“Jesus cuspiu no chão, fez lama com a saliva e ungiu os olhos do cego” (Jo 9,6)

 

 

O evangelho de hoje (4º Dom. Quaresma) nos coloca diante de um cego de nascimento: não conhecemos seu nome, só sabemos que é um mendigo, que pede esmola nas proximidades do templo. Estava sentado, imóvel, não podia caminhar nem orientar-se por si mesmo, dependendo sempre dos outros. Sua vida transcorre nas trevas. Trata-se de um ser humano quebrado na sua dignidade. 

 

Este ponto de partida é chave para ressaltar o ponto de chegada. Jesus vai lhe dar a mobilidade e a independência, o reconstruirá como ser humano por inteiro. Jesus vê na cegueira uma ocasião para a manifestação da atividade salvífica de Deus. As obras que Deus realiza consistem em libertar o ser humano de sua inatividade, dar-lhe mobilidade, capacidade de acção… 

 

Repetindo o gesto do Criador, Jesus mistura a terra com sua saliva, simbolizando a criação do homem novo, composto pela terra-carne e pela saliva-Espírito. Com o uso do barro, Jesus reproduz simbolicamente a Criação do ser humano. Ao “amassar o barro” Ele prolonga o sexto dia da Criação. Com o gesto de “ungir os olhos com o barro” Jesus recria o homem, reconstrói o “vaso quebrado”.

 

O que era cego revela a nova identidade de ser humano reconstruído pelo Espírito: ele agora é um ungido, encontrou-se a si mesmo – “Ele afirmava: sou eu”. Ao afirmar “sou eu”, ele descobre a transformação que se realizou em sua pessoa e quer que os outros a vejam. 

 

O que na verdade importa é que este homem estava limitado e carecia de toda liberdade antes de encontrar-se com Jesus. Agora descobre o que significa ser pessoa e se sente completamente realizado. O Espírito o capacitou para desatar todas as possibilidades de ser “humano”.

 

O horizonte que se abre para ele é indescritível. O mundo mudou radicalmente. Sua vida, escondida e dependente, agora está cheia de sentido. Perde todo medo e começa a ser ele mesmo, não só em seu interior, mas também na relação com os outros.

 

A espiritualidade quaresmal possibilita a transformação do eu, e o faz mergulhando a pessoa em sua própria condição humana, sob a ação do Espírito. Constituída de argila, como vaso nas mãos de um ceramista, a criatura humana recebe o sopro ou hálito divino. É a própria Vida de Deus, o seu sopro vital, que faz surgir o humano do húmus da terra. É o Espírito de Deus, inspirado no ser humano, que o torna realmente humano.

 

 

Cada pessoa é portadora deste sopro de Deus e desta força amorosa que o impulsiona à plenitude. O sopro de Deus impresso no mais profundo de nosso ser, está enfaixado pela fragilidade da argila. Somos a grande combinação resultante do sopro de Deus e a argila que nos configura. Cada um de nós é a força criativa de Deus impressa em cada coração.

 

O respiro ou hálito é o símbolo da presença do Criador em nós. Pelo sopro do próprio Deus, somos “elevados” à condição de imagem e semelhança d’Ele. Então, tornamos “criaturas abertas ao Espírito” e, mais ainda, “criaturas habitadas pelo Espírito”; somos argila, mas argila aberta ao céu.

 

Somente a ação criativa e contínua de Deus é capaz de costurar novamente os pedaços de nossa história; ao mesmo tempo ela nos faz descobrir a beleza e a harmonia desses mesmos pedaços. Tal qual o oleiro, o Senhor nos cria e nos recria continuamente. Nada é desperdiçado. Suas mãos de artista não jogam fora nenhum pedaço de nossa existência vivida, e sim, compõe e recompõe continuamente, num desenho novo, o que nos foi dado viver.

 

A experiência de nossa própria fragilidade pode converter-se em experiência de Deus, do Deus rico em misericórdia, e até o passado mais fragmentado está aí para dizer que Ele desenhou nosso ser na palma de suas mãos.

 

Assim, o passado em pedaços adquire um significado totalmente diferente, e cada acontecimento se torna fragmento de um plano amoroso, escrito no coração do Criador. O ato divino de costurar os pedaços de nossa história não significa somente juntar os cacos, como se no passado existissem somente derrotas e fracassos a serem anotados e aceitos. Deus acolhe e dá um sentido a todas as vivências e experiências; só Ele consegue juntar até as contradições e inconsistências da vida, dando coerência e unidade ao todo existencial e, com isso, fortalecendo a identidade e originalidade de cada um.

 

A partir da ação livre e amorosa de Deus, nós nos tornamos livres à medida que damos um significado ao nosso passado, que está sempre aí presente, à espera de um novo olhar e de uma nova luz.

 

Aqui se expressa exatamente a liberdade responsável, sinal da dignidade altíssima do ser humano, quando ele se torna sujeito de sua própria existência, reapropria-se da sua vida já vivida, inclusive as fragilidades e limitações, inserindo-as num contexto harmonioso de sentido.

 

Essa “leitura” da vida com um olhar marcado pela contemplação, significa colocar toda a vida dentro da totalidade de Deus, deixando que ela seja iluminada por esta Presença capaz de explicar cada realidade. Tudo o que está envolvido pelo mistério é banhado pela Luz do Criador. É um contínuo renascer; é um prolongamento da Criação: “faça-se a luz”, “façamos o ser humano”.

 

Repetir o gesto criativo de Deus significa tomar nas mãos os “fragmentos” daquilo que foi vivido, trazê-los das profundezas onde sempre estiveram confinados, colocá-los sobre a mesa, tocá-los, revirá-los, contemplá-los, aceitá-los, revivê-los, recriá-los... Com a argila de nossa existência, aquecida pelo calor do Espírito de Deus, podemos transformá-la em material de uma nova experiência de vida.

 

Não se trata de sufocar a vida, mas de torná-la leve e luminosa, mantendo límpida a sua fonte, livrando-a da camada de sentimentos negativos. Na vivência do tempo quaresmal, temos de levar a sério e acolher compassivamente a nossa própria condição humana, a nossa fragilidade de argila, para que o Sopro de Deus, sem encontrar resistências, possa nos modelar segundo sua promessa. Aqui o caminho para Deus é “descer” em direção à nossa própria realidade e viver a comunhão universal.

 

Texto bíblico:  Jo 9,1-41

 

Na oração:

Na experiência espiritual nos é pedido que mergulhemos no “chão da vida”, como as raízes na obscuridade da terra, na presença do silêncio. O movimento de enterrar profundamente as raízes possibilita alcançar a seiva, o pulsar da vida e o  equilíbrio.  Somos terra. Temos a Terra dentro de nós. Somos a própria Terra que na sua evolução chegou ao estágio de sentimento, de compreensão, de vontade, de responsabilidade e de veneração. Vivificados pelo Espírito, somos Terra que pensa, sente e ama.

Sentir que somos Terra faz-nos ter os pés no chão e viver em comunhão com a comunidade das criaturas.

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana- CEI