“Os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo que tinham visto e ouvido” (Lc 2,20)

 

 

 

 

Hoje começamos um Novo Ano. Mas, quê pode ser para nós algo realmente novo? Quem fará nascer em nós uma alegria nova? Quem ativará em nós novos sonhos? Quem ensinará a sermos mais humanos? Para viver o novo ano com mais intensidade, o decisivo é estar mais atentos ao melhor que se desperta em nós e viver sintonizados com a eternidade de Deus.

 

Esta união com Deus faz com que o tempo seja pleno. Também para nós o tempo pode ser de plenitude na medida em que vivemos unidos a Deus e nos abrimos aos irmãos pelo amor. Pois o amor é o que faz com que o tempo deixe de ser enfadonho e caduco e se abra a uma plenitude que se renova cada dia.

Nem todos os tempos são iguais. Uma coisa é o tempo do calendário, o contínuo movimento dos momentos, todos idênticos; e outra coisa é a vivência humana do tempo: há momentos em que o tempo se faz longo e outros em que se faz curto. Mais ainda, o tempo pode ser vivido como uma experiência opressiva e limitadora ou como uma experiência de plenitude. Quando vivemos o tempo como uma oportunidade para acolher o novo, para abrir-nos às surpresas da vida e para fazer-nos presentes gratuitamente, realizamos uma experiência positiva do tempo.

O tempo se torna “kairós”, ou seja, o momento oportuno para construir algo vital que possa transformar nossas vidas, o tempo propício onde todas as possibilidades estão à nossa disposição.

 

Foi essa a experiência vivida pelos pastores, segundo o relato do Evangelho de hoje: no seu tempo, rotineiro e sem expressão, uma criança se faz presente e a alegria tomou conta do coração deles. A plenitude chegou para eles, e quando ela chega não se esgota num instante, senão que permanece ao longo de toda a vida. Na Encarnação e Nascimento de Jesus, o tempo e a eternidade se fecundaram mutuamente. Deus não só entrou no tempo, senão que assumiu o tempo, assumiu nossa realidade passageira para enchê-la de eternidade.

O que faz a diferença é o olhar que pousa sobre o recém-nascido. Esse olhar está maravilhosamente mostrado na cena tão despojada do encontro dos pastores na Gruta de Belém. Trata-se de um olhar que chama à vida, que desperta uma resposta, um olhar perfeitamente realista sobre as dificuldades, mas também sobre o potencial que permitirá construir a vida.

 

A partir do “olhar” admirado dos pastores, iniciar, ao longo deste ano, um processo minucioso de extirpação das “cataratas” do nosso olhar interior: o olhar das lembranças negativas, das suspeitas, dos julgamentos, das comparações... e reacender o olhar contemplativo capaz de expressar a benevolência, a delicadeza, a acolhida, a serenidade, a modéstia, a afabilidade, a alegria simples de estar juntos...

Recordar todos os “olhares amorosos” que Deus foi depositando sobre nós ao longo da vida.

Coração e olhos espreitam na mesma direção. São os puros de coração os que verão a Deus (Mt. 5,8).

 

Mas quê “novo olhar” somos convidados a ativar, no início deste Novo Ano, a partir da experiência da Gruta de Belém? É o olhar contemplativo, que libera a capacidade de admiração e de encantamento para com o mundo, a vida, as pessoas... É o olhar que nos abre para perceber a ação de Deus na história e em nossas vidas. É o olhar que desperta o deslumbramento, que é a virtude da criança, a inocência da vida, a capacidade de ver, de aprender, de ser... É o olhar límpido, a face transparente, a memória sem ensaio.

 

Tudo é novo e por isso tudo é maravilhoso, porque tudo se vê pela primeira vez.

A capacidade de assombro é a medida da vitalidade no ser humano.

O olhar contemplativo, portanto, é marcado pela esperança, pois consegue enxergar possibilidades novas na realidade e abre “espaço para o imprevisto, para a magia e para o milagre de que as coisas podem, de repente, mudar e ganhar outra configuração...” (L. Boff).

 

Nesse sentido, o olhar é “grávido” de “boa-nova”, ou seja, é evangélico e transformador.

Desse olhar contemplativo, nasce o olhar cuidadoso, que zela e guarda o outro, a ele se dedica e investe o próprio tempo e energia, dispensando o melhor de si; nasce o olhar compassivo, que acolhe e sofre a situação do outro; um olhar ousado, que quebra as barreiras e aproxima corações...

Trata-se de um olhar inclusivo, solidário, humanizante, que procura perceber e valorizar o outro em sua diferença, em sua originalidade, em sua dignidade... e com ele se compromete.

 

Todos conhecemos o expressivo valor do olhar na dinâmica do encontro, na saudação, no receber e acolher, na conversação, no despedir-se. O olhar fala, tanto assim que muitas vezes o chamamos de eloqüente. No encontro com os outros, os olhos têm uma função fundamental, pois acompanham atentos cada detalhe do modo de ser dos presentes.

Observamos os interlocutores por inteiro, o rosto, os gestos, as posturas, as mãos, o que dizem e como dizem, os silêncios...; queremos saber e compreender com quem estamos nos relacionando, deixamos aflorar reações, avaliamos as impressões que eles produzem em nós e as que nós produzimos neles.

O primeiro encontro é prerrogativa dos olhos; o contato inicial de duas pessoas é sempre feito, antes, com o olhar, e só depois com as palavras. Inversamente, evitar o olhar é evitar o encontro. Voltar a olhar para alguém é o primeiro modo de dizer-lhe: sei que você existe.

 

O olhar de quem fala cria envolvimento, interação e estimula a atenção. A escuta mantém a distância; o olhar anula a distância e cria a presença. Um amigo se torna presente no momento em que há encontro de olhares, mesmo que ele esteja no outro lado da rua ou da praça e não possa saudá-lo verbalmente.

Entrar no campo visual de uma pessoa é entrar no campo da sua consciência. Nesse momento passa-se da categoria do ser, própria dos objetos, para o da presença e encontro, própria das pessoas.

O olhar tem o poder para despertar e para intimidar. Existem olhares que irradiam luz e atraem, outros que espalham gelo e distanciam. Há um olhar que determina o fim de tudo, outro que a tudo dá um começo ou recomeço. Há um olhar que recusa, outro que propõe e espera. Com o olhar, exprimimos disponibilidade ou indisponibilidade, dizemos a uma pessoa se ela pode ou não contar conosco. E há o olhar autoritário, que reflete a vontade de deixar claro que somos superiores, a essência secreta do poder.

 

O olhar de uma pessoa nasce da camada mais profunda e secreta do seu ser. Por isso dizemos que os olhos são o espelho da alma, pois transmitem as vibrações que brotam do nosso “eu” mais profundo.

Cada um de nós tem um modo habitual de olhar que é o seu modo habitual de sentir.

Devemos habituar-nos a manter os olhos erguidos, a olhar as pessoas nos olhos; um olhar afetuoso, que não intimide e não se sinta intimidado, um olhar entre iguais, acolhedor, estimulante, que demonstra interesse por aquilo que o outro diz, participação empática no seu modo de sentir. Um olhar desarmado e estimulante que, como o olhar dos pastores, nos motiva glorificar e louvar a Deus diante das infinitas manifestações de sua surpreendente Bondade em nossas vidas.

 

Texto bíblico:  Lc 2,16-21

 

Na oração: O cristão é aquele que conserva límpidos os olhos interiores, prontos para perceber a maravilha  que está germinando em sua vida.

                       Que olhar você tem sobre sua vida? Contemplativo? pessimista? compassivo?

                       Que olhar você tem sobre o mundo? Sobre as pessoas?...

 

 

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI

28.12.2013