“... mas, o que perder a sua vida por causa de mim e do evangelho, vai salvá-la” (Mc. 8,15)
24º Dom. Tempo Comum
Jesus é claro: apresenta-nos as consequências do seu seguimento.
Quem vive radicalmente o Evangelho, vai ser rejeitado, perseguido... Tudo o que acontece com o Mestre, acontecerá também com os seus discípulos.
Os Evangelhos anunciam que tudo o que Jesus faz – suas atitudes, seus gestos, suas palavras – revela uma nova visão das coisas, um novo ponto de partida, uma nova ordem, um novo projeto.
Jesus encarna-se num mundo fechado, dividido, conflituoso... Faz-se presente no mundo da dor: enfermos, pobres, pecadores... e a partir daí propõe um novo movimento de humanização.
Jesus passa a viver a partir de um sonho primordial: o Reino.
A riqueza original desse sonho primordial não se “encaixou” nos esquemas dos fariseus ou saduceus, essênios ou zelotes, nem se deixou instrumentalizar pela instituição do Templo ou sinagoga.
Jesus era LIVRE e essa LIBERDADE nos fascina até hoje.
Ele vive o tempo todo no “pique” dessa profunda experiência que via em Deus um Pai, nos companheiros via irmãos e amigos e nos acontecimentos, o sopro do Espírito.
Jesus compreendeu perfeitamente que a opressão mais forte, sofrida por seu povo, não era só a opressão política e econômica de Roma, mas a opressão religiosa dos dirigentes e líderes de Israel. Estes estavam dispostos a tudo para continuar exercendo um poder ao qual não estavam dispostos a renunciar.
De fato, havia uma estrutura social, política, econômica, ideológica, religiosa... resistente e fechada a qualquer plano que colocasse em perigo sua continuidade. Tal sistema responde com hostilidade porque detecta o perigo que Jesus e sua proposta de vida representam para ele.
Jesus se tornou um sinal de contradição porque permaneceu absolutamente fiel a uma mensagem, a um modo de agir e a uma missão que havia recebido do Pai e que devia realizar com critérios e opções coerentes com o conteúdo do seu Evangelho.
Ele se deu conta de que avançar em seu projeto lhe custaria a vida. Em sua instrução ao grupo de seguidores, faz-lhes descobrir que o poder não terá outra saída que condená-lo à morte. Revela, portanto, o fato de “perder a vida” como consequência inevitável por viver a coerência até o extremo.
As circunstâncias mostravam com evidência que a hostilidade do poder para com Jesus se intensificava.
Por isso, começa a prevenir seus seguidores de que sua prática em favor da justiça implicava um enorme risco.
Pedro não pode entender a postura de Jesus. Em primeiro lugar, porque choca com toda a crença judaica e a própria “ideia” que tinham do Messias. Mas também, seguramente, porque não está disposto a assumir para si mesmo um caminho equivalente ao que o Mestre propõe.
Neste sentido, é sumamente significativo o contraste que Marcos apresenta, intencionalmente, entre o caminho de Jesus e o caminho dos discípulos: cada uma das três vezes em que Jesus lhes fala de seu caminho de entrega, eles manifestam uma clara resistência. O choque é grande: Jesus e seus discípulos caminham em direções diametralmente opostas: o serviço e a ambição.
Mas, para Jesus, trata-se de uma questão não negociável: seu caminho reflete o “pensamento de Deus”.
A vontade de Deus nunca passará pelo caminho do poder sobre os outros, senão pelo caminho do serviço. O que Deus quer é o bem das pessoas; somos chamados a viver o amor que se entrega.
E aqui vem a frase que fecha, como chave de ouro, toda a cena: “Quem quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me”.
Uma consideração superficial destas palavras deu margem a uma apresentação do cristianismo como a religião que preconizava a dor e a negação da própria vida e da própria identidade.
Mas Jesus não buscava a dor e nem negava a vida. Suas palavras não são uma exaltação do sofrimento, mas expressam uma grande sabedoria: buscam “despertar” a pessoa para que possa perceber a atitude acertada diante da vida.
O horizonte de toda pessoa é precisamente a vida e a plenitude. Isso é o que todos, sabendo ou não, buscamos. E o buscamos em tudo o que fazemos e em tudo o que deixamos de fazer. Como acertar?
Jesus oferece uma resposta carregada de sabedoria, na linha daquela que foi dada por todos os mestres e mestras espirituais: para caminhar na direção da vida, é necessário “desapegar-se” do eu.
“Renunciar a si mesmo” é não se reduzir ao eu superficial ou ego. Só quando nos desapegamos do eu, tomamos consciência de nossa identidade mais profunda, a vida que somos. Essa é a Vida de que fala o Evangelho, a mesma Vida que Jesus viveu, com a qual Ele estava identificado (“Eu sou a Vida”) e que buscava despertar em nós.
“Renunciar a si mesmo”: não se trata de negar o que somos, mas o que pretendemos ser e não somos. No mais profundo de cada um de nós habita uma pretensão básica de querer “ser deus” – “sereis como deuses”. É o pecado de raiz já dos nossos primeiros pais. É a tentação de querer ser outro, de não aceitar ser dependente, de não se aceitar como criatura, como humano (frágil e limitado).
“Renunciar a si mesmo” é não deixar que o impulso para a vaidade, a soberba, o poder... predomine; não deixar que o centro seja o “eu”, mas Deus. Isso implica em “descer”, humildemente, ao próprio húmus. Se não venço essa pretensão de “bastar-me a mim mesmo”, não posso seguir Jesus Cristo.
Aqui o “si mesmo” faz referência ao nosso falso “eu”, aquilo que, iludidos, acreditamos ser: o “eu” que busca poder, prestígio, riqueza... O desapego do falso eu é imprescindível para poder entrar no caminho que Jesus propõe.
Aquele que não é capaz de superar o “eu” e não deixar de preocupar-se de sua individualidade (centralidade em si mesmo), frustra toda sua existência; mas, aquele que, superando o egocentrismo, descobre seu verdadeiro ser “des-centrado” e atua em consequência, vivendo uma entrega aos outros, dará pleno sentido a toda sua vida e alcançará sua verdadeira plenitude humana.
Texto bíblico: Mc. 8,27-35
Na oração: nosso coração se encontra diante da revelação do “eu original”, porque está enraizado na identidade do próprio Jesus (“quem sou eu para vocês?”).
A contemplação de Cristo é também revelação do eu “escondido com Cristo em Deus” (Col. 3), ou seja, revelação da verdade do eu, onde descobrimos os traços de nossa própria fisionomia.
Não se pode responder a essa pergunta – “Quem é Jesus para mim” – se não nos perguntamos ao mesmo tempo: “Quem sou eu, diante do Senhor”? Sem identificação não haverá um encontro profundo com o Senhor. O encontro comigo mesmo me aproxima do encontro com o Senhor e o encontro com o Senhor revela minha própria identidade.
Com efeito, orar é aproximar-me da “verdade que me faz livre”; livre para ser “eu mesmo”, chegar a ser aquilo a que sou chamado a ser.
Por isso, a oração cristã é também descoberta do “eu”, da própria realidade pessoal, do mistério que a habita. É nessa experiência divina que a pessoa “descobre-se a si mesma”. Ela começa a descobrir o seu ser (único, original, sagrado...) quando “mergulha” no misterioso relacionamento com Deus e quando permite que o “mistério experimentado” se torne fonte de sua identidade.
Mais ainda, ela saberá melhor QUEM ela é, esquecendo-se de si mesma, aceitando perder-se, deixando que o Amor a liberte de seu pequeno ego.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana
11.09.2012