Bartolomé Murilo

 “Comamos e festejemos, pois este meu filho estava morto e tornou a viver”… (Lc 15,24)

 

Revelar o rosto do Pai como Amor e Misericórdia foi, para Jesus, o cerne de sua missão: toda sua vida foi uma eloquente demonstração da misericórdia divina para com a humanidade. O “princípio misericórdia”, portanto, é o núcleo do Evangelho. E a misericórdia é o “amor em excesso”.

 

Na misericórdia, Deus sempre nos surpreende, sempre excede nossas estreitas expectativas, para abrir caminho a partir de nossas fragilidades. Só o amor misericordioso de Deus nos reconstrói por dentro, destrava nossa vida e nos abre em direção a um amplo horizonte de sentido.

 

Deus, em sua misericórdia reconstrutora, libera em nós as melhores possibilidades, riquezas escondidas, capacidades, intuições... e nos faz descobrir  nossa verdade mais verdadeira de pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis... É ele que “cava” no nosso coração o espaço amplo e profundo para nos comunicar a sua própria interioridade. A força criativa da sua misericórdia põe em movimento os grandes dinamismos de nossa vida; debaixo do modo paralisado e petrificado de viver, existe uma possibilidade de vida nova ainda não ativada.

 

A misericórdia nos configura à imagem de Deus; é onde nós somos mais semelhantes a Ele. A misericórdia, portanto,  é não só a mais divina mas também a mais humana das virtudes. É aquela que melhor revela a natureza do Deus Pai e Mãe de infinita bondade. É a que revela igualmente o lado mais luminoso da natureza humana. Por isso é a que mais humaniza as relações entre as pessoas.

 

No evangelho deste domingo (24º Dom TC) encontramos, mais uma vez, o eterno conflito entre “Misericórdia” e “Lei”, entre “perfeccionismo” e “compaixão”. “Legalismo” e “perfeccionismo” andam sempre juntos; onde eles imperam, ali não há possibilidade de futuro, nem de vida nova; quem tem a lei na mão torna-se um juiz implacável, insensível, duro, frio… “Onde há misericórdia, ali está o Espírito de Deus; onde há lei, ali estão seus ministros” (papa Francisco).

 

Na parábola de hoje, Jesus “pinta” o rosto misericordioso do Pai; ele descreve a tipologia de dois comportamentos em relação ao fracasso do “filho mais moço”. Em 1º lugar, o coração terno do Pai manifesta-se aberto; seu modo de proceder se exprime nessas cinco ações carregadas de sentimentos, afeto e ternura: ver, comover-se, correr, abraçar e beijar.

 

Em vez de julgar o filho e fazer com que ele se afunde em culpa, o pai o acolhe plenamente. O perdão devolve ao filho mais moço a sua dignidade de homem livre, a autoestima e o sentido de pertença à família. O pai não aproveita a ocasião para praticar a pedagogia da culpa ou para tornar o filho dependente do seu perdão. O encontro não termina com o perdão. Há uma grande festa.

 

A festa sela o perdão no coração de quem rompeu a aliança. Portanto, a festa não é o prêmio do erro; ela é a expressão tangível, clara, do perdão realizado. O perdão é total: oferece uma inédita possibilidade de vida para o coração de quem viveu a fundo a experiência do próprio fracasso.

 

O pai revela-se exagerado no perdão diante de quem errou. Ele tem tolerância e paciência com relação ao processo que se abre interiormente no filho que se arrependeu. O processo permanece aberto de maneira que o filho possa amadurecer e o erro possa trazer um ensinamento; em outras palavras, possa dar lugar a uma experiência construtiva para ele. A reorientação que o pai provoca no filho mais jovem, com o seu perdão e a festa, é tão forte, que o jovem será capaz de tirar proveito da sua experiência negativa. A festa vem revelar que ele é amado incondicionalmente.

 

Ao contrário do pai, o filho mais velho revela um esquema mental fechado ao fracasso do seu irmão por estar ocupado com um “conteúdo perfeccionista”. Por ocasião do encontro entre o filho mais moço e o pai, o “filho mais velho estava no campo”; isto já indica uma característica da sua personalidade: o dever antes de mais nada. Ele havia perdido toda e qualquer orientação para consigo mesmo a fim de perseguir a perfeição.

 

Queria ser irrepreensível aos olhos do pai sem jamais desobedecer a uma única ordem sua. Ao ouvir “músicas e danças”, perguntou a um servo a razão daquilo; este fato sublinha o quanto estava afastado dos acontecimentos familiares. Enche-se de cólera e não quer entrar para a festa. Mesmo no plano afetivo, ele se encontra completamente longe da família. Ele mostra em suas palavras a sua total solidão. Talvez fosse um homem sem amigos. Tinha uma relação com o mundo das coisas, dos deveres e dos princípios, não das pessoas.

 

O perfeccionista é um ser muito frio. Vive com a chama do sentimento no nível “baixo”. O sentimento torna as pessoas mais humanas, ou seja, mais vulneráveis, mais frágeis. A perfeição tinha deixado o filho mais velho vazio de sentimentos. Seu comportamento é de incompreensão e de julgamento. Ele não se comove nem diante do destino do irmão nem tampouco diante da revela-ção da ternura paterna. A perfeição o deixou desumano.

 

Seguiu o “evangelho da perfeição”, não o da misericórdia. O pai precisou sair da festa para procurar convencê-lo a entrar. Trata-se de uma alegria que o filho mais velho não é capaz de compartilhar. Aos esforços paternos para fazer com que participasse daquele evento, ele responde não com a compaixão, mas com o argumento da obediência às obrigações e às proibições: “Já faz tantos anos que eu te sirvo sem ter jamais desobedecido às tuas ordens”. Nenhuma referência à vida de família, ao afeto, às relações...

 

O filho mais novo teve a coragem de pedir a sua parte, de arriscar, de viver a própria vida, de fazer as suas opções. Ele honrou a vida. O filho mais velho honrou os princípios, as normas... Nem passou por sua cabeça pedir a parte que lhe cabia. Se não consegue perdoar ao irmão é porque sabe que não é capaz de correr riscos. É um ser “autoblindado”.

 

A experiência de misericórdia gera em nós uma atitude correspondente de misericórdia. O Deus misericordioso cria em nós um coração novo, feito de acordo com o Seu, capaz de misericórdia (“bem-aventu-rados os misericordiosos porque alcançarão misericórdia”). É exatamente este o maior sinal da sua Misericórdia: ama-nos a ponto de enviar-nos ao mundo como instrumentos de Sua reconciliação, pondo em nosso coração um Amor que vai além da justiça.

 

A misericórdia presente em nós é modelada e alimentada pela Misericórdia divina. Como estilo-de-vida cristã a misericórdia nos descentra de nós mesmos e nos faz descer em direção ao outro, numa atitude de pura gratuidade. A vivência da misericórdia nos torna  realmente livres, e isso nos proporciona profunda alegria interior. 

 

A misericórdia é humilde e não humilha, porque é discreta e silenciosa. Ser presença misericordiosa não significa pôr o outro de joelhos para que reconheça seus erros; ela nasce de um coração “educado” pela Misericórdia divina e se manifesta externamente com uma atitude mansa e condescendente. Esse Amor é uma força poderosa, não se rende diante do mal, porque é sempre capaz de redescobrir o bem ou de salvar a intenção do próximo, de abrir-lhe novamente a esperança... 

 

"Devemos ser presença misericordiosa como pecadores, não como justos”. 

 

Texto bíblico:   Lc. 15,1-32    

 

Na oração: Entrar no “fluxo” da misericórdia divina:  ser canal por onde circula o amor mi-sericordioso em favor dos outros.

- Recordar experiências onde você  se sentiu cha-mado a exercer o “ofício da misericórdia”.  

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj