não a reconhecermos, projetaremos nos outros o que em nós mesmos  rejeitamos. Só quando abraçamos nossa “negatividade”, nos humanizamos, porque nos abrimos à humildade. E só então pode emergir a bondade e a compaixão para com os outros.

 

Os “sacerdotes” e os “anciãos” – escravos de sua própria imagem de “observantes religiosos” – eram incapazes de reconhecer e aceitar seu “publicano” e sua “prostituta” – presentes em todos nós. Isso os incapacitava para amar os outros – publicanos e prostitutas – e para entrar no Reino. Quanto mais nos reconciliamos com nossa debilidade e fragilidade, mais próximos estaremos da verdade.

 

Uma coisa parece clara: abraçar nossos próprios “publicano” e “prostituta” nos permitirá abraçar qualquer pessoa que cruze nosso caminho, sem necessidade de impor-lhe nenhuma etiqueta prévia. Dito de outro modo: ao reconhecer e aceitar nossa própria sombra (tudo aquilo que em algum momento tivemos que negar, ocultar, reprimir...) crescemos em unificação e harmonia interior, desaparecem os juízos e preconceitos e entramos em um caminho de humildade e graça.

A aceitação da sombra (“publicano-prostituta”) nos faz descer do falso pedestal ao qual nos havia feito subir o “sacerdote que nos habita” e nos permite crescer em humildade e em humanidade.

 

Para Jesus, a conversão significa mover-nos em direção à nossa fragilidade, aos limites, às sombras...

Ao reconhecer-nos fracos e limitados, nós nos abrimos para Deus e para os outros; sentimo-nos necessitados de salvação. Só a aceitação de nossa verdade completa conduzir-nos-á no caminho da libertação. E a verdade é que em cada um jazem unidas a luz e a sombra, o sacerdote e o publicano. Em cada santo dorme um pecador, e não reconhecer isso conduz ao farisaísmo e ao moralismo; mas em todo pecador dorme também um santo, e não percebê-lo supõe um empobrecimento humano, desesperança e vazio.

 

Somente quando integrarmos e nos reconciliarmos com os aspectos nossos que tínhamos negado ou até rejeitado – a sombra - , poderemos alcançar a paz e a harmonia estáveis.  Portanto, nossa grande tarefa não consiste em sermos “perfeitos”, mas “completos”. Na medida em que somos mais “completos”, porque aceitamos de maneira integral nossa verdade, tornamo-nos mais compassivos e humanos.

 

Quem se identifica com “ideais”  muito elevados, quem se exalta a si mesmo na busca da “perfeição”, mais cedo ou mais tarde terá de confrontar-se com suas “sombras”, será forçado a tomar consciência de sua condição humana e terrena, de seu “húmus”.

 

Quem “desce” até sua própria realidade, até os abismos do inconsciente, até a escuridão de suas sombras, até a impotência de seus próprios sonhos, quem mergulha em sua condição humana e terrena e se reconcilia com ela, este sim, está “subindo” para Deus, faz a experiência do encontro com o Deus verdadeiro.

 

Texto bíblico:  Mt 21,28-32

 

Na oração: “Em você há uma luz capaz de espantar as trevas dos acontecimentos mais dramáticos; você é portador de uma força que pode sustentá-lo em experiências exigentes. Em sua fraqueza há algo divino. O que a terra seca tem a oferecer? Nada, quando abandonada às suas próprias limitações. Mas ela não desespera. Mesmo sob a pobre forma de deserto, continua guardiã de tesouros insuspeitos” (Frei Cláudio V. Balen).

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI