“Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la?” (Jo 6,60)

 

“Pai, dê-me uma palavra!” Invocação desconcertante e de grande simplicidade que parecia romper o austero silêncio dos desertos do Egito, Palestina, Síria, Pérsia, nos inícios do séc. IV da era cristã.

 

Visitantes ocasionais ou irmãos inexperientes na fé, movidos não por uma simples curiosidade mas desejosos de dar nova orientação às suas vidas, costumavam dirigir-se a um “ancião do deserto” para pedir-lhe um ensinamento que, nascido de sua experiência de vida no Espírito, pudesse se tornar de valiosa ajuda na senda das pegadas do Senhor; uma palavra para a vida que, exigida pela experiência cotidiana, pudesse dotá-la de um sentido; uma palavra proveniente do exterior mas meditada e acolhida no coração, para que pudesse se tornar semente de uma vida reconstruída e expansiva; uma “palavra de vida” capaz de ecoar até nas camadas mais profundas do próprio ser, mobilizando o ouvinte a uma existência mais identificada com o seguimento de Jesus Cristo.

 

Em todos nós habita a pretensão de deixar uma “marca” e permanecer de alguma maneira na memória dos outros, e aqueles que nos cercam podem desejar também receber uma palavra nossa, agora que a experiência de vida nos capacitou para oferecê-la. Qual será então essa palavra ou palavras que desejaríamos dizer? Por que demorar mais no momento de elegê-las, de acariciá-las internamente, de preparar o modo de dizê-las e de chegar a pronunciá-las, mais com atitudes e gestos que com os lábios?

 

Podemos evocar os nomes de homens e mulheres de Deus (pais e mães, educadores, fundadores de congregações...) e detectar neles quais foram as palavras de vida que pronunciaram em sua maturidade de vida, o legado que deixaram, o testemunho que passaram às seguintes gerações. Aqueles que conviveram com eles(elas) certamente perceberam o testemunho da bondade, da largueza de coração e a sabedoria que irradiavam.

 

O Evangelho de hoje(21º Dom TC) pode ser uma estupenda ocasião para esquecer velhas palavras desgastadas pelo uso, pronunciadas para afirmar nosso ego ou para conseguir aprovações alheias... e substitui-las por palavras essenciais, nascidas do espírito, que saem do coração e se dirigem ao coração dos outros, fazendo ressoar neles um eco da expressão proferida por Pedro: “A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna”.

 

Ele sente que as palavras de Jesus não são palavras vazias nem enganosas. Junto a Jesus descobriram a vida de outra maneira. Sua mensagem lhes abriu à vida eterna. Com quê poderiam substituir o Evangelho de Jesus? Onde poderiam encontrar uma Notícia melhor de Deus?

 

Pela primeira vez Jesus experimenta que suas palavras não tem a força desejada. No entanto, não as retira senão que reafirma mais ainda: "As palavras que vos falei são espírito e vida. Mas entre vós há alguns que não creem” (Jo 6,63). Suas palavras parecem duras mas transmitem vida, fazem viver pois contém Espírito de Deus.

 

Jesus não perde a paz; o fracasso não lhe inquieta. Dirigindo-se aos Doze, lhes faz a pergunta decisiva: “Vós também vos quereis ir embora?”. Não os quer reter pela força; deixa-lhes a liberdade de decidir. Seus discípulos não devem ser servos mas amigos. Se quiserem, podem voltar às suas casas.

 

As palavras tem um peso no anúncio e na atividade missionária de Jesus; não são neutras. Como um raio x que transpassa, as palavras proferidas por Ele iluminam os recantos mais profundos do ser humano; como um refletor em noite escura, ela reacende a esperança onde tudo já perdeu o sentido; como a chuva em terra seca, ela desperta novidades na vida, sacode as consciências adormecidas, põe em questão as atitudes de indiferença e de fechamento...

 

No encontro com a realidade dos pobres e excluídos, Jesus extrai palavras provocativas, previamente cinzeladas e incorporadas no seu interior, onde elas revelam dinamismo, sentido e alteridade; sua palavra brota de uma vida interior fecunda e conduz a uma vida comprometida.

A palavra de Jesus desencadeia nos ouvintes uma crise: eles têm de se decidir porque com a palavra d’Ele se dá uma divisão entre luz e trevas, vida e morte... Jesus pronunciou uma palavra que tinha peso e que colocava em crise a situação social, religiosa, política e humana da época. A crise que Jesus provoca em seus seguidores com o discurso do “Pão da vida”, arranca-os de seu horizonte limitado e estreito para elevá-los a um horizonte amplo, próprio de Deus. Suas palavras jamais deixam as coisas como estão. Elas não se limitam a transmitir uma mensagem; elas tem uma força operativa, desencadeiam um movimento, provocam uma mudança...

 

O mundo está repleto de “papos” vazios, confissões fáceis, palavras ocas, cumprimentos sem sentido, louvores desbotados e confidências tediosas, palavras enfeitadas e vazias, sem alma, nem paixão. Vivemos cercados de “palavras vãs”, condenados a uma civilização que teme o silêncio (há demasiado ruído em nós e em torno a nós). Fala-se muito para dizer bem pouco. Às vezes temos a sensação de que as palavras nos saturam: nas aulas, na televisão, nos jornais, nas liturgias, na Internet... há demasiado palavrório. Carecemos de poesia.

 

Sem dúvida, em nossa sociedade pós-moderna, a palavra cada vez tem menos relevância, cada vez é menos significativa. Atrofiamos as palavras, adocicamo-las, manipulamo-las ou as submetemos a um violento  esvaziamento de significados segundo nossa conveniência.

 

Vivemos hoje uma “crise gramatical”, ou seja, temos cada vez menos palavras. O leque de palavras carregadas de sentido é muito limitado. Daí a dificuldade de encontrar palavras para nomear a experiência de Deus, para expressar as grandes questões da vida, para dar sentido a uma busca existencial.

 

Vivemos tempos de “fratura da palavra” e, portanto, “fratura de sentido”. E a raiz disso tudo está na carência de uma interioridade, lugar da gestão das palavras de sabedoria que inspiram nossa vida.

 

As palavras perdem força e criatividade quando não nascem do silêncio. Quem sabe articular silêncio e  palavra é um verdadeiro artífice da vida.

 

Texto bíblico:  Jo 6, 60-69

 

Na oração: diante de Deus, fazer o seguinte exercício: imaginar que vão ser apagadas  todas as palavras de nosso vocabulário, exceto três que é preciso escolher para expressar-se e andar pela vida. Tem que ser palavras essenciais para cada um, e que é preciso elegê-las com calma, sem forçar nada, experimentando uma depois de outra até encontrar aquelas que melhor expressarão a própria experiência pessoal, de fé, de relação...

 

Observar como se sente ao pronunciá-las diante das pessoas com as quais vai se encontrando e imaginar o que lhe diria Jesus se você as dissesse a Ele.

 

Cave palavras nas minas do seu silêncio, e deixe que o Espírito diga a “palavra” misteriosa, diferente, reveladora de sua verdadeira identidade. Somente o silêncio poderá gerar “palavras de vida”.

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI