“Não tenhas medo! De agora em diante serás pescador do humano” (Lc 5,10)
O relato do evangelho deste domingo começa situando Jesus como um grande pregador-mestre, um guia capaz de congregar muitas pessoas para escutar a “palavra de Deus”. Sua liderança, no meio do povo, parece já em processo de consolidação. Até esse momento, Jesus não tinha seguidores, mas somente ouvintes curiosos. Com este relato, Jesus mostra seu desejo de reunir em torno a si um grupo de cooperadores que prolonguem o movimento messiânico iniciado por Ele: movimento de vida, de novas relações, de esperança alvissareira...
Jesus, o homem integrado, sempre teve acesso ao seu oceano interior e deixou emergir ricas possibilidades, criatividades, inspirações... Seu modo de ser e viver revelou o “novo” presente nas profundezas do seu próprio coração: novo ensinamento, novo olhar sobre a vida, nova atitude, novo compromisso...
Ao mesmo tempo, com sua presença instigante, Jesus despertou, ativou e fez vir à tona o que havia de mais humano nas pessoas que ia encontrando, potencializando-o.
Assim aconteceu no encontro e chamado dos pescadores, homens rudes, mas que carregavam uma nobreza interior. Jesus os desafiou a serem mais humanos: “Farei de vós pescadores do humano”.
“Pescar o humano” é desvelar (tirar o véu) o que é mais nobre e divino em cada pessoa; é ajudá-la a viver com sentido, com paixão, tornando-a melhor, mais humana.
Jesus, com sua presença inspiradora, revelou o dom de despertar e extrair o “melhor” no interior das pessoas: seus recursos, seus desejos nobres, seus sonhos ousados... Sua sensibilidade “tocava” e mobilizava o que que havia de mais sagrado no interior do coração humano, alimentando uma nova esperança e abrindo um horizonte de sentido para todos.
Quando nos deixamos “tocar” por Deus naquilo que mais amamos, brotam os sentimentos oceânicos, a criatividade, o impulso para a comunhão, a integração e a abertura para com a realidade que nos cerca.
Também carregamos em nossa “memória agradecida” uma multidão de pessoas especiais às quais poderíamos dizer com ternura: “tu me fizeste melhor do que eu era..., porque acreditaste em mim de uma maneira que ninguém fazia, porque foste capaz de olhar em mim mais além daquilo que eu via, porque me ajudaste a avançar muito mais do que eu jamais poderia imaginar”.
Aqui também podemos contemplar cada uma destas presenças que nos curam, que nos impulsionam para o novo, que nos fazem mais criativos, que nos abrem um horizonte de sentido, enfim, que geram vida ao estilo de Jesus que passou pela vida tornando melhores as pessoas que encontrava.
Também hoje, Ele continua fazendo com que sejamos cada vez melhores, através de infinitas presenças de pessoas especiais. Sintamos e manifestemos gratidão por cada uma destas presenças inspiradoras em nossas vidas que nos fazem ir além de nós mesmos, nos acompanham, nos dão vida!
Assim como inúmeras pessoas nos tornaram melhores, também nós somos chamados a ser “presenças humanizadoras”, mobilizando a criatividade, a inspiração, a compaixão..., faíscas do divino no coração de cada um(a). Crescer em nosso verdadeiro ser é o melhor que podemos fazer pelos outros e pela criação inteira. A primeira e nobre missão de todo ser humano está dentro dele mesmo, nunca fora. Deus só quer que sejamos autênticos, ou seja, que sejamos o que devemos ser.
Há uma “profissão” (modo de viver, ofício) que é irrenunciável para todos que queremos ter uma existência plena. Podemos chamá-la “expert em humanidade”. Uma especialidade que todos deveríamos ir alimentando ao longo da vida. O “expert em humanidade” é aquele que revela uma sensibilidade para saber ler e vislumbrar o mais profundo e original nas pessoas com as quais compartilha a vida, seja no nível que for: família, amigos, companheiros de trabalho, ministérios, contatos ocasionais...; é aquele que sabe empatizar, escutar, compreender, alegrar; é aquele que está mais descentrado, atento ao que acontece com o outro; é aquele que sabe ajudar de mil maneiras, falando, calando ou servindo; é aquele que sabe estar com crianças, jovens ou idosos e ter uma palavra para cada um; é aquele que sabe fazer com que o outro se sinta único e importante; é aquele que ajuda a extrair o melhor do outro.
Esta “profissão” só se alcança com muita atenção, contemplação e encontro com o outro. Nossa inspiração é Jesus de Nazaré, um “expert em humanidade”; nele podemos contemplar como se exerce este ofício que, sem dúvida, é o mais importante de todos aqueles que a vida nos encarrega. Tudo isso tem a ver com a expressão “vinde comigo e farei de vós pescadores do humano”.
Uma chave importante para a compreensão do evangelho deste domingo está na expressão “remar mar adentro”. Jesus convida os discípulos a lançarem as redes de novo, mas não no mesmo lugar onde sempre
faziam, mas nas águas mais profundas. É muito importante esta indicação porque nos revela algo tão sensato e básico: se queremos obter resultados diferentes, não podemos fazer sempre o mesmo. É preciso ousar, criar, fazer diferente... A mudança de posição frente à vida já não é buscar no mesmo lugar, mas mudar de plano e conectar com as correntes mais profundas que nos trazem uma mensagem de “abundância”.
O olhar para a fonte daquilo que somos nos faz viver numa consciência de superabundância e não de carência; uma superabundância de sentido, de inspiração, de criatividade e não de vida “normótica” (normalidade doentia); uma superabundância que nos situa no milagre de uma nova visão da nossa vida e das nossas relações. O seguimento de Jesus é uma experiência vital de abundância que mobiliza a partilhar, não o que nos sobra, mas o que somos em essência.
À luz do “remar mar adentro”, é preciso romper com o tradicional, quebrar estruturas, revolver consciências, mudar vidas... Isso exige decisão corajosa e iniciativa criadora para gerar outra história, outra maneira de viver, outra esperança...
O ser humano sempre é chamado a reinventar-se, a aventurar-se por mares desconhecidos, a navegar para a “outra margem”, para uma terra nova...
Quem se sente fascinado pelo mar acaba por descobrir a maneira de construir barcos e de navegar.
Para isso é indispensável uma forte dose de ousadia... Não pode fugir, nem trair. Há que ousar para não perecer. Há que aventurar-se e arriscar o primeiro passo. Há que peregrinar infatigavelmente e originar nova humanidade. Há que ser nômade seduzido por novos horizontes.
Ousar é mover-se e agir com destemor. Ousar é desprender-se do lugar onde se está.
Ousar é desamarrar-se, é lançar-se, é atirar-se a um projeto. É atitude corajosa, é ímpeto arriscado.
Ousar é buscar o novo.
A novidade do texto de Lucas está no fato de que Jesus pede a Pedro que volte a pescar em um mar mais profundo, mais distante da margem. Pedro e seus parceiros sempre trabalharam perto da costa; e Jesus os desafia a irem mais além, a serem mais ousados.
Este Pedro, o “aventado e ousado”, que vai pescar mais distante da margem com seus companheiros, é a imagem de uma Igreja que deve se aventurar e romper os moldes antigos, a missão já fixada, a repetição estéril... É evidente que há o risco de fracassar e de se afundar, mas se permanece na margem onde não há ondas, nem desafios... o fracasso já é garantido. Este é o Pedro da Igreja (cada um de nós) que deve encontrar, neste mar-mundo do nosso tempo, o impulso para uma nova criatividade.
Há muito trabalho a ser feito fora dos mares tranquilos das sacristias, que cheiram a mofo.
Texto bíblico: Lc 5,1-11
Na oração: O ser humano é contraditório: pode avançar ou recuar, arriscar-se ou amoitar-se, aventurar-se ou acovardar-se, fazer a travessia ou acomodar-se...
- Qual a força predominante em você?
- O movimento humanizador”, iniciado por Jesus, causa impacto em seu interior, provocando a “travessia” do mar estreito do seu cotidiano para o vasto oceano a que Ele chama?
- Sua maneira rotineira de “pescar” (de viver, de sentir, de amar...) sente-se desafiada a uma maior amplitude diante da proposta que Jesus apresenta?
- Sua presença faz a diferença, despertando o “melhor” nas pessoas com quem convive?
- Suas atitudes são capazes de despertar o que é “mais humano” nos outros, tornando-os melhores?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
06.02.2022