Normalmente o Sábado Santo não merece maior atenção de nossa parte; acabada a Sexta-feira Santa já pensamos no Domingo da Ressurreição. No entanto, o Sábado Santo reivindica uma reflexão e um lugar na nossa vida espiritual.
O Sábado Santo é um dia de penumbra: entre a sombra da Sexta-feira e a luz do Domingo. É o dia da ambiguidade, do luto e da possível boa notícia, da espera e da esperança. É o dia dedicado à solidão de Maria, o “dia não-litúrgico”. É o dia em que Jesus “desce” à morada dos mortos, na obscuridade mais absoluta. Ali não há visão de Deus; por isso, a Escritura a chama “inferno”.
É o dia do ocultamento de Deus, do silêncio de Deus Pai, da grande solidão de Jesus, do Filho perdido na obscuridade, na “terra de ninguém”. Jesus no túmulo simboliza o silêncio, a volta ao mais íntimo de si mesmo, abraçando a solidão sem se sentir solitário.
Um Silêncio entendido como outra forma de presença de Deus.
O silêncio de Deus deve ser respeitado, pois a Deus lhe dói a morte de seus fiéis (Sl. 116,15): o Pai não estará fazendo luto por seu Filho e por suas criaturas?
* Não será que o silêncio do Sábado Santo supõe o direito de Deus se calar?
* Quê Deus não tem direito de guardar silêncio?
* Quem somos nós para exigir de Deus que nos esteja falando continuamente?
Se não oramos a partir desse silêncio, é porque ainda não mergulhamos no mistério do Amor compassivo.
Muitas vezes negamos a Deus o que de mais humano há em nós: o poder fazer comunidade compassiva e solidária, compartilhando a dor e o luto.
O Pai está de luto; toda a natureza, em silêncio, acolhe a semente do Corpo do Verbo, na esperança de germinar Vida plena. O Sábado Santo, portanto, não é o mutismo de Deus, mas seu Silêncio, ou seja, a ação oculta de Deus estendida no tempo; morte e ressurreição são simultâneas no presente de Deus, mas no acontecer humano só podem ser sucessivas.
Deus nos fala em sua mudez. O silêncio do Senhor nos move a procurar, a escutar, a enxergar...
Além disso, através da passagem do Sábado Santo realiza-se uma transformação radical de nossa imagem de Deus: não como um Ser Onipotente insensível, que desconhece a dor, senão como Amor vulnerável e vulnerado, que assume como Seu o sofrimento da humanidade.
Para que haja uma nova revelação de Deus, deve haver “interrupção”, “silêncio”, da antiga. O Sábado Santo nos faz “morrer” a uma imagem de Deus para abrir-nos a outra nova dimensão e compreensão de seu Mistério. Atravessada a prova dessa “ausência”, seremos levados à Outra Margem, na qual nossa relação com Deus ficará purificada e aprofundada.
Sábado é o dia da paciência, o dia da esperança freada, o dia em que a esperança é acrisolada pelo fogo.
“O Sábado Santo é aquele intervalo único e irrepetível na história da humanidade e do universo em que Deus, em Jesus Cristo, compartilhou não só nosso morrer, mas também nosso permanecer na morte. A solidariedade mais radical” (Bento XVI).
Quem não experimenta isso, permanece no sábado da sepultura, o sábado que não teria nada de “santo”; seria o sábado do castigo e do enterro daquele que por culpa se viu privado de vida. O desconcerto diante da sexta-feira santa pode ser tal que não fica esperança, nem razão para a missão.
Nesta última forma de solidariedade se completa a humanização de Jesus. E o ator dessa humanização total foi o Espírito Santo. A morte de Jesus esteve cheia de Espírito Santo. “Quer dizer que Deus, ao fazer-se homem, chegou ao ponto de entrar na solidão extrema e absoluta do homem, onde não chega nenhum raio de amor, onde reina o abandono total sem palavra alguma de consolo: os infernos. Jesus, permanecendo na morte, ultrapassou a porta desta solidão última para guiar-nos também a nós a ultrapassá-la com Ele.
Todos temos sentido alguma vez uma sensação espantosa de abandono. Isto é o que mais tememos da morte. Como os meninos, nos dá medo ficarmos sozinhos na escuridão. Só a presença de uma pessoa que nos ama nos dá segurança. Pois bem, isto é o que ocorreu no Sábado Santo: no reino da morte ressoou a voz de Deus. Aconteceu o inimaginável: que o Amor penetrou “nos infernos”: na obscuridade extrema da solidão humana mais absoluta. Também nós podemos escutar a voz que nos chama e a mão que nos toma e nos tira para fora. O ser humano vive porque é amado e pode amar. E se no espaço da morte penetrou o amor, então chegou ali a vida. Na hora da extrema solidão, nunca estaremos sozinhos” (Bento XVI, discurso de 2 de maio de 2010)
Deus se revela não só na Palavra, também em seu Silêncio, em seu ocultamento. Quando Deus cala e faz calar, fecha-se os lábios, entra-se no mistério, na mística. Também a vida cristã participa da obscuridade deste dia. Ela se sente chamada a morrer a si mesma cada dia: “viver é dizer constantemente adeus” (Card. Danneels); ela não quer ter medo da morte, porque, caso contrário, teria também medo da vida. Isaac o sírio dizia que os verdadeiros sábios são aqueles que “aspiram a vida dentro da morte”. Aqui acontece o paradoxo na vida espiritual: quanto mais se “sobe”, mais se “desce”. Para renascer a uma esperança viva, teremos que passar pela experiência de “descida ao inferno”, à escuridão, à terra de ninguém.
Mas não podemos esquecer que o ocultamento de Deus é experimentado no contato com a dor e a morte dos outros. A esperança cristã nos leva a com-padecer e com-morrer. Com eles permanecemos na morada dos mortos e “descemos aos infernos”. Mt. 25 nos apresenta os que sofrem como manifestações terrenas da proximidade de Deus. É aqui onde tem lugar o seguimento. É seguimento no espírito da com-paixão. Seguir a Jesus até o inferno, a obscuridade, pois Deus habita em uma luz inacessível (1Tim. 6,16).
O Sábado Santo é também um dia inquieto. No sábado santo da sociedade pós-moderna, somos terra de penumbra. Nela se antecipa a esperança do dia de Páscoa. “Nossa época se converteu sempre mais em um Sábado Santo: a obscuridade deste dia interpela a todos aqueles que se perguntam pelo sentido da vida, e de maneira especial nos interpela a nós que cremos. Também a nós nos afeta esta obscuridade” (Bento XVI).
Como as mulheres, nos deslocamos para o sepulcro, levando aromas. As orações são aromas que o Espírito recolhe em sua taça. A esperança é aroma que faz esquecer a putrefação do cadáver. Na noite do sábado santo nos propomos dormir pouco e levantar-nos muito cedo, porque algo vai acontecer. A Luz está para chegar. O Espírito ficou sem palavra, mas já sussurra. A voz do silêncio já geme; nele vislumbra-se a chegada da Vida. Algo grandioso se prepara.
Da escuridão da morte do Filho de Deus brota a Luz de uma esperança nova: a luz da Ressurreição reflete-se no rosto de Maria. Nossa amizade e devoção a Maria da esperança, a transparência feminina do Espírito, nos mantém no ritmo da espera. Aproximam-se os rumores de ressurreição. É Páscoa.
Não basta renascer; é preciso assumir nossa condição de responsáveis de uma Nova Vida.
Textos bíblicos: Mc. 15,42-47 Jo. 19,38-42
Tarde de silêncio: recordar os grandes silêncios da vida (perdas, fracassos, crises...) onde não há razões, não há uma lógica... mas no silêncio profundo, algo novo começa a germinar...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
26.03.2013