“Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer, este é quem batiza com o Espírito Santo”
É muito significativo que o segundo domingo do tempo litúrgico comum continue falando de João Batista. Tudo o que o evangelista João nos diz do Batista é surpreendente. Ele nos indica uma relação especial de Jesus com o João do deserto. O evangelista quer deixar claro que não há rivalidade entre eles. Por isso nos apresenta um Batista totalmente integrado no plano de salvação de Deus. Sua missão é a de ser precursor, ou seja, preparar o caminho para o verdadeiro Messias.
Recordemos que João não narra o batismo de Jesus em si; vai diretamente ao centro e nos fala do Espírito, que é o mais importante em todos os relatos do batismo do nazareno.
O evangelho deste domingo, com o qual iniciamos o Tempo Comum, depois das festas natalinas, nos convida a fazer uma reflexão sobre o sentido do que celebramos, sobre o que foi verdadeiramente importan-te nestes dias.
Quem é este Jesus que nasceu entre nós? Como é esta Pessoa que o Pai nos enviou? Como Ele afeta nossas vidas?
São as perguntas que as primeiras comunidades cristãs também fizeram a si mesmas e são suas respostas que nos chegam neste texto que o evangelho de João põe na boca do Batista, saltando toda cronologia.
João Batista que nos acompanhou durante o Advento é agora, ao terminar o tempo do Natal, aquele que nos diz: “ficai atentos, abri os olhos, descobri quem é, na verdade, este Menino que nasceu para nós e como tem a força do amor para libertar nossas vidas”.
João não fala porque ouviu dizer, nem estudou nos livros; ele nos fala de sua própria experiência. Afirma que “vê” Jesus que se aproxima dele, que vem ao seu encontro e descobre n’Ele algo novo, que “não conhecia”. Descobre exatamente quem é Jesus. Esse a quem ele mesmo saiu a anunciar, mesmo sem conhecê-lo. E isso que ele vê não o deixa indiferente: afeta-o profundamente, move a tomar posição, a se resituar diante de sua missão.
João Batista confessa a Jesus como o “Cordeiro de Deus”, expressão muito familiar e significativa para o povo judeu contemporâneo de Jesus, mas não para nós. Era para eles uma clara referência à saída do Egito, ao cordeiro com cujo sangue eram marcadas as portas das casas dos judeus e os livrava da morte, abrindo-lhes o caminho para a libertação, saindo do lugar de sua escravidão para viver em liberdade. Recorda-nos o cordeiro que era sacrificado para celebrar, cada ano, a festa da Páscoa, este acontecimento fundamental para a vida de fé do povo de Israel.
Mas João continua: “este Cordeiro de Deus tira o pecado do mundo”. Fala de pecado, no singular; não está nos falando dos pecados ou falhas individuais, mas da situação global de opressão que impede o ser humano de ser plenamente pessoa segundo o plano de Deus. Todos os demais pecados se reduzem a este; ou, em outras palavras, este “pecado do mundo” é fonte de todos os outros pecados.
Trata-se do grande pecado de “raiz”, presente no coração de todos, que se expressa como ruptura de relações entre as pessoas, quebra de comunhão, esvaziamento da capacidade de amar... Pecado que brota de um coração petrificado, insensível e que se encarna nas estruturas sociais-políticas-econômicas-religiosas, alimentando divisão, ódio, intolerância... Este “pecado do mundo” apresenta vários rostos: injustiça, humi-lhação, violência em sentido moral e físico...
Jesus “tira o pecado do mundo” com sua maneira de viver, elegendo o caminho do serviço, da humildade, da pobreza e da entrega em favor da vida. Esta atitude é fruto de uma radical liberdade que lhe permite ser “homem autêntico”, eliminando de sua vida toda opressão e anulando toda forma de domínio sobre Ele. Por isso, Ele é portador da salvação radical para todos.
Jesus viveu esta liberdade durante toda sua vida. Foi sempre livre; não se deixou avassalar nem por sua família, nem pelas autoridades religiosas, nem pelas autoridades civis, nem pelos costumes ou tradições impostas pelos letrados e fariseus. Tampouco se deixou manipular por seus amigos e seguidores, que tinham objetivos muitos diferentes dos seus (zelotas, Pedro...)
João Batista completa, assim, seu testemunho reafirmando seu olhar contemplativo sobre Jesus. Contemplar é mais que ver, é observar com atenção, interesse e profundidade. E acrescenta que “viu” o Espírito que estava com Ele. E essa contemplação lhe abre os olhos e descobre, na pessoa do nazareno, o Messias do Senhor, o esperado dos profetas. Desvela a origem divina de Jesus, quando percebe que n’Ele está o Espírito. O Filho de Deus é quem batizará com Espírito Santo e fogo.
A humanidade de Jesus está inundada do Espírito; é a humanidade do Filho de Deus possuída pelo Espírito, guiada pelo Espírito. Jesus é, por excelência, o homem nascido do Espírito e se deixa conduzir pelo Espírito do Pai, vivendo intensamente o seu tempo presente. “Tempo carregado” da presença do Espírito; por isso, tempo criativo, inspirador...
“Deus armou sua tenda entre nós” e seu Espírito está nas entranhas de nossas vidas e nas entranhas mesmas da história da humanidade. Assim, os cristãos se deixam transformar internamente pelo Espírito de Jesus.
Esquecer isto é mortal para a Igreja. O movimento de Jesus não se sustenta com doutrinas, normas ou ritos vividos exteriormente. É o mesmo Jesus quem há de “batizar” ou “empapar” os seus seguidores com seu Espírito. E é este Espírito que há de animá-los, impulsioná-los e transformá-los. Sem este “batismo do Espírito” não há cristianismo.
Não podemos esquecer isto: a fé que há na Igreja não está nos documentos do magistério nem nos livros dos teólogos. A única fé real é a que o Espírito de Jesus desperta nos corações e nas mentes de seus seguidores. Esses cristãos simples e honestos, de intuição evangélica e coração compassivo, são aqueles que de verdade prolongam o modo de ser e viver de Jesus e abrem espaço à ação de seu Espírito no mundo. Eles são o melhor que temos na Igreja.
Infelizmente, há muitos outros que não conhecem por experiência essa força do Espírito de Jesus. Vivem uma “religião de segunda mão”. Não conhecem nem amam a Jesus; não O seguem porque não se identificam com Ele. Contentam-se com algumas práticas piedosas, alienadas, autocentradas.
Simplesmente creem no que os outros dizem e não experimentam em seu coração nada do que viveu Jesus.
O que os cristãos hoje precisam não são catecismos que definam corretamente a doutrina cristã nem exortações que apresentem com rigor as normais morais. Só isso não transforma as pessoas. Há algo prévio e mais decisivo: narrar nas comunidades a pessoa de Jesus, ajudar a que as pessoas entrem em contato direto com o Evangelho, ensinar a conhecer e amar a Jesus, aprender juntos a viver com seu estilo de vida e seu Espírito.
João Batista aponta para uma pessoa: “este é o Filho de Deus”. Ele não aponta para uma religião, para uma doutrina, para um código de normas e leis.
Recuperar o “batismo do Espírito” é a primeira missão da comunidade dos seguidores de Jesus.
Texto bíblico: Jo 1,29-34
Na oração: Com Jesus chega um “novo tempo”, um tempo decisivo para a história da humanidade.
Deixar o Espírito “pousar sobre nós” é dispor-nos a algo grande. A missão que Ele nos anima a viver é alucinante, imenso, fora do nosso tempo rotineiro. É Ele que nos faz mais lúcidos, mais sensíveis, muito mais corajosos para descobrir a profundidade e a riqueza de tudo o que acontece ao nosso redor e dentro de nós.
Somos feitos disso: desejo, busca, esperança... No mais profundo de cada um há uma carência que nos faz clamar: “Vinde Espírito Santo!”
Pe. Adroaldo Palaoro sj
14.01.22