“Mas quando ele ouviu isso, ficou abatido e foi embora cheio de tristeza, porque era muito rico”
A cena do evangelho de hoje ilustra bem como uma “aderência afetiva” (fixação afetiva) a coisas, posses, pessoas, ideias, cargos, status, ídolos, dependências... nos travam e impedem de nos mover com facilidade. Perdemos o “fluxo” da vida, o impulso do movimento, a suavidade do “deslizar pela existência”.
“Diga-me o tamanho dos seus apegos, e eu lhe direi o tamanho do seu sofrimento”.
“Seis homens que caminhavam em busca de novas terras depararam-se com um rio caudaloso que lhes impedia avançar em seu caminho. Construíram um barco, prepararam os remos e entraram nele. Remaram juntos, e assim chegaram à outra margem. Desembarcaram para prosseguir o seu caminho, mas como o barco havia sido muito útil, carregaram-no sobre os ombros e seguiram assim penosamente sua peregrinação pela terra seca”.
Levamos “cargas” como essas em nosso interior, e são justamente elas que dificultam nossa caminhada pela vida. Se soubemos construir um barco quando foi preciso, também saberemos construir outro caso volte a se apresentar a situação; enquanto isso é melhor desfazer-nos de cargas incômodas para andar com maior desenvoltura e alegria pela vida.
O medo de perder “algo” no futuro atrapalha viver intensamente o presente. Quantos “pesos mortos” arrastamos em nossa vida, com recordações, lembranças, apegos, afetos desordenados...! Na perspectiva bíblica, há uma incompatibilidade radical entre a paixão pelas riquezas e a paixão pelo Reino. Ninguém pode servir a dois senhores.
Não é possível amar a Deus, isto é, amar a generosidade, a entrega, a solidariedade, a compaixão, a misericórdia, e ao mesmo tempo amar a riqueza, isto é, amar ou tomar tudo para si, a acumulação que é base de toda injustiça e de todo desamor: fome, violência, exclusão, exploração... A fidelidade ao Deus único fica interditada e o seguimento de Cristo fica fragilizado.
O apego aos “bens” apresenta-se como uma das tentações mais poderosas para todo seguidor de Jesus.
O dinheiro, os bens, as posses apresentam-se, então, como solo firme sob seus pés; eles provocam o fascínio, a adoração e as identificações mais perniciosas.
No evangelho, o “jovem rico” aproxima-se de Jesus, correndo, movido por uma angustiante inquietação que o devorava por dentro e lhe pergunta: “Quê devo fazer para ganhar a vida eterna?” Ajoelhou-se diante do Mestre com respeito, como se visse nele seu último recurso para encontrar resposta à questão que era urgente resolver. Não se dirigia a Jesus como os outros personagens, oprimidos pela enfermidade ou pela pobreza, mas a partir de um mal-estar interior: por quê, apesar de ter tudo e levar uma vida irrepreensível, continuava sentindo-se insatisfeito?
Isto nos causa surpresa, pois tinha tudo o que hoje nos é proposto como meta: juventude, riqueza e status. A vida terrena não lhe preocupava: tinha sua subsistência resolvida; ele perguntava por uma “outra vida”, que lhe desse o sentido e a plenitude que lhe estavam faltando.
O diálogo de Jesus com o jovem rico está marcado por contrastes. O jovem começa com uma pergunta focada no âmbito do “fazer”: “quê devo fazer?”. E a finalidade do “fazer” se formula com o verbo “ter”: “...para ganhar a vida eterna”.
Jesus, no entanto, situa sua resposta em outra dimensão. Primeiro, reconduz o objeto direto do “fazer” a um sujeito com maiúsculas: “Por quê me chamas de bom? Só Deus é Bom”. Logo, não é questão só de “fazer o que é bom”, mas de “ser” como Deus: pura bondade.
O verbo “ter” também se transforma por “entrar” na vida eterna. A vida eterna não se “obtém”; na vida eterna “entra-se”. Os quatro imperativos que o jovem recebeu como resposta (“vai, vende, dá, segue-me”), lhe desconcertaram: ele explicitara sua inquietação pela vida eterna em termos de posse (“quê devo fazer para ganhar”?), pois até os mandamentos ele os havia cumprido. Mas Jesus o orientou em outra direção: não para a acumulação, a posse ou a herança, mas para a desapropriação, o esvaziamento e a entrega.
Isso era “o que lhe faltava”.
Todos nós somos como o jovem rico no momento em que nos aproximamos de Jesus. Todos nós carregamos no coração a mesma inquietação do jovem; nele podemos nos reconhecer, sobretudo neste tempo em que nos ronda a insegurança, a obscuridade do horizonte, a dúvida...
É possível viver, desde agora, uma “vida eterna”, transbordante e plena, apesar das limitações do tempo, da fragilidade e da caducidade das relações humanas, para além das gratificações e das buscas de recompensas? Quais são os condicionamentos afetivos que de fato limitam e atrofiam nossa liberdade e que nos desviam da vivência do evangelho?
Estranhas atitudes estas que Jesus propõe, tão contrárias em uma cultura como a nossa que nos apresenta a apropriação e a acumulação como meta da existência. Ele, imperturbável, apresenta sua alternativa: perder, vender, dar, deixar, não armazenar, não entesourar, não reter avidamente, desapropriar-se, esvaziar-se, partilhar...
Eleger a partilha, o despojamento e a simplicidade de vida é a base e condição para poder seguí-Lo no trabalho do Reino; barcos, redes ou mesa de negócios devem ser abandonados. A escolha de uma vida despojada expressa a liberdade para colocar-se a serviço do Reino. A afeição aos bens, à acumulação, pelo contrário, acarreta o enorme risco de se ficar cego e surdo para atender ao chamado de Jesus.
Estamos em tempo de soltar as ataduras que nos travam e de iniciar, despojados e libres, um caminho novo junto ao Mestre.
Texto bíblico: Mc. 10,17-30
Na oração: Temos muitas atitudes, posses, ideias, cargos, posições, bens... que consideramos como Vontade de Deus; na realidade é tudo “projeção” de nossos medos, de nossa insegurança...
* Quê “tesouros” estão travando nossa vida e impedindo-nos de seguir a Cristo mais livremente? Quantas projeções!... Quantas transferências!... Às vezes, parece que cada um vive à mercê dos ventos dos seus sentimentos!... Por quê você se dedica a tal pastoral?... O que você procura?... Qual a compensação afetiva que espera?... Qual sua “agenda oculta”? O que espera “ganhar ou perder”?
Suas decisões são tomadas a partir de que parâmetros: prazer? compensação? Vontade de Deus?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI